segunda-feira, 30 de março de 2020

O Frentista da Administração! (4)


4º Episódio

(- Muuuuuito beeeeeeem... disse o bispo, digo, disse o padre, o Ministro de Deus, o professor Girônimo Zanandréa. E agora – vamos ao último, isso mesmo... nunca, mas nunca alguém fora tão feliz para me definir. Vamos ao último. Lá na última carteira. Quem é aquele menino, aquele rapazote lá? – ao mesmo tempo em que todas cabeças da sala, todos os olhos de Erechim... toda aquela multidão de vencedores, se viraram e me acenderam um milhão de lâmpadas, e me focaram – me olhando, me mirando, me flechando, me fuzilando com tiros e raios de olhos certeiros e mortíferos como os tomahawk, seria ali e não mais em outro lugar. Minhas orelhas queimavam, a testa tisnava, o suor escorria gelado. Eram todos os contrastes de uma vez só: o gelo se derretendo sobre meu corpo em ardência. Era eu... um nada – numa sala onde todo mundo era muito e, todos, todos já encaminhados ou bem feitos na vida, sentados como uma plateia que parece adivinhar o esquecimento da fala ou o tropeço do artista nasal. Eu artista – sim, artista no paredão enquanto mais de quarenta armas estavam apontadas para mim. Eu não sabia mais onde trabalhava, onde morava, de onde vinha, como fora parar ali, lá, e de repente o professor, o padre com o crucifixo no peito me empurrou: “vamos menino. O que foi. Está udo bem contigo. Vamos. Fale. Teus colegas querem conhecê-lo. Eu sei que nem todos tem o dom da palavra e, para uns, este momento até é difícil. Mas tudo, tudo é um aprendiza. Coragem. Vamos – fale. Somos todos ouvidos.
Eu me levantei – sim, eu me lembro, eu consegui me levantar e... e... disse! Sssiiimmmmm eeeeeeeuuuuuuu diissssssssssseeeeeeeeeeeeeee!.)


- Vamos menino, empurrou de novo o “ministro de Deus Girônimo”, enquanto seu crucifixo balançava sobre seu peito e eu juro, eu juro... eu me via crucificado nele.
Pois, foi naquela hora, que eu senti ser verdadeiro o dito popular que tem certas coisas na vida que a gente considera impossíveis, rigorosamente impossíveis, que parece não suportar e, é justamente nestas horas, que nos superamos e tiramos forças sabe-se lá de onde. Só pode ser Lá... de Cima. Foi nesse trecho da praia da minha vida que eu perdi as minhas pegadas – mas, inacreditavelmente, atravessei o pedaço - com certeza, levado nos braços, no colo... Dele. Lembrei de Gabirel o Pensador:
“Senhor, eu quis seguir-Te,
e Tu prometeste ficar sempre comigo.
Porque deixaste-me sozinho,
logo nos momentos mais difíceis?
Ao que Ele respondeu:
Meu filho, Eu te amo e nunca te abandonei.
Os dias em que viste só um par de pegadas na areia são precisamente aqueles
em que Eu te levei nos meus braços”
.

- Quem é você, rapaz, ordenou o professor Girônimo Zanandrea.
Eu me levantei de onde me julgava pregado. Não sei como – me ergui e até hoje não descobri como, falei. Sim, eu falei.

- Meu nome é José Adelar Ody ... Ôôôdy. Eu eu não sou diretor de nada, não sou gerente de nada, não tenho terras, não sou agropecuarista e nem proprietário de alguma empresa. Não sou sócio. Não tenho afinidades com patrões. Só tenho o meu serviço... (eu falava sem gaguejar... Seria eu mesmo que falava?) e prossegui: eu trabalho lá no Posto Atlantic do seu Abílio, o seu Abílio Machry... fica ali perto dos trilhos na frente da antiga CEEE.

Maaasssss – eu não trabalho lá nos fundos onde fica o dono. É mais à frente... mas também não é no escritório... é mais à frente. Mas, também não é no caixa e nem no balcão... Nããããããooooo. Eu trabalho de manhã, de tarde, sábado, domingo e feriado, no carnaval, na Páscoa, no Natal e no Ano Novo lá na frente do posto, debaixo de chuva, de sol, de neve. Eu sou especialista em encher tanque de gasolina, ver o óleo, a água da bateria, o óleo do freio, a água do radiador... o aperto da correia. Na cidade ninguém me bate em limpar parabrisa, posso ensinar como se enxuga um carro (depois de lavado tem que enxugar com pano úmido e, na sombra, senão mancha... e depois é só lustrar). Nas horas de folga limpo as mangueiras das bombas com álcool, varro o pátio. Nunca me sento, ajudo a trocar, a desmontar, a consertar e recolocar pneu pequeno ou de caminhão. Tem gente que só calibra comigo. Acho que é questão de confiança. Eu não sou dono de nenhuma empresa, nem sócio ou gerente. Não sou administrador de nada (repeti), talvez para frisar e me separar de vez do resto da turma. Não sei. Lá no posto do seu Abílio eu estou à disposição dos senhores, de todos..., e quem não quiser abastecer ou trocar o óleo ou comprar algum pneu ou mandar lavar o carro... quem não quiser gastar nada... pode passar lá igual que eu passo o melhor ar da cidade no carro, de graça, e no fim fica limpo como se tivesse sido lavado. Sou o melhor passador de ar em carro de Erechim.      Terei o maior prazer em receber todos os senhores lá no meu local de trabalho, porque afinal, ... “quem não é o maior, tem que ser o melhor!” - (este era o mote de referência dos postos Atlantic!).

