sexta-feira, 27 de março de 2020

O frentista da Administração (1)



1º Episódio

1972.
Eu trabalhava das 8 às 12, das 13h30min às 18 horas no Posto Atlantic do seu Abílio Machry – posto Nota 10. Ali ao lado do Banco do Brasil. Na esquina. Já estava com o 2º grau concluído e haveria vestibular para Administração de Empresas, o primeiro, no CESE – Centro de Ensino Superior de Erechim -, hoje URI.
Meus colegas e grandes amigos do posto insistiam: - “Má tu tem que fazê o vestibular. Vaaaai... que tu vai passá”. No último dia da inscrição me levaram de macacão preto com graxa e tudo. Contra a vontade tive de me inscrever. Administração? De quê? Com base em quê? Era a pressão que eu mesmo me determinava.
Fiz. No dia do resultado parecia um fim de campeonato: mais de 15 funcionários do posto ao redor do rádio. Quando chegou no 26º - José Adelar Ody! Nossa Senhora de Fátima – que emoção.
À noite saiu um churrascão, uma baciada de salada de tomate com cebola, pão e um barril de chope, tudo na lavagem lá nos fundos do posto. Depois cantamos e fomos quase todos para o meretrício. Era hábito de pobre naqueles anos. Hoje, o meretrício eliminou as classes sociais.  Socializou-se e está disseminado. Mora nos bairros, no centro, na vizinhança... 
Quando vieram as aulas eu me vi no meu lugar. Já na largada olhava as coisas de baixo para cima. Me descobri peixe mais pequeno do que era, também porque o meu salário era exatamente do tamanho de um salário – mínimo. Numa paulada só, para a matrícula, nem 30 dias de serviço deram conta.
Só me safei pela intervenção do seu Alberto Mathias Ody, meu extraordinário pai, meu socorro de sempre. Por onde tem andado depois de seu falecimento a 12 de junho de 1998 – dia dos namorados? Não sei por onde anda ele e os que já se foram, mas, incrivelmente sinto-o sempre perto. E francamente isto não é exagero, nem socorro à tese feita, ou pense o que quiser. Sinto a figura de meu pai sempre junto de mim.
Dito isto, logo percebi que ir e entender as aulas e passar nos exames, isto seria um problema, mas bem menor do que outro: como pagar? Como eu haveria de pagar uma faculdade!?
E, por que a vida é assim mesmo, quando a gente tem certa idade a coisa até pode parecer feia, mas encara-se o 'bicho véio', balancei, mas fui. Nada que nos faça repensar e desistir. E fosse o que Deus quisesse. Ter 20 anos exatos não é como ter uma vida toda de experiência, cautelas, desafios e, por que não, medos.
No primeiro dia de aula lá estava eu perdido, absolutamente perdido, que nem candidato pelado a vereador em tempos de dez cadeiras, no meio de um mundaréu de gente – todos eles amigos... do meu patrão. Tinham intimidades que só os patrões têm entre si: se falavam sem licenças, se chamavam de apelidos, jogavam, jantavam e bebiam como irmãos dados desde sempre. Não havia assunto preferido ou limitado. Todos lhes eram permitidos, porquanto olhavam- se à mesma altura. Conclusão: os meus colegas de sala de aula eram todos, ou quase todos, patrões. Eram donos de si. Davam ordens. Se um ou outro não - pelo menos - mandava no próprio nariz onde trabalhava. 
Eu? Bem eu não contava. De vez em quando um ou outro me olhava com a esquina dos olhos se perguntando: “.... mas... quem será aquele estranho, desimportante!?”.
Entrei na sala, onde hoje é a capela Santo Agostinho, assim como um guaipeca, que leva um pontapé numa das ancas e sai se arrastando com o rabo no meio das pernas, pisando curto, num trote encolhido e, pisando em plumas para não ser notado. Quieto para não despertar qualquer curiosidade, ou ira, quem levar um coice ou ser atropelado de vez, a pedradas e um chiiiiiiiiaaaaaaaaaa – sai daí ôôôôôô.....  Nem oi - ouvi. Afinal, eu era um desnecessário. Um intrometido. quem sabe - um fedelho em meio a loções de barba e perfumes.
