1º Episódio
1972.
Eu trabalhava das 8 às 12, das 13h30min às 18 horas no Posto
Atlantic do seu Abílio Machry – posto Nota 10. Ali ao lado do Banco
do Brasil. Na esquina. Já estava com o 2º grau concluído e haveria vestibular
para Administração de Empresas, o primeiro, no CESE – Centro de Ensino Superior
de Erechim -, hoje URI.
Meus colegas e grandes amigos do posto insistiam: - “Má tu tem
que fazê o vestibular. Vaaaai... que tu vai passá”. No último dia da inscrição
me levaram de macacão preto com graxa e tudo. Contra a vontade tive de me
inscrever. Administração? De quê? Com base em quê? Era a pressão que eu mesmo
me determinava.
Fiz. No dia do resultado parecia um fim de campeonato: mais de
15 funcionários do posto ao redor do rádio. Quando chegou no 26º - José Adelar
Ody! Nossa Senhora de Fátima – que emoção.
À noite saiu um churrascão, uma baciada de salada de tomate com
cebola, pão e um barril de chope, tudo na lavagem lá nos fundos do posto.
Depois cantamos e fomos quase todos para o meretrício. Era hábito de
pobre naqueles anos. Hoje, o meretrício eliminou as classes
sociais. Socializou-se e está disseminado. Mora nos bairros, no centro, na vizinhança...
Quando vieram as aulas eu me vi no meu lugar. Já na
largada olhava as coisas de baixo para cima. Me descobri peixe mais pequeno do
que era, também porque o meu salário era exatamente do tamanho de um salário –
mínimo. Numa paulada só, para a matrícula, nem 30 dias de serviço deram conta.
Só me safei pela intervenção do seu Alberto Mathias Ody, meu
extraordinário pai, meu socorro de sempre. Por onde tem andado depois de seu
falecimento a 12 de junho de 1998 – dia dos namorados? Não sei por onde anda ele e os
que já se foram, mas, incrivelmente sinto-o sempre perto. E francamente isto
não é exagero, nem socorro à tese feita, ou pense o que quiser. Sinto a figura
de meu pai sempre junto de mim.
Dito isto, logo percebi que ir e entender as aulas e passar nos
exames, isto seria um problema, mas bem menor do que outro: como pagar? Como eu
haveria de pagar uma faculdade!?
E, por que a vida é assim mesmo, quando a gente tem certa idade
a coisa até pode parecer feia, mas encara-se o 'bicho véio', balancei, mas fui.
Nada que nos faça repensar e desistir. E fosse o que Deus quisesse. Ter 20 anos
exatos não é como ter uma vida toda de experiência, cautelas, desafios e, por
que não, medos.
No primeiro dia de aula lá estava eu perdido, absolutamente
perdido, que nem candidato pelado a vereador em tempos de dez cadeiras, no meio
de um mundaréu de gente – todos eles amigos... do meu patrão. Tinham
intimidades que só os patrões têm entre si: se falavam sem licenças, se
chamavam de apelidos, jogavam, jantavam e bebiam como irmãos dados desde
sempre. Não havia assunto preferido ou limitado. Todos lhes eram permitidos, porquanto olhavam- se à mesma altura. Conclusão: os meus colegas de sala de aula eram todos, ou quase todos, patrões. Eram donos de si. Davam ordens. Se um ou outro não - pelo menos - mandava no próprio nariz onde trabalhava.
Eu? Bem eu não contava. De vez em quando um ou outro me olhava
com a esquina dos olhos se perguntando: “.... mas... quem será aquele estranho, desimportante!?”.
Entrei na sala, onde hoje é a capela Santo Agostinho, assim como
um guaipeca, que leva um pontapé numa das ancas e sai se arrastando com o rabo
no meio das pernas, pisando curto, num trote encolhido e, pisando em plumas para
não ser notado. Quieto para não despertar qualquer curiosidade, ou ira, quem levar um coice ou ser
atropelado de vez, a pedradas e um chiiiiiiiiaaaaaaaaaa – sai daí ôôôôôô..... Nem
oi - ouvi. Afinal, eu era um desnecessário. Um intrometido. quem sabe - um fedelho em meio a loções de barba e perfumes.
