sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Quando um homem não se deixa guiar pelo oito ou 80

 

Cleo Joaquim Ortigara nos seus 80 anos.

Nos anos 1950 e 1960 o colono (respeitosamente como era de praxe naquele tempo) produzia de tudo: era trigo, milho, porco, mel, feijão, banha, ovos, vacas leiteiras, melado, arroz, nata, salame, queijo, mandioca, alface, repolho, melancia, laranja, uvas, frangos, cana-de-açúcar e... padres.

Lá pelos anos 1950, nos cafundós de Frederico Westphalen, um menino de nome Joaquim foi selecionado por seus pais para o seminário. "Vai estudar pra padre". Eu andava pelos cafundós de Sede Dourado e, se a alegria dos pais do menino Joaquim era igual a dos pais de amigos meus – meu Deus. Aos domingos quando havia missa e a comunidade se reunia, os pais dos seminaristas que conheci, eram o orgulho (no sentido de honra), em carne e osso.

O Joaquim submeteu-se às regras que não permitiam infrações e ao estudo de todas as matérias, de tal sorte que jamais teria algo parecido em casa. Padres de batina preta, dia e noite, minha Mãe do Céu, não temiam nada e, imaginavam – penso eu que se for diferente já peço perdão aos padres, aos padres é pouco – que me perdoe o clero todo vindos de todos os cafundós. Como ia dizendo, não temiam nada, menos seus alunos tirando notas abaixo de 8 ou 10 ou que se desviassem dos caminhos que eram respirados em regras e normas pelos corredores do seminário. Eram invisíveis e intocáveis – mas que existiam, existiam. Um aluno nota 10, que demonstrasse submissão incontestável às leis e ordens internas vigentes era a colheita perfeita para os “batinas pretas”. Se soubesse tocar um instrumento ou cantar, então; era certo que já teria seu ingresso em mãos para entrar direto no céu.

O tempo foi passando e o pequeno Joaquim crescendo, se desenvolvendo até que um dia, assim como São Paulo foi atingido por um raio em seu cavalo e ficou cego – pois com o Joaquinzinho o raio que o atingiu produziu efeito contrário. Ele abriu, e bem – os olhos.

Ao vislumbrar um outro horizonte para sua vida, não jogou sua bíblia fora, muito menos o que aprendeu sobre princípios, valores, amizade, respeito, educação – mas deu-se conta que sua vocação o chamava para fora do regramento sacerdotal e suas obediências para fazer jus a uma batina diária ou a um hábito que o identificasse não apenas como um enviado do Senhor – mas um filho do Senhor, irmão de Jesus, no entanto destinado a cumprir uma outra missão. Abraçou-a e ao passar dos anos acabaria comprovando-se um desafio repleto de armadilhas, um verdadeiro campo minado, que precisava ser superado não para poupar uma perna ou os pedaços do Joaquim – mas para dar vida nova a centenas de municípios e milhares de pessoas.

Antes deste aceite missionário, entrou em dezenas ou centenas de salas de aula por sua região para retribuir o que aprendera no seminário – lecionando na ampla área de letras e, repassando ou dividindo com seus alunos e pares -, as melhores práticas de civilidade que remetiam ao respeito, à amizade, a valores para a convivência em sociedade, a princípios humanitários e à confirmação mais que a uma religião – à um profundo sentimento de fé em um Deus. Um homem de diálogo que não se deixa guiar pelo sempre afrontoso oito ou 80.

Ao contrário de textos anteriores, não queria estender-me por demasiado, mas como disse um amigo que hoje mora no céu, "não leio o Ody porque ele é muito prolixo". Pior que isso é que gosto de ser. E então para apressar, já pulo do Joaquim com seus 10 ou 15 anos, para um Cleo com seus 47 anos e o elejo como, muito provavelmente, uma das figuras mais importantes – se não a mais -, na transformação de toda uma imensa região do estado – Alto Uruguai, Médio Alto Uruguai e Missões -,  quanto à própria ressurreição educacional (não que estivesse morta – mas encontrou um novo viés) ao costurar um acordo memorável que deu origem à FuRI e à URI.

Não foi com uma agulha apenas e com só uma mão que esta obra nasceu e vem se desenvolvendo. Inúmeros foram os atores que desempenharam papéis, nem todos de mocinho. Como num filme, mesmo tendo um final feliz em 19 de maio de 1992 – o longa viveu cenas de aventura, de ação, de suspense, de terror, de fantasia, de espionagem, de ficção, de momentos de quase western, de comédia, de quase guerra, de suspense para sacramentar-se como uma obra baseada em fatos da vida real.   

Convencer entidades educacionais de ensino superior que já tinham suas mantenedoras, a abrirem mãos delas para construir em parceria uma nova – ora isso era muito mais Joaquim um dia padre, jamais conseguiria mesmo rezando sua melhor missa. Colocar essa ideia na cabeça de prefeitos, de políticos, de professores, de instituições empresariais com seus objetivos específicos, de jovens, adultos e idosos, de homens e mulheres, de bispos e pastores das mais diferentes representações evangélicas, convencê-los não a renunciarem aos seus passados, mas a virar as páginas destes e irmanarem-se numa jornada insabida – era um desafio que exigia mais que uma batina preta.

