Foto: Rodrigo Finardi |
Certa feita eu passava com meu Gol quadradinho pela JB Cabral sentido centro bairro. Chovia muito. De repente, em frente ao Sponchiado, ouvi um ‘bumm’. O golzinho levantou o rodado traseiro e parei. Alguém tinha batido nele. Era um carro que estava estacionado em frente ao Sponchiado e dava ré. Provavelmente por causa da chuva, vidro embaçado, enfim; e no ré, o motorista não me viu passando. Descemos os dois debaixo de chuva grossa. “Mas bááá 'seu' Odyy. Me desculpe. Eu não vi”. Minha nossa – pensei. Era o Gildinho. Ele logo foi dizendo: “Manda arrumar. Ainda bem que não foi muito. Manda arrumar que eu pago o estrago”. Como foi só uma encostada, e ainda por cima o meu Golzinho era mesmo um “pau velho”, logo ajuntei: “Seu Gildo. Vamos deixar assim. Cada um arruma o seu e tudo bem”. E ele: “Não... manda arrumar que eu pago. Eu dei ré e não vi”. Não me lembro mais – mas no fim das contas nos despedimos, ambos molhados como dois pintos, até achando graça do episódio e tudo ficou como se nada tivesse acontecido. Afinal – eu como todo mundo -, admirava o Gildinho.
Chiquito e Gildinho no início da carreira nos anos 1960.
Foto: Arquivo/Os Monarcas
Me surgiu uma ideia: “Vou contar a história dos Monarcas!", pensei. Eu trabalhava na A Voz da Serra. Liguei e quem atendeu foi o Chiquito. Ele me contou toda história dele e do irmão e do grupo, até ali. Era início dos anos 1990. Vindos de Soledade, traziam no sangue a hereditariedade do pai, acordeonista. Em 1972 os irmãos já usavam o nome “Os Monarcas”, oficializado em 1974 com o ingresso de mais três músicos.
De comum
acordo, segundo Chiquito – em 1990 a dupla se desfez. Em 1995 ele criou seu
próprio grupo, também de música gaúcha, “Chiquito & Bordoneio”.
Retomando a
historia de quando Gildinho chegou a Erechim, ele ia tocando onde podia. Com o
irmão caçula animavam pequenos eventos. Aos poucos, a agenda dos irmãos começava a lhes tirar
de casa todos os sábados à noite. Aos poucos viram-se em salões maiores, sempre nas
redondezas de Erechim.
Decididos ao
último fio de bigode, ou de cabelo, iam atrás de tudo. Um dia conseguiram o que
lhes abriria as portas definitivamente: um programa diário e ao vivo, na rádio
Erechim. Era o “Assim canta o Rio Grande”. O auditório, sempre lotado. Mais de
cem pessoas para ver a dupla de perto e de graça. E assim, de segunda a sexta
às 13 horas, o saudoso radialista e animador Jovino Alves Martins, abria os
microfones no Auditório Adeudato Araújo e anunciava empolgado: “E com vocês,
Gildinho e Chiquito”. Aplausos. A maioria era agricultores à espera do ônibus para voltar às roças e contar que viram de
pertinho – Gildinho e Chiquito, que ouviam sempre pelo rádio à bateria nos cafundós do Alto Uruguai. Aquilo foi um rastilho de pólvora apressando a explosão do sucesso.
Um dia o Gildinho decidiu comprar um gravador para ampliar o repertório. Ouviam as músicas e tiravam de ouvido, enquanto iniciavam aulas de música no Belas Artes.
Conforme relato de Chiquito, foram a uma loja (que não existe mais – era de uma rede) e
a funcionária logo perguntou se tinham preferência por alguma marca de gravador.
Como a dupla estava começando e o dinheiro era escasso, disseram que queriam um
bom, mas nem tão caro. A lojista lhes mostrou alguns modelos e ao saberem do preço, pediram
se poderiam pagar em prestações. Ela então teria olhado para os dois e perguntado o que eles faziam: “Somos músicos!”. A funcionária então
teria reforçado, “ah, o senhor gosta de música e quer gravar músicas”, mais ou menos nesses
termos, e repetiu: “Mas o senhor trabalha em quê? Qual é a sua profissão!?’. E
o Gildinho: “Sou músico!”.
Diante do impasse, e não conhecendo Gildinho nem Chiquito, que havia pouco tempo que estavam na cidade, teria então afirmado que venderia o gravador em parcelas, mas que necessitava de um avalista. Gildinho pensou, pensou e disse que o senhor Edson Cervi – Casas Alegretti - que patrocinava o “Assim canta o Rio Grande” conhecia eles.
A lojista telefonou para o senhor Cervi e disse que tinha à sua frente dois homens que ela não conhecia, que vinham de fora e queriam comprar um gravador – e como precisavam de um avalista eles citaram seu nome.