Sentei na última cadeira, da última fila, do último canto, no lado
esquerdo do professor. Era o canto do canto. Dava contra a parede pelas costas
e pelo lado direito onde hoje é a porta de entrada à capela do câmpus. Mais para trás não tinha como. Mais que aquilo eu não
poderia me esconder. Quem quisesse me ver teria de se virar, levantar, garimpar
os fundos da sala e me procurar. Era ali que eu queria ficar. Ali era o meu lugar.
Longe e só. Esquecido. Bem ali - lá. Deslembrado.
Os meus colegas nem pareciam meus colegas. Eram todos
independentes, grandões, gente de mais idade, se vestiam de outro jeito,
auto-suficientes, superiores. De vidas feitas. Tinham 'curriculuns vitae'. Fumavam sem licença do pai porque eles eram o pai.
Falavam de negócios e de dinheiros que nunca ouvira falar. Meu limite, meu
máximo, meu teto era ele - o salário mínimo. O mesmo valor que deviam pagar, sei lá, a um sem-número de funcionários, imaginava.
No pátio interno onde frequentemente anos depois se estendiam
lonas para eventos, ali descansavam os automóveis dos meus colegas – os
patrões. Não só tinham
mais, inimagináveis mais de tudo do que eu, mas até mais, inclusive do que os professores. Eles chegavam pelos
fundos do prédio, iam de carro até quase dentro da sala. Sinceramente – parecia
que o lugar era deles. Até hoje penso naquilo ou seria nisso! E não era deles
mesmo?
Eu? – nem ônibus pegava porque naquele tempo nem tinha. Hoje –
reclamam dos micro que apanham a gente na porta da casa, na porta da escola, na
porta da porta. Se atrasa... aiaiaiai.
E foi assim que sem saber que já fazia bem para a saúde naqueles
tempos, que eu caminhava como só os pobres e, os remediados, sabem como. Pobre
e remediado não risca um compromisso na agenda e nem calça tênis da moda, se veste com a
melhor malha, carrerga o celularzinho no cinto de algodão, o walkman nos ouvidos - e sai
de óculos escuros a passear pela Sete. Não. Pobre e remediado chega do serviço
correndo, lava a cara, engole um pão com café, pega os cadernos e sai correndo
em outra direção. em direção a outro compromisso. Para pobre e remediado nada é perto. Tudo é longe e
obrigatório. Longe... ou a distância certa. Digamos - a distância de pobre. A necessária.
A que é, e fim.
Eu era como estranho e remediado diante daquela insólita situação
que me assistia, quieto que nem cusco que finge dormir num canto, com a cabeça
deitada sobre as patas e as orelhas sobre as vistas, respirando como em ponto morto - para me proteger dos
olhares. Fingia – porque como cusco que se preza, expia tudo. Especialmente, que
não me expiassem. Ademais, quem haveria de querer saber sobre mim?
Quando chegava para a aula de Administração às 19h15min, com os bofes
pendurados e só seguros pelos anos da juventude – meus colegas sisudos, já meio
gordinhos, fumantes, de barba feita, cortes alinhados e roupas frisadas, estacionavam seus carrões da
época, um ao lado do outro e saiam até com alguma dificuldade dos fofos e
fundos assentos de seus Corcéis e Impalas, Volkswagens e Opalas e Simcas, Aero Willys e DKVs, trazendo à tiracolo – pastas executivas,
volumosos e pesados chaveiros e cobiçadas capangas.
Cada um dos meus colegas tinha o seu carro. Noutro dia uns
vinham até com outro automóvel. E eu, cada sempre indo como sempre. À pé. À pé e com pressa,
fugindo às minhas próprias pegadas que ameaçavam me alcançar. Fugidias de mim
mesmo. Onde ia, mal e mal, a sombra me perseguia porquanto a pressa era mesmo depressa.
