sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Uma tarde de 22 de novembro de 1963



  Eu não sei se a Alba Albarello ainda morava na ponta debaixo do Atlântico, com sua mãe e seu irmão. Acho que não – mas era ali no canto debaixo da cerca que eu pulava para dentro do estádio. Era na junção de onde é o Mantovani com a Atlântico – na rua da frente para o centro da cidade. Ok!

II
Um ótimo lugar para pular a cerca era no lote que a partir de 1964 seria do Mantovani. Tinha já os lugarzinhos certos para botar o pé direito, depois o esquerdo, segurar com mãos e fazer o giro por cima. Colocar um pé no outro lado... ‘tuummm’ – e sair correndo para cima do barranco até o nível do campo quase atrás da goleira ‘debaixo’ do Atlântico. (quem atacava contra a goleira do Mantovani – chutava para baixo...(!)).

III
Quando eu chegava era 1h15min ou no máximo 1h30min. Em poucos minutos a turma que morava nas redondezas do Atlântico se juntava: Jorge, Ademir, Facão (João Cláudio Fachini), Malo, Vitoldo, Bruno, Zeca, Ivo, Rogério, Zé Pirulito, Carlinhos, Alemão (Valdir Nunhoffer), Theco, Pedrinho, os Dufloth, Toca, Nelsinho, Anilson, Toninho Dal Prá, Otaviano, Paulinho Madalozzo, Mingo... Até o Jacaré  aparecia de vez em quando.

IV
Os dois melhores – às vezes eram os irmãos Jorge e Ademir -, ou então Jorge e Zeca, ou Zeca e Ademir, ou ainda, Anilson e Zeca -, tiravam par ou ímpar e escolhiam os times. Cada um escolhia um e assim as forças de equilibravam.
Este foi um dos primeiros mais transparentes conceitos e, método prático de exercício de justiça, que conheci. Não havia, nunca, a possibilidade de um grupo ser império e o outro vassalo.

V
O equilíbrio das forças mantinha acesa a chama de disputa pau a pau e a expectativa de resultado imprevisível. Também foi por este sistema que descobri que no futebol, quando as forças se equivalem, o ‘momento’ e a inspiração podem desequilibrar. Quem estivesse num dia melhor – mais chances tinha.

VI
Num canto do imenso campo do Atlântico (quanto a gente têm 10 ou 11 anos os campos sempre são imensos), onde a sombra batia mais cedo – lá joguei minhas melhores partidas e lá, vi os melhores jogadores de bola desta vida.
Errar passe era coisa que acontecia em semanas. ‘Janelinhas’ e tabelas, gols por cobertura e ‘entrar com bola e tudo’ – eram da rotina. 
Craques de pé no chão na melhor acepção do termo – era a maioria.

VII
Nos clássicos diários de 10 vira – 20 ganha, a paridade das forças fazia a partida se espichar.
Quando o intervalo era alcançado com um dos times batendo nos 10 gols - o couro do lombo estava curtido. As costas ardiam e os peitos dos pés estavam inchados e tomados de um vermelhão só, de tanto receber, dominar, tocar, passar e bater.

VIII
A bica da concentração de madeira do Atlântico reunia os dois times em sua volta. Foi a melhor água de matar sede que já tomei.
E pegar com as duas mãos uma ‘concha’ daquela dádiva, e com ela apagar o fogo do rosto e dos ombros – então, nem se fala.

IX
Quando os fôlegos estavam de novo tranquilos, e a brisa embalada pelos eucaliptos ameaçava com um arzinho frio as costas descansadas e surpresas com a sombra – era hora de recontar os gols e voltar para o segundo tempo: - 10 a 6... – Ué, 10 a 6! Já tão querendo roubá! 10 a 8... 10 a 8! Vocês só contam os de vocês. Tu não viu aquela hora que o Ademir tocou a bola e... Aquele tu não conta né...! – Tá bom... 10 a 8.  

X
Aquele era um bom dia para se jogar dentro do campo do Atlântico – usando um das laterais. Sim, porque era quarta, dia de preparação física do Atlântico. E como não era dia de coletivo – sobrava campo para nós. Mesmo assim, até antes da física do Índio, do Huga, do Noronha, do Popy e do Tomasi, a gente se ‘matava’ como numa decisão – no campinho de terra lá atrás da arquibancada dos visitantes, onde hoje é a passagem interna, o corredor no parque do Galo.

XI
O equilíbrio dos times levaria a partida tarde afora.
Se por acaso um deles disparasse – se faria outra mais tarde -, mas isto era difícil. A tarde estava garantida.
Como devia ser tranquilizador para quem era pai naquele tempo. Sim! – porque os filhos com certeza estavam em lugar certo e sabido: dentro do campo do Atlântico jogando bola. Até que a noite mandasse o dia, e nós, embora.

XII
Naquele tarde, porém, minha mãe me chamava da porta da casa, aos gritos, e eram recém 3 horas. O sol era quase um raio contínuo.
Dei de mão ‘numa das goleiras do campinho’ e peguei minha camisa. Um papelzinho de bala coloquei para re-sinalizar ‘a goleira’ que tinha desmanchado e desci o barranco correndo. Botei o pé no buraco da cerca sem olhar, passei a perna por cima, o pé no outro lado e ‘tuummm’. Mais 100 metros e estava em casa. – Vai avisá o pai que mataram o Kennedy, disse ela com ar de pavor – O que? Quem?...

XIII
Saí correndo pela Jerônimo Teixeira e depois pela Nelson Ehlers e só parei na alfaitaria do meu pai – na Nelson Ehlers, 168, ao lado do Samdu. – Mataram o Kennedy, mataram o Kennedy, disse para ele sem fazer a mínima ideia do que estava falando.
Logo, dois ou três fregueses permanentes do  chimarrão, um deles era o pai do dr. Célio Fahl; pois, aqueles homens bonachões que sabem contar histórias como ninguém – com os olhos arregalados saltaram: - O Kennedy! Mataram o Kennedy!? - e levantaram o volume do rádio Semp à luz e, aí sim, é que a conversa embalou.

XIV
De noite, na janta que não era janta - mas café, havia um ar de velório à mesa. Tinham matado o Kennedy – e eu estava com a impressão que tinham matado um parente.
O ‘mundo lá de casa’ parecia que tinha chegado ao fim, como sempre alguém já naqueles distantes anos – ameaçava e prometia.
Tive a nítida impressão que a nossa vida, que o mundo enfim, dali para a frente não seria mais o  mesmo, pois afinal, John Fitzgerald Kennedy, presidente do EUA tinha sido morto a tiros em Dallas.

XV

Cinquenta e seis anos depois – nosso novo presidente ao sair do Brasil, o primeiro que foi ver, é americano.
Cinquenta e seis anos depois – nossa submissão é igual.
Cinquenta e seis anos depois, estamos quase na rabeira do mundo em matemática, ciências e leitura.
22 de novembro de 1963.
22 de novembro de 2019.
E para que não digam que só vivo de passado, direi que há sim uma mudança substancial nessa história: hoje não há mais cercas de madeira com buraco na altura certa pra pé cego, para pular no Atlântico; e nem tem mais campinho de terra pra jogar bola.