Segundo Chiquito o
senhor Cervi teria perguntado – “como é o nome deles e o que eles querem
comprar mesmo?”. A lojista respondeu: “Um gravador – seu Cervi. Dizem ser Gildinho e Chiquito”. Ao ouvir o
nome, o Edson Cervi teria dito: "Ah... Pode vender o
gravador, pode vender tudo... que eu garanto". A lojista só dizia, sim, sim – sem problemas,
e a dupla saiu da loja com gravador que pagaram como queriam e podiam: em
prestações.
Em 30 de agosto
de 2016 elaborei um ‘discurso’ em nome dos novos membros que estavam
ingressando na Academia Erechinense de Letras: Dra. Karina Denincol, Dr. Paulo
Dias Fernandes, eu, e ele – o Grande Gildinho, líder dos Monarcas.
Falei um
pouco de cada um. Sobre Gildinho disse: “O Nésio Alves Côrrea, o nosso
Gildinho, pai do hino popular desta terra ‘Erechim – história e canto’... por
ora deixa uma discografia... um legado difícil de ser mensurado por sua importância
à cultura musical gaúcha. Além dos fandangos e shows Brasil afora levando a nossa
música. Isso sem contar as apresentações além mar...”.Gildinho recebe certificado da filha Sandra de membro
da Academia Erechinense de Letras. Foto/Arquivo AEL
Nesse meio
tempo os Monarcas gravaram 50 discos, dez deles de ouro. Levaram o extinto Prêmio
Sharp e quatro vezes o Prêmio Açorianos. Gildinho foi Patrono da Semana
Farroupilha, recebeu o Prêmio Guri e a Medalha do Mérito Farroupilha da
Assembleia Legislativa do Estado. Os irmãos Chiquito e Gildinho - Foto: Arquivo/Os Monarcas
Com apresentações incontáveis no Brasil, na América Latina e nos EUA – nada mau para aquele destemido jovem, e seu irmão; muito consciente do que pretendia. O mesmo que teve de comprar um gravador à prestação e com avalista. E conseguiu os dois.
Me atrevo a
pegar emprestada a mensagem da confreira Maria Vanda Krepinski Groch: “O que o
Gildinho fez por Erechim e sua cultura, ainda saberemos. Foi muito. Fica um
exemplo e uma herança a ser recompensada por Deus, pela sua grandiosidade”, tão
logo soube do falecimento do Gildinho.
Sim, Vanda.
Quando os
artistas de excelência, os acima da média, os chamados ‘fora da curva’, os
gênios, enfim quando eles ainda estão conosco, não pensamos e nem tiramos um tempo para avaliar sua importância. Tudo que nos era e é ofertado
por eles, apenas vamos saboreando em tempo real. Não avaliamos o tamanho da
qualidade que nos é disponibilizada. Apenas
quando sem volta, quando partem, é que a nossa memória começa a lembrar, a relembrar
e a se dar conta do que vivemos num determinado período. Do privilégio que
durante um tempo estava ao nosso alcance, no nosso dia a dia.
Sem
quaisquer comparações, pensemos no Teixeirinha. Levou anos para ser reconhecido,
mas cada dia mais o é. Lembremos de John Lennon. Os melhores guitarristas dos “Beatles”
eram George Harrisson e Paul MacCartney, mas quanto mais o tempo passa, mais a
liderança do grupo se afirma na figura de Lennon. José Mendes era quase um
desconhecido até sua obra “Para Pedro” – e hoje ele faz vizinhança entre os grandes.
O mesmo vale para os “Mamonas Assassinas”, ou não! Reitero – ninguém aqui está
comparando sucessos ou o tamanho dos artistas na história do mundo da música. Apenas trazendo à lembrança, 'casos' que demonstram que ídolos ou lendas não
morrem jamais.
Apesar de todos dos prêmios recebidos por Nésio Alves Côrrea”, o Gildinho; somente o tempo haverá de encontrar o verdadeiro lugar para este macanudo da cultura estadual. Revirei minha memória e não encontrei - nem pessoa, nem instituição, nem ninguém - que mais projetou e difundiu o nome de Erechim neste mundo, do que o líder dos Monarcas com o seu grupo.
Os Monarcas - Foto: Arquivo/Os Monarcas
Os Monarcas
vão continuar.
Por algum
tempo ou quem sabe para todo o sempre, nos fangandos e bailões por eles
animados, haverá mais que a falta de um gaiteiro simpático, a ausência de um
homem feliz com o que fazia, a ausência da voz nem a melhor nem a pior, a ausência de uma liderança que estampava no semblante, e a presença, ali, ao vivo, de um ídolo
de todos os públicos que parecia não ter limites para um fim de baile.
Só a doença
e o apagar derradeiro reservado a cada um de nós o seguraram.
Se o fole se
fechou para seus dedos – a memória da sua energia e da sua "contagiante presença
de palco", absolutamente única, projetava um ser, um músico fazendo-se mais
firme e mais forte à medida que o fandango avançava na madrugada.
Como as verdadeiras exceções - trata-se de um personagem que o próprio tempo se encarregará de retocar e reforçar, mesmo quando não