(Odyflix. - Mini série em tempos de quarentena )
Seis Episódios
O Frentista da Administração
2º Episódio
Seis Episódios
O Frentista da Administração
2º Episódio
(- Aiaiaiaiaiaiai, por que é que eu não fui embora antes de
entrarmos na sala. Nossa Senhora de Fátima e agora? Eu vou ter de falar! Mas
como? – ga-gago do jeito que sou, como é quee-e-e-e-e-euuuuu vô
fa-fa-faaaaa-a-a-lar? Pronto. Estava recolocado no alvo de todos os bullyngs
que sofri no ginásio, no científico, no trabalho do posto de gasolina, no,
na...).
- Muito beeeemmm. Vamos começar aqui pela direita – disse o
professor de Metodologia Científica, padre Girônimo Zanandréa. Isto, pela
direita! Quem sabe... cada um diz o seu nome, o que já fez, o que faz
atualmente, enfim, qual é a sua profissão... Está bem assim?! Então vamos dar início: o seu noommme... o senhor...
aqui da direiiiiita!
- Eu sou... Eloi João Zanella. Sou gerente da Caixa Econômica
Estadual... ali da avenida Maurício Cardoso. (Palmas... muitas palmas).
- Muito bem senhor Eloi. Vamos então saber quem é o segundo da
fila – aqui ó, isso, isso -, sempre da direita... (esse... da direita também até hoje me
cutuca os ouvidos... mas agora eu entendo, politicamente olhando...). O
seeenhor é...!
- Eu me chamo Jayme Luiz Lago. Eu tenho uma empresa de pré-moldados, a Comac,
que fica ali na rua Valentim Zambonatto.
- Muuuiiito bem, disse o professor Girônimo, sufocado por
palmas.
- Vamos para o próximo, disse o professor. O senhor
ééé´!
- Eu sou João Picoli e sou agricultor (dos grandes) e, palmas e palmas.
- Muuuuuiiito bem, comemorou o professor. Vamos fazer o
seguinte: para que eu não precise ficar anunciando, e para ganharmos tempo,
quando um termina de se apresentar, o seguinte já se levanta e diz o nome e a
profissão. Está bem assim?! Perguntou em tom de quem ordena. ‘Então vamos
prosseguir. O seeenhoorr ééééé...?’.
- Meu nome é Ary Francisco Madalozzo e sou proprietário da
Indústria Madalozzo (palmas...); eu me chamo Paris Bordignon e sou funcionário
do Banco do Brasil há muitos anos... mais palmas; meu nome é Zeferino Detoni e
sou contabilista.... meu nome é Ademir Lourenço Pilotto e trabalho na
Construtora Viero... palmas e palmas.
Santa Mãe de Deus – Nossa Senhora de Fátima, só dá dono de
empresa, diretor, gerente, bancário, produtor rural, proprietário disso e daquilo
– nem professor essa gente é... Se fossem professores ao menos haveria alguém
como eu, de brincoringa... mas, que nada. Só dava calça de friso e gravata de
nó grosso, aquele tradicional nó americano, no gogó. E eu – o que diria - eu que trabalhava no Posto
Atlantic a eles que nem tinham me notado, nem sabiam que existia, nem
acreditavam que até eu, um nada, com eles lá estava.
Os colegas (?) se mexiam, se remexiam e iam se ajeitando nas
cadeiras quando se aproximava a vez de cada um. Uns ajeitavam o nó da gravata,
outros alinhavam algum fio de cabelo, outros limpavam a garganta para falar
claro, bem e bonito; alguns ainda davam um toquezinho na grande pasta que
descansava no chão, e outros remexiam os enormes chaveiros com chaves da firma,
da casa, do carro, do banco, da garagem, do prédio – só faltava a chave da
faculdade – credo!
- Vamos continuando. Viu como é bonito a gente ir se conhecendo,
dizia o professor Girônimo Zanandréa, metido no seu inconfundível blusão azul e
de gola olímpica. “O próximo...!”.