No primeiro período da primeira noite de aula, quando o
professor de Metodologia Científica entrou na sala, trazendo uma enorme pasta
preta, eu vi com os meus olhos, definitivamente, que não estava mais no 2º
grau. Até ele, o professor, parecia-se diferente dos que tive na vida até ali no
Mantovani. E o mais importante, foi só então que uma tempestade desabou sobre mim: eu era timido. Ti-mi-do. E mais - gago. Sim, gggg-aahhhg-go. Ainda sou.
- Boaaa nooooiiiiite padre Girônimo, saudaram em coro, os “donos
da sala”, levantando-se em sintonia assim como os estádios se erguem quando se
iniciam os acordes do hino nacional, ou quando o time da casa pega a bola e ameaça
um ataque que tem a cara de gol uns metros à frente. Um que outro ainda alinhava sobre a carteira, junto à bolsa chamada de capanga, uma caneta que refletia luz à me cegar.
Eu que não mandava nada, e nem ninguém tinha vindo falar comigo,
se é que haviam me notado, só pensava em desaparecer dali. Maldita hora em que me inscrevi para o vestibular! O meu lugar, o meu
mundo era o chão pintado de diesel do posto, era o cheiro forte de gasolina no ar e os amigos lá do bar Arthur. Com certeza aquela ali não era a minha casa. Eu sabia
que não iria durar naquele ambiente e então, por que eu ainda insistiria? Que
pegasse os caderninhos e saísse costeando no escurinho, se preciso fosse e até melhor, pelo potreiro que dá para o
Seminário de Fátima e adeus tia Chica! Nem notariam, e se notassem, até dariam
graças a Deus: “‘íííí... se foi o quieto, o guaipeca...”. Mas não. Não sei por que – ficava.
- Boa noite a todos. É uma alegria estar aqui com os senhores,
com as senhoras; que percebo também no mesmo ambiente, e que bom isso... na
abertura deste ano letivo e, ainda mais, abertura de um curso novo. O lindo curso de
Administração. Administração de Empresas. É uma alegria poder conviver com esta
primeira turma deste curso tão importante, e blá, blá, blá.., foi discorrendo o
meticuloso professor Girônimo Zanandréa, com uma fala pontuada, macia, aveludada, e se não fosse - diria - uma fala de padre por que não, de tão afável. Ademais, a plena lotação e até uma emoção não ar, contribuíam para salientar ainda mais suas fofas e róseas bochechas.
Cada vez que ele movia o olhar para o meu lado, eu me encolhia.
Deslizava, me afundava e desviava os olhos. “Que Deus Misericordioso, não
permita que ele me note” era só o que eu pensava e pedia em segredo.
- Muito bem. Senhores e distintas senhoras. E para melhor
podermos nos relacionar, ao longo do ano, que tal nos apresentarmos! O Menino Jesus,
quando veio ao mundo, também foi logo apresentado aos três magos. Eu sei que
quase todos aqui já se conhecem pelas relações empresariais, comerciais e sociais, mas
estamos em um ambiente novo, e considero oportuno a gente se reapresentar, ou,
de repente, tem alguém que não conheceeeemos... disse o professor Girônimo
erguendo as sobrancelhas e olhando para o meu lado, afundando-me ainda mais
atrás da carteira.
- Aiaiaiaiaiaiai, por que é que eu não fui embora antes de
entrarmos na sala!? - gritei dentro de mim. Nossa Senhora de Fátima e agora? Eu vou ter de falar! Mas
como? – ga-gago do jeito que sou, como é quee-e-e-e-e-euuuuu vô
fa-fa-a-a-af-aff-faaaaa-a-a-lar? Pronto. Estava eu recolocado no alvo de todos os bullyngs sofridos no Campos Sales, no JB, no Mantovani - no ginásio, no científico, no posto de gasolina, no CPOR, no,
na... (A qualquer hora o 2º Episódio).