Eu
não sei se a Alba Albarello ainda morava na ponta debaixo do
Atlântico, com sua mãe e seu irmão. Acho que não – mas era ali no canto debaixo
da cerca que eu pulava para dentro do estádio. Era na junção de
onde é o Mantovani com a Atlântico – na rua da frente para o centro da cidade.
Ok!
II
Um
ótimo lugar para pular a cerca era no lote que a partir de 1964 seria do
Mantovani. Tinha já os lugarzinhos certos para botar o pé direito, depois o
esquerdo, segurar com mãos e fazer o giro por cima. Colocar um pé no outro lado... ‘tuummm’ – e sair correndo para cima do barranco até o nível do campo
quase atrás da goleira ‘debaixo’ do Atlântico. (quem atacava contra a goleira
do Mantovani – chutava para baixo...(!)).
III
Quando
eu chegava era 1h15min ou no máximo 1h30min. Em poucos minutos a turma que
morava nas redondezas do Atlântico se juntava: Jorge, Ademir, Facão (João
Cláudio Fachini), Malo, Vitoldo, Bruno, Zeca, Ivo, Rogério, Zé Pirulito,
Carlinhos, Alemão (Valdir Nunhoffer), Theco, Pedrinho, os Dufloth, Toca,
Nelsinho, Anilson, Toninho Dal Prá, Otaviano, Paulinho Madalozzo, Mingo... Até
o Jacaré aparecia de vez em quando.
IV
Os
dois melhores – às vezes eram os irmãos Jorge e Ademir -, ou então Jorge e
Zeca, ou Zeca e Ademir, ou ainda, Anilson e Zeca -, tiravam par ou ímpar e
escolhiam os times. Cada um escolhia um e assim as forças de equilibravam.
Este
foi um dos primeiros mais transparentes conceitos e, método prático de
exercício de justiça, que conheci. Não havia, nunca, a possibilidade de um grupo
ser império e o outro vassalo.
V
O
equilíbrio das forças mantinha acesa a chama de disputa pau a pau e a
expectativa de resultado imprevisível. Também foi por este sistema que descobri
que no futebol, quando as forças se equivalem, o ‘momento’ e a inspiração podem
desequilibrar. Quem estivesse num dia melhor – mais chances tinha.
VI
Num
canto do imenso campo do Atlântico (quanto a gente têm 10 ou 11 anos os campos
sempre são imensos), onde a sombra batia mais cedo – lá joguei minhas melhores
partidas e lá, vi os melhores jogadores de bola desta vida.
Errar
passe era coisa que acontecia em semanas. ‘Janelinhas’ e tabelas, gols por
cobertura e ‘entrar com bola e tudo’ – eram da rotina.
Craques
de pé no chão na melhor acepção do termo – era a maioria.
VII
Nos
clássicos diários de 10 vira – 20 ganha, a paridade das forças fazia a partida
se espichar.
Quando
o intervalo era alcançado com um dos times batendo nos 10 gols - o couro do
lombo estava curtido. As costas ardiam e os peitos dos pés estavam inchados e
tomados de um vermelhão só, de tanto receber, dominar, tocar, passar e bater.
VIII
A
bica da concentração de madeira do Atlântico reunia os dois times em sua volta.
Foi a melhor água de matar sede que já tomei.
E
pegar com as duas mãos uma ‘concha’ daquela dádiva, e com ela apagar o fogo do
rosto e dos ombros – então, nem se fala.
IX
Quando
os fôlegos estavam de novo tranquilos, e a brisa embalada pelos eucaliptos ameaçava com um arzinho frio as costas descansadas e surpresas com a sombra –
era hora de recontar os gols e voltar para o segundo tempo: - 10 a 6... – Ué, 10 a 6! Já tão querendo roubá!
10 a 8...
10 a 8!
Vocês só contam os de vocês. Tu não viu aquela hora que o Ademir tocou a bola
e... Aquele tu não conta né...! – Tá bom... 10 a 8.
X
Aquele
era um bom dia para se jogar dentro do campo do Atlântico – usando um das
laterais. Sim, porque era quarta, dia de preparação física do Atlântico. E como
não era dia de coletivo – sobrava campo para nós. Mesmo assim, até antes da
física do Índio, do Huga, do Noronha, do Popy e do Tomasi, a gente se ‘matava’
como numa decisão – no campinho de terra lá atrás da arquibancada dos
visitantes, onde hoje é a passagem interna, o corredor no parque do Galo.
XI
O
equilíbrio dos times levaria a partida tarde afora.
Se
por acaso um deles disparasse – se faria outra mais tarde -, mas isto era
difícil. A tarde estava garantida.
Como
devia ser tranquilizador para quem era pai naquele tempo. Sim! – porque os
filhos com certeza estavam em lugar certo e sabido: dentro do campo do
Atlântico jogando bola. Até que a noite mandasse o dia, e nós, embora.
XII
Naquele
tarde, porém, minha mãe me chamava da porta da casa, aos gritos, e eram recém 3
horas. O sol era quase um raio contínuo.
Dei
de mão ‘numa das goleiras do campinho’ e peguei minha camisa. Um papelzinho de
bala coloquei para re-sinalizar ‘a goleira’ que tinha desmanchado e desci o
barranco correndo. Botei o pé no buraco da cerca sem olhar, passei a perna por
cima, o pé no outro lado e ‘tuummm’. Mais 100 metros e estava em
casa. – Vai avisá o pai que mataram o Kennedy, disse ela com ar de pavor – O
que? Quem?...
XIII
Saí
correndo pela Jerônimo Teixeira e depois pela Nelson Ehlers e só parei na
alfaitaria do meu pai – na Nelson Ehlers, 168, ao lado do Samdu. – Mataram o
Kennedy, mataram o Kennedy, disse para ele sem fazer a mínima ideia do que
estava falando.
Logo,
dois ou três fregueses permanentes do chimarrão, um deles era o pai do dr. Célio Fahl; pois, aqueles homens
bonachões que sabem contar histórias como ninguém – com os olhos arregalados
saltaram: - O Kennedy! Mataram o Kennedy!? - e levantaram o volume do rádio Semp à luz e,
aí sim, é que a conversa embalou.
XIV
De
noite, na janta que não era janta - mas café, havia um ar de velório à mesa.
Tinham matado o Kennedy – e eu estava com a impressão que tinham matado um
parente.
O
‘mundo lá de casa’ parecia que tinha chegado ao fim, como sempre alguém já
naqueles distantes anos – ameaçava e prometia.
Tive
a nítida impressão que a nossa vida, que o mundo enfim, dali para a frente não
seria mais o mesmo, pois afinal, John Fitzgerald Kennedy, presidente
do EUA tinha sido morto a tiros em Dallas.
XV
Cinquenta e seis anos depois – nosso novo presidente ao sair do Brasil, o primeiro que foi ver, é americano.
Cinquenta e seis anos depois – nossa submissão é igual.
Cinquenta e seis anos depois, estamos quase na rabeira do mundo em matemática, ciências e leitura.
Cinquenta e seis anos depois, estamos quase na rabeira do mundo em matemática, ciências e leitura.
22
de novembro de 1963.
22
de novembro de 2019.
E
para que não digam que só vivo de passado, direi que há sim uma mudança
substancial nessa história: hoje não há mais cercas de madeira com buraco na altura certa pra
pé cego, para pular no Atlântico; e nem tem mais campinho de terra pra jogar
bola.