- Meu nome é Cecílio Viega Soares e sou Oficial da Brigada
Militar - comandante do 13º BPM... palmas... muitas palmas....; eu sou Walkírio
de Oliveira e trabalho na Menno... mais palmas; eu me chamo Dilson Sérgio
Spinatto e trabalho no Banco do Brasil, mais palmas ainda; sou Alberto Luiz
Zuanazzi e trabalho na Secretaria da Fazenda do Estado... muitas palmas; meu
nome é Ademir Luiz Mossi e trabalho na Samrig... palmas; me chamo Alzira Mara
Santolin e trabalho no Banco do Brasil... plá, plá, plá...; sou Dílio de
Oliveira Chaves e sou gerente do Banco do Estado do Rio Grande do Sul em Getúlio Vargas.. . plá,
plá, plá.... Eu também sou proprietário da Indústria Madalozzo e me chamo
Euclides Antônio Madalozzo, muitas palmas. No meu canto no fim da sala eu queria furar a
parede e correr como Forrest Gump – atravessar o país e que nunca mais me
achassem.
E seu eu pedisse licença para ir ao banheiro? – mas pensando bem
por que o professor Girônimo Zanandréa daria licença, deixaria um fedelho inotado
naquele ambiente, levantar-se, parar com todas as apresentações daqueles
ilustres senhores da sociedade erechinense, para responder se eu podia ou não
podia ir ao banheiro? Quem era eu na ordem do dia para interromper tal
solenidade para saber se eu podia sair dali, atravessar toda a sala e ir ao
banheiro? Não. Nem falar. Seria muito melhor que eu nem me mexesse no meu
canto... quem sabe até batesse o sinal antes de chegar a minha vez e aí eu
ficaria para a próxima aula – que com a mais absoluta das certezas deste mundo
de terra -, para mim nunca mais haveria a tal de próxima aula. Sumiria do mapa.
E aaiaiaiaiaiaiaiaiai, a fila ia andando. Já estava quase no
meio da sala. E se de repente o professor Girônimo Zanandréa parasse tudo e
mandasse começar do fim?, - me veio à cabeça. Para a gente ver como até um pânico pode
ficar ainda pior. Meu Deus – quase que desmaio. E se ele fizesse aquilo, só
para inverter, só para surpreender, só para segurar todo mundo bem atilado...
Não. Até aí não. Ele não faria uma injustiça daquelas comigo. Já
não bastava o meu sofrimento assim, a conta-gotas, um por um, vindo, vindo,
vindo... e ainda deveria cogitar que de repente o professor pulasse para... e “vamos
agora recomeçar, agora lá do fim. Quem é aquele... aquele.... aquele.....
menino, aquele, gurizinho, aquele”... guaipeca lá do fundo. Também é aluno? -
imaginava. Eu suava como só se suava no desmonte de um pneu de caminhão no alto
do verão, segurando as espátulas com os músculos que não só ameaçam, mas querem
saltar fora dos braços como fazia lá no posto de gasolina - no meu trabalho.
Meus dias de gagueira pareciam que estavam perto do fim, pois
naquela noite das apresentações da primeira aula de Administração de Empresas, em
Erechim; naquele ambiente insólito e totalmente hostil para a minha realidade
de empregado de salário mínimo, mais tímido e quieto que o simples e querido vereador Ronsoni em
noite de discursos na Colenda, eu haveria de me encontrar com meu destino.
Se... se tivesse de falar seria o fim da gagueira; sim, pois eu morreria. Com
certeza – eu cairia seco... mas, graças a Deus eu morreria no meu canto. Dali
eu não arredaria pé e de preferência eu cairia de costas contra a parede para
que nem me conhecessem. Como católico praticante eu me consolava porque em
morrendo ali, teria ao menos um padre para me ministrar a extrema unção.
Quando as apresentações mais ou menos chegaram à metade, alguém
teve a feliz ideia de propor um pequeno intervalo para que pudessem satisfazer
seus vícios de cigarro lá fora – mas tudo aquilo não passou de cogitação e os
tais intervalinhos ficariam para outras ocasiões, depois da apresentação da
turma da Administração. Ai – que azar. Isso só pode ser coisa de quem não tem
nada. Tu já viu pobre, miserável e remediado ter sorte um dia na vida?