Afora essa verdadeira barca de Noé, dependia ainda e, fundamentalmente de costurar políticas em Brasília, e de aceites ou sims de governos, em especial do governo Federal através de autoridades do MEC. Isso daí já era pano para bem mais que uma agulha – e foram dezenas ou mais -, que aceitaram o fio da concordância, porém, sempre contando na linha de frente com um ex-Joaquim, agora Cleo; um gringo teimoso e obstinado por completar sua missão.

Nove vez fora todos os detalhes que cercaram esta extraordinária obra, que a bem da justiça teve ainda na linha de frente Glenio Cabral por Erechim e Mara Rösler por Santo Ângelo – e reitero, com dezenas ou centenas de outros figurantes e cada um com um papel específico -, o fato é que nem Erechim, nem Santo Ângelo, nem Frederico Wesphalen, nem Santiago e, nem São Luiz Gonzaga e Cerro Largo – e nenhum dos mais de 100 municípios desses arredores -, seriam o que são hoje. Eu sei, não sou tolo para reconhecer que cada uma dessas cidades e localidades não é só educação, não é só Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões. Mas sei também que – feche os olhos e pense na cidade que quiser dessas aí, sem a URI. Pois é!


Irmão Valmor e filhos Francisco e Eduardo

Há oito dias tive o privilégio de ser um dos convidados para os 80 anos do Cleo Joaquim Ortigara. Já na chegada ao som de um grupo de violeiros de Itá (muito bom – recomendo), dava o tom do ambiente que se dividia em pequenos grupos misturando familiares e amigos do homenageado. A fumaça dos assados controlados pelo Eduardo contrastava com o ar puro de brisa sob a lâmina de água do lago. Um taquaral - penso na propriedade do Mário Pagliosa -, sombreava para ninguém mais que a carne suína – assasse também.

Embora só para homens, entro na memória do Cleo, saudando sua esposa Juracy, seus filhos Daniela, Eduardo e Francisco, noras, Cristine e Talissa e seus netos – Vitória Luíza, Matteo, Gabriel e Antonella e, bisneto – Bernardo. Presentes ainda os irmãos Valmor e Elias e os cunhados Jerson e Valdemar.


Filhos Francisco e Eduardo. Teve até torta.
Emocionado, como é da genealogia da qual veio o Ortigara homenageado, fez uma manifestação enxuta e carregada de sentimentalismo. Lembrou da família, dos amigos, pediu perdão ao “Senhor” se porventura O tenha magoado ou decepcionado por atos ou omissões. Observou que nos seus 80 anos só pedia ao “Senhor” que continuasse a ter “boca limpa para poder Te louvar, dentes para poder comer, pernas para poder andar, braços para poder abraçar e um coração para continuar a amar”. Lembrou do convite que fizera quando dos seus 70 anos para que retornassem nos seus agora, 80. E de antemão renovou convite a todos para “os meus 90, porém quem lá estiver ajudará a pagar a festa”, numa demonstração que o Joaquim seminarista ainda vive dentro dele, bem do jeitinho como a igreja católica mais gosta e assim sempre ensinou seus fieis. Uso o Joaquim aqui, porque me parece mais identificado para um seminarista, para um coroinha. Ademais - avô de Jesus Cristo. 

Aplausos durante o "Parabéns a você".
Mas a história haveria de consagrar Cleo Joaquim Ortigara, um homem simples, humilde, inteligente e obcecado em ver alcançado um sonho que de alguma forma renovou a vida de pessoas, de comunidades e regiões onde respiram todos seus atores – sejam eles de carne e osso, bens materiais ou intangíveis como alcançar metas e, por que não, renovar o ânimo, a autoestima, a esperança e a espiritualidade. Um sonho que as gerações de hoje e de amanhã tem o dever moral de levar adiante porquanto não tem proprietário – mas das comunidades é.  

Os colonos de ontem são hoje - agricultores ou empresários rurais. Mesmo que muitos continuem produzindo o que produziam nos anos do Joaquim seminarista – a questão é que estão nos tempos de Cleo/80 -, tempos de produção tecnológica, vivem uma vida em tempo real, um tempo onde os acontecimentos do outro lado do mundo estão na palma da nossa mão. Mas atenção – pois a vida de internet, maquinário agrícola com controle remoto, celular e Inteligência Artificial, assim como aquela de cheiro de chiqueiro, salame defumado em porão fresco, alfafa e arado -, como diria Kafka pode não passar de uma realidade, mas de aparência - porquanto tudo ainda encontrará seu fim. 

Violeiros de Itá no Pier animaram a festa.

Logo, preservemos princípios, valores e fé, porque se o lago da barragem do rio Passo Fundo é visível e tem um fundo – o outro lado ainda nos é invisível e pode ser mais profundo do que o nosso intelecto pode imaginar. E em sendo assim (aberto ao contraditório) – enquanto adultos sejamos mais Cleo, sem nos esquecermos, jamais, que um dia, lá na nossa infância, já fomos sob muitos aspectos – meio Joaquim.


Matteo, Ademir, Eduardo, Cleo e Gabriel

Cleo Joaquim Ortigara diz o que pensa porque pensa o que diz.
Que bom isso.
E assim do alto dos seus 80 anos de vida lá nos cafundós, onde um lugar belíssimo faz plantão, não tive de ouvir de novo, outra vez o afamado "Ainda estou aqui!".



Nota: Algumas fotos são de minha autoria, outras cedidas pelo Eduardo/Divulgação