sábado, 28 de março de 2020

O Frentista da Administração! (2)


(Odyflix. - Mini série em tempos de quarentena )
Seis Episódios


O Frentista da Administração

2º Episódio

(Final do 1º Episódio)
(- Aiaiaiaiaiaiai, por que é que eu não fui embora antes de entrarmos na sala. Nossa Senhora de Fátima e agora? Eu vou ter de falar! Mas como? – ga-gago do jeito que sou, como é quee-e-e-e-e-euuuuu vô fa-fa-faaaaa-a-a-lar? Pronto. Estava recolocado no alvo de todos os bullyngs que sofri no ginásio, no científico, no trabalho do posto de gasolina, no, na...).

- Muito beeeemmm. Vamos começar aqui pela direita – disse o professor de Metodologia Científica, padre Girônimo Zanandréa. Isto, pela direita! Quem sabe... cada um diz o seu nome, o que já fez, o que faz atualmente, enfim, qual é a sua profissão... Está bem assim?! Então vamos dar início: o seu noommme... o senhor... aqui da direiiiiita!

- Eu sou... Eloi João Zanella. Sou gerente da Caixa Econômica Estadual... ali da avenida Maurício Cardoso. (Palmas... muitas palmas).
- Muito bem senhor Eloi. Vamos então saber quem é o segundo da fila – aqui ó, isso, isso -, sempre da direita... (esse... da direita também até hoje me cutuca os ouvidos... mas agora eu entendo, politicamente olhando...). O seeenhor é...!
- Eu me chamo Jayme Luiz Lago. Eu tenho uma empresa de pré-moldados, a Comac, que fica ali na rua Valentim Zambonatto.
- Muuuiiito bem, disse o professor Girônimo, sufocado por palmas.
- Vamos  para o próximo, disse o professor. O senhor ééé´!
- Eu sou João Picoli e sou agricultor (dos grandes) e, palmas e palmas.
- Muuuuuiiito bem, comemorou o professor. Vamos fazer o seguinte: para que eu não precise ficar anunciando, e para ganharmos tempo, quando um termina de se apresentar, o seguinte já se levanta e diz o nome e a profissão. Está bem assim?! Perguntou em tom de quem ordena. ‘Então vamos prosseguir. O seeenhoorr ééééé...?’.
- Meu nome é Ary Francisco Madalozzo e sou proprietário da Indústria Madalozzo (palmas...); eu me chamo Paris Bordignon e sou funcionário do Banco do Brasil há muitos anos... mais palmas; meu nome é Zeferino Detoni e sou contabilista.... meu nome é Ademir Lourenço Pilotto e trabalho na Construtora Viero... palmas e palmas.

Santa Mãe de Deus – Nossa Senhora de Fátima, só dá dono de empresa, diretor, gerente, bancário, produtor rural, proprietário disso e daquilo – nem professor essa gente é... Se fossem professores ao menos haveria alguém como eu, de brincoringa... mas, que nada. Só dava calça de friso e gravata de nó grosso, aquele tradicional nó americano, no gogó. E eu – o que diria - eu que trabalhava no Posto Atlantic a eles que nem tinham me notado, nem sabiam que existia, nem acreditavam que até eu, um nada,  com eles lá estava.
Os colegas (?) se mexiam, se remexiam e iam se ajeitando nas cadeiras quando se aproximava a vez de cada um. Uns ajeitavam o nó da gravata, outros alinhavam algum fio de cabelo, outros limpavam a garganta para falar claro, bem e bonito; alguns ainda davam um toquezinho na grande pasta que descansava no chão, e outros remexiam os enormes chaveiros com chaves da firma, da casa, do carro, do banco, da garagem, do prédio – só faltava a chave da faculdade – credo!