Sentei na última cadeira, da última fila, do último canto, no lado esquerdo do professor. Era o canto do canto. Dava contra a parede pelas costas e pelo lado direito onde hoje é a porta de entrada à capela do câmpus. Mais para trás não tinha como. Mais que aquilo eu não poderia me esconder. Quem quisesse me ver teria de se virar, levantar, garimpar os fundos da sala e me procurar. Era ali que eu queria ficar. Ali era o meu lugar. Longe e só. Esquecido. Bem ali - lá. Deslembrado.
Os meus colegas nem pareciam meus colegas. Eram todos independentes, grandões, gente de mais idade, se vestiam de outro jeito, auto-suficientes, superiores. De vidas feitas. Tinham 'curriculuns vitae'. Fumavam sem licença do pai porque eles eram o pai. Falavam de negócios e de dinheiros que nunca ouvira falar. Meu limite, meu máximo, meu teto era ele - o salário mínimo. O mesmo valor que deviam pagar, sei lá, a um sem-número de funcionários, imaginava.
No pátio interno onde frequentemente anos depois se estendiam lonas para eventos, ali descansavam os automóveis dos meus colegas – os patrões. Não só tinham mais, inimagináveis mais de tudo do que eu, mas até mais, inclusive do que os professores. Eles chegavam pelos fundos do prédio, iam de carro até quase dentro da sala. Sinceramente – parecia que o lugar era deles. Até hoje penso naquilo ou seria nisso! E não era deles mesmo?
Eu? – nem ônibus pegava porque naquele tempo nem tinha. Hoje – reclamam dos micro que apanham a gente na porta da casa, na porta da escola, na porta da porta. Se atrasa... aiaiaiai.
E foi assim que sem saber que já fazia bem para a saúde naqueles tempos, que eu caminhava como só os pobres e, os remediados, sabem como. Pobre e remediado não risca um compromisso na agenda e nem calça tênis da moda, se veste com a melhor malha, carrerga o celularzinho no cinto de algodão, o walkman nos ouvidos - e sai de óculos escuros a passear pela Sete. Não. Pobre e remediado chega do serviço correndo, lava a cara, engole um pão com café, pega os cadernos e sai correndo em outra direção. em direção a outro compromisso. Para pobre e remediado nada é perto. Tudo é longe e obrigatório. Longe... ou a distância certa. Digamos - a  distância de pobre. A necessária. A que é, e fim.
Eu era como estranho e remediado diante daquela insólita situação que me assistia, quieto que nem cusco que finge dormir num canto, com a cabeça deitada sobre as patas e as orelhas sobre as vistas, respirando como em ponto morto - para me proteger dos olhares. Fingia – porque como cusco que se preza, expia tudo. Especialmente, que não me expiassem. Ademais, quem haveria de querer saber sobre mim?
Quando chegava para a aula de Administração às 19h15min, com os bofes pendurados e só seguros pelos anos da juventude – meus colegas sisudos, já meio gordinhos, fumantes, de barba feita, cortes alinhados e roupas frisadas, estacionavam seus carrões da época, um ao lado do outro e saiam até com alguma dificuldade dos fofos e fundos assentos de seus Corcéis e Impalas, Volkswagens e Opalas e Simcas, Aero Willys e DKVs, trazendo à tiracolo – pastas executivas, volumosos e pesados chaveiros e cobiçadas capangas.
Cada um dos meus colegas tinha o seu carro. Noutro dia uns vinham até com outro automóvel. E eu, cada sempre indo como sempre. À pé. À pé e com pressa, fugindo às minhas próprias pegadas que ameaçavam me alcançar. Fugidias de mim mesmo. Onde ia, mal e mal, a sombra me perseguia porquanto a pressa era mesmo depressa.  