- Vamos prosseguir então, meus queridos alunos e diletas
senhoras... disse o professor Girônimo Zanandréa. O sssennhoorrrrrrr
ééééééé´...!
- Eu me chamo Linor Pedro Klein... e também sou funcionário do
Banco do Brasil... agência de Erechim... palmas e mais palmas.
Minha Mãe – outro do Banco do Brasil. Naquele tempo era o
paraíso no céu e o BB na terra. A única coisa que eu tinha de proximidade com o
Banco do Brasil era a vizinhança com o posto de gasolina. O banco e o posto,
onde eu enxugava carro, ficavam (como ainda ficam) lado a lado. Este era o
nosso parentesco. No mais... eles tinham os carros e eu os panos e as canelas;
eles mandavam encher o tanque e eu enchia; eles pagavam e eu
recebia... recebia e entregava para o patrão.
Eles patrão – eu empregado. Eles e eu ali, juntos? Eu no meio
deles?! Que ousadia... que afronta... que discriminação deixarem um miúdo, um
desconsiderado, um nada; entrar, sentar e ficar entre aqueles boludos – era
como eu me via.
Por que é que esse... esse... esse professor – perdão mas eu não
sabia que o professor Girônimo Zanandréa era um padre (nem sonhava que viria a
ser bispo), nem suspeitava que ele era um ministro de Deus (até Ele tem
ministro? - e depois ainda falam do companheiro Lula, da Dilma...), mas por que
não fazia que nem o João Dautartas, professor de Matemática, que entrou na sala
e nem chamada fez?
Do João Dautartas, por debaixo do seu bigode cor de fogo, só se
ouviu um “boa noite!!”, direto, seco e ardido como uma labareda... e se punha a
encher o quadro negro de contas e mais contas. Por que ele, o professor de
Metodologia Científica, não fazia como o pessoal da esquerda – o Nédio Piran, o
Ernesto Cassol... – professores de primeira grandeza! Estes sim pareciam
professores de faculdade. Iam direto. Pau nos governos, nas injustiças dos
governos e sem esse negócio ginasial de se apresentar... Eu não compreendia os
desígnios do ministro de Deus. Só ouvia a minha rebeldia interna e a minha
capitulação externa. Eu era um cubo ao quadrado nas contas quilométricas,
astronômicas, seguidas de minhocões sem cabeça, que iam da parte debaixo do
quadro em seta de giz para a continuidade do mostrengo da exposição matemática do
João. Aquilo só podia ser coisa do diabo – contas absolutamente pecaminosas. Um
acinte a quem se acostumara a ver a vida com os brilhos da simplicidade – mas
era a faculdade. Não o ginásio.
Mas eu juro pelo meu emprego que mantinha com unhas e dentes –
de frentista do Posto Atlantic, eu juro que preferia mil vezes, não – mil vezes
é pouco -, um milhão de vezes eu preferia copiar aquelas contas enviadas por
satanás, do que ouvir meus colegas se apresentando... proprietário, sócio, diretor,
gerente, dono, administrador, Banco do Estado do Rio Grande do Sul, Banco do
Brasil, Secretaria da Fazenda, agropecuarista...! E o professor de Metodologia
que parecia ter baixado direto do céu em cima do estrado, esfregava candidamente
as mãos, enquanto um enorme crucifixo lhe pendia e balançava no peito. Lá do
canto do canto, do último canto do meu canto da sala eu ju, eu jjjj... eu
ju-ju...e,e,e, jjjjjjjjuuuuuro que parecia que tinham descido Ele do crucifixo
e me levavam de arrasto para ocupar Seu lugar. “É hoooojee. É hoje que tu vai ver o que é bom pra tosse”, era o que martelava dentro da minha cabeça. Eu já me via no
lugar Cristo. Só não haveria de ressuscitar. (Amanhã
a 3º Episódio).-