- Vamos continuando. Viu como é bonito a gente ir se conhecendo, dizia o professor Girônimo Zanandréa, metido no seu inconfundível blusão azul e de gola olímpica. “O próximo...!”.
- Meu nome é Cecílio Viega Soares e sou Oficial da Brigada Militar - comandante do 13º BPM... palmas... muitas palmas....; eu sou Walkírio de Oliveira e trabalho na Menno... mais palmas; eu me chamo Dilson Sérgio Spinatto e trabalho no Banco do Brasil, mais palmas ainda; sou Alberto Luiz Zuanazzi e trabalho na Secretaria da Fazenda do Estado... muitas palmas; meu nome é Ademir Luiz Mossi e trabalho na Samrig... palmas; me chamo Alzira Mara Santolin e trabalho no Banco do Brasil... plá, plá, plá...; sou Dílio de Oliveira Chaves e sou gerente do Banco do Estado do Rio Grande do Sul em Getúlio Vargas... plá, plá, plá.... Eu também sou proprietário da Indústria Madalozzo e me chamo Euclides Antônio Madalozzo, muitas palmas. No meu canto no fim da sala eu queria furar a parede e correr como Forrest Gump – atravessar o país e que nunca mais me achassem.
E seu eu pedisse licença para ir ao banheiro? – mas pensando bem por que o professor Girônimo Zanandréa daria licença, deixaria um fedelho inotado naquele ambiente, levantar-se, parar com todas as apresentações daqueles ilustres senhores da sociedade erechinense, para responder se eu podia ou não podia ir ao banheiro? Quem era eu na ordem do dia para interromper tal solenidade para saber se eu podia sair dali, atravessar toda a sala e ir ao banheiro? Não. Nem falar. Seria muito melhor que eu nem me mexesse no meu canto... quem sabe até batesse o sinal antes de chegar a minha vez e aí eu ficaria para a próxima aula – que com a mais absoluta das certezas deste mundo de terra -, para mim nunca mais haveria a tal de próxima aula. Sumiria do mapa.
E aaiaiaiaiaiaiaiaiai, a fila ia andando. Já estava quase no meio da sala. E se de repente o professor Girônimo Zanandréa parasse tudo e mandasse começar do fim?, - me veio à cabeça. Para a gente ver como até um pânico pode ficar ainda pior. Meu Deus – quase que desmaio. E se ele fizesse aquilo, só para inverter, só para surpreender, só para segurar todo mundo bem atilado...
Não. Até aí não. Ele não faria uma injustiça daquelas comigo. Já não bastava o meu sofrimento assim, a conta-gotas, um por um, vindo, vindo, vindo... e ainda deveria cogitar que de repente o professor pulasse para... e “vamos agora recomeçar, agora lá do fim. Quem é aquele... aquele.... aquele..... menino, aquele, gurizinho, aquele”... guaipeca lá do fundo. Também é aluno? - imaginava. Eu suava como só se suava no desmonte de um pneu de caminhão no alto do verão, segurando as espátulas com os músculos que não só ameaçam, mas querem saltar fora dos braços como fazia lá no posto de gasolina - no meu trabalho.
Meus dias de gagueira pareciam que estavam perto do fim, pois naquela noite das apresentações da primeira aula de Administração de Empresas, em Erechim; naquele ambiente insólito e totalmente hostil para a minha realidade de empregado de salário mínimo, mais tímido e quieto que o simples e querido vereador Ronsoni em noite de discursos na Colenda, eu haveria de me encontrar com meu destino. Se... se tivesse de falar seria o fim da gagueira; sim, pois eu morreria. Com certeza – eu cairia seco... mas, graças a Deus eu morreria no meu canto. Dali eu não arredaria pé e de preferência eu cairia de costas contra a parede para que nem me conhecessem. Como católico praticante eu me consolava porque em morrendo ali, teria ao menos um padre para me ministrar a extrema unção.

Quando as apresentações mais ou menos chegaram à metade, alguém teve a feliz ideia de propor um pequeno intervalo para que pudessem satisfazer seus vícios de cigarro lá fora – mas tudo aquilo não passou de cogitação e os tais intervalinhos ficariam para outras ocasiões, depois da apresentação da turma da Administração. Ai – que azar. Isso só pode ser coisa de quem não tem nada. Tu já viu pobre, miserável e remediado ter sorte um dia na vida?

- Vamos prosseguir então, meus queridos alunos e diletas senhoras... disse o professor Girônimo Zanandréa. O sssennhoorrrrrrr ééééééé´...!
- Eu me chamo Linor Pedro Klein... e também sou funcionário do Banco do Brasil... agência de Erechim... palmas e mais palmas.

Minha Mãe – outro do Banco do Brasil. Naquele tempo era o paraíso no céu e o BB na terra. A única coisa que eu tinha de proximidade com o Banco do Brasil era a vizinhança com o posto de gasolina. O banco e o posto, onde eu enxugava carro, ficavam (como ainda ficam) lado a lado. Este era o nosso parentesco. No mais... eles tinham os carros e eu os panos e as canelas; eles mandavam encher o tanque e eu enchia; eles pagavam e eu recebia...  recebia e entregava para o patrão.
Eles patrão – eu empregado. Eles e eu ali, juntos? Eu no meio deles?! Que ousadia... que afronta... que discriminação deixarem um miúdo, um desconsiderado, um nada; entrar, sentar e ficar entre aqueles boludos – era como eu me via.
Por que é que esse... esse... esse professor – perdão mas eu não sabia que o professor Girônimo Zanandréa era um padre (nem sonhava que viria a ser bispo), nem suspeitava que ele era um ministro de Deus (até Ele tem ministro? - e depois ainda falam do companheiro Lula, da Dilma...), mas por que não fazia que nem o João Dautartas, professor de Matemática, que entrou na sala e nem chamada fez?
Do João Dautartas, por debaixo do seu bigode cor de fogo, só se ouviu um “boa noite!!”, direto, seco e ardido como uma labareda... e se punha a encher o quadro negro de contas e mais contas. Por que ele, o professor de Metodologia Científica, não fazia como o pessoal da esquerda – o Nédio Piran, o Ernesto Cassol... – professores de primeira grandeza! Estes sim pareciam professores de faculdade. Iam direto. Pau nos governos, nas injustiças dos governos e sem esse negócio ginasial de se apresentar... Eu não compreendia os desígnios do ministro de Deus. Só ouvia a minha rebeldia interna e a minha capitulação externa. Eu era um cubo ao quadrado nas contas quilométricas, astronômicas, seguidas de minhocões sem cabeça, que iam da parte debaixo do quadro em seta de giz para a continuidade do mostrengo da exposição matemática do João. Aquilo só podia ser coisa do diabo – contas absolutamente pecaminosas. Um acinte a quem se acostumara a ver a vida com os brilhos da simplicidade – mas era a faculdade. Não o ginásio.
Mas eu juro pelo meu emprego que mantinha com unhas e dentes – de frentista do Posto Atlantic, eu juro que preferia mil vezes, não – mil vezes é pouco -, um milhão de vezes eu preferia copiar aquelas contas enviadas por satanás, do que ouvir meus colegas se apresentando... proprietário, sócio, diretor, gerente, dono, administrador, Banco do Estado do Rio Grande do Sul, Banco do Brasil, Secretaria da Fazenda, agropecuarista...! E o professor de Metodologia que parecia ter baixado direto do céu em cima do estrado, esfregava candidamente as mãos, enquanto um enorme crucifixo lhe pendia e balançava no peito. Lá do canto do canto, do último canto do meu canto da sala eu ju, eu jjjj... eu ju-ju...e,e,e, jjjjjjjjuuuuuro que parecia que tinham descido Ele do crucifixo e me levavam de arrasto para ocupar Seu lugar. “É hoooojee. É hoje que tu vai ver o que é bom pra tosse”, era o que martelava dentro da minha cabeça. Eu já me via no lugar Cristo. Só não haveria de ressuscitar. (Amanhã a 3º Episódio).-