No primeiro período da primeira noite de aula, quando o professor de Metodologia Científica entrou na sala, trazendo uma enorme pasta preta, eu vi com os meus olhos, definitivamente, que não estava mais no 2º grau. Até ele, o professor, parecia-se diferente dos que tive na vida até ali no Mantovani. E o mais importante, foi só então que uma tempestade desabou sobre mim: eu era timido. Ti-mi-do. E mais - gago. Sim, gggg-aahhhg-go. Ainda sou. 
- Boaaa nooooiiiiite padre Girônimo, saudaram em coro, os “donos da sala”, levantando-se em sintonia assim como os estádios se erguem quando se iniciam os acordes do hino nacional, ou quando o time da casa pega a bola e ameaça um ataque que tem a cara de gol uns metros à frente. Um que outro ainda alinhava sobre a carteira, junto à bolsa chamada de capanga, uma caneta que refletia luz à me cegar.
Eu que não mandava nada, e nem ninguém tinha vindo falar comigo, se é que haviam me notado, só pensava em desaparecer dali. Maldita hora em que me inscrevi para o vestibular! O meu lugar, o meu mundo era o chão pintado de diesel do posto, era o cheiro forte de gasolina no ar e os amigos lá do bar Arthur. Com certeza aquela ali não era a minha casa. Eu sabia que não iria durar naquele ambiente e então, por que eu ainda insistiria? Que pegasse os caderninhos e saísse costeando no escurinho, se preciso fosse e até melhor, pelo potreiro que dá para o Seminário de Fátima e adeus tia Chica! Nem notariam, e se notassem, até dariam graças a Deus: “‘íííí... se foi o quieto, o guaipeca...”. Mas não. Não sei por que – ficava.
- Boa noite a todos. É uma alegria estar aqui com os senhores, com as senhoras; que percebo também no mesmo ambiente, e que bom isso... na abertura deste ano letivo e, ainda mais, abertura de um curso novo. O lindo curso de Administração. Administração de Empresas. É uma alegria poder conviver com esta primeira turma deste curso tão importante, e blá, blá, blá.., foi discorrendo o meticuloso professor Girônimo Zanandréa, com uma fala pontuada, macia, aveludada, e se não fosse - diria - uma fala de padre por que não, de tão afável. Ademais, a plena lotação e até uma emoção não ar, contribuíam para salientar ainda mais suas fofas e róseas bochechas.
Cada vez que ele movia o olhar para o meu lado, eu me encolhia. Deslizava, me afundava e desviava os olhos. “Que Deus Misericordioso, não permita que ele me note” era só o que eu pensava e pedia em segredo.
- Muito bem. Senhores e distintas senhoras. E para melhor podermos nos relacionar, ao longo do ano, que tal nos apresentarmos! O Menino Jesus, quando veio ao mundo, também foi logo apresentado aos três magos. Eu sei que quase todos aqui já se conhecem pelas relações empresariais, comerciais e sociais, mas estamos em um ambiente novo, e considero oportuno a gente se reapresentar, ou, de repente, tem alguém que não conheceeeemos... disse o professor Girônimo erguendo as sobrancelhas e olhando para o meu lado, afundando-me ainda mais atrás da carteira.
- Aiaiaiaiaiaiai, por que é que eu não fui embora antes de entrarmos na sala!? - gritei dentro de mim. Nossa Senhora de Fátima e agora? Eu vou ter de falar! Mas como? – ga-gago do jeito que sou, como é quee-e-e-e-e-euuuuu vô fa-fa-a-a-af-aff-faaaaa-a-a-lar? Pronto. Estava eu recolocado no alvo de todos os bullyngs sofridos no Campos Sales, no JB, no Mantovani - no ginásio, no científico, no posto de gasolina, no CPOR, no, na... (A qualquer hora o 2º Episódio).