Quando parei de falar... ou teria sido Jesus Cristo ou Deus, que falou por mim, porque não gaguejei nenhuma vez... a sala explodiu em palmas. Quando me sentei, aí mesmo é que as palmas se levantaram. Até o ministro de Deus, digo, o padre, o professor Girônimo Zanandréa batia palmas... enquanto seu crucifixo de peito, até que enfim, tinha sossegado e levava outra vez Ele pendurado no maderio de metal (?).

O nada, o último, o pelado, o rapazote, o guaipeca conseguira enfim se apresentar e ainda assim continuava nesta vida. Não tinha sido abatido por nenhum mal súbito como eu vinha prevendo. E nem deu tempo de mais nada para abrir cadernos ou coisa do gênero porque o sinal bateu. Vários daqueles gerentes, donos, sócios, já administradores autodidatas que buscavam a titulação porque já tinham vencido na vida – vieram então falar comigo. Apertei mãos limpas e macias com as minhas cheias de craca e com cheiro forte diesel.

Daquela inesquecível noite em diante fui meio que ‘adotado’ pelo restante da turma que me dava carona por volta das 19h, falava comigo, me ajudava em contabilidade. Eles que já eram bem resolvidos profissional e economicamente – mas nunca se furtaram em me ajudar e muito. Tenho para com aquela turma e professores uma das gratidões de difícil resgate nesta vida. No ano seguinte, como eu tinha ficado para trás em matemática financeira, acabei tendo aulas com outros amigos, entre eles, Julio Brondani, com quem até debutamos no rádio apresentando um programa na rádio Erechim aos sábados à tarde. Mais tarde, até trabalhei no campus, porque não podia pagar. Passei provas e provas em mimeógrafo à alcool,, ajudei a montar a biblioteca na salinha onde hoje é a assessoria de imprensa, varria a sala, o corredor, o pátio. Era pau para toda obra. Em troca do pagamento das mensalidades, troquei o horário no Posto Atlantic, começava às 5h da manhã e ia até às 13h e das 14h às 18h fazia de tudo no campus ajudando a direção que tinha no front, o professor/diretor, João Dautartas. Outra lembrança importante: Saía às 23h da faculdade e para meu pai não ter que chamar às 4h da madrugada para ir ao posto de gasolina onde comecei às 5h, arrumei uma campanha dessas de campanha, cheia de molas fora do lugar e que me furavam as costas, e passei a dormir no depósito em meio a pilhas e pilhas de pneus, galões de óleo e, por que não, ratazanas apostando corrida a madrugada toda. O que o tempo nos ensina: quando temos 20 anos - não vemos, sequer desconfiamos do perigo. Hoje penso: e se desandasse uma pilha de galões ou de pneus... As 4h45min o Adão que trabalhava de noite no posto, me chamava e então levantava, batia o ponto e começava meu trabalho, assumindo do caixa, as bombas, a calibragem e troca de pneus, a limpeza das mangueiras e do pátio do posto. Viajantes que saíam ainda escuro dos hotéis, passavam pelo posto, para depois percorrerem o interior da região. Quantos pneus de caminhões de leite troquei debaixo de frio de rachar ou sob chuva? Nossa Senhora de Fátima - não acredito que um dia fiz isso. e tudo meio no escuro. Às 8h quando o movimento crescia, de funcionários indo para as demais empresas, eu já estava de pé e trabalhando há 3h. E assim ia até 13h. Corria almoçar em casa e às 14h já teria de estar no Centro de Ensino Superior de Erechim (Cese), ou Fapes ou, bem mais tarde, URI. E tudo - a pé. Nada de carro. Nada de ônibus. 

Voltando ao mestre João. Não fosse ele com sua visão - e provavelmente não duraria nem dois meses na Administração pelo singelo motivo que não tinha como pagar. E foi, para mim, nas dificuldades da Administração, que Jayme Lago, um dia indicou-me para o jornalismo em A Voz da Serra, de onde parti para a profissão da minha vida. (Amanhã o 5º e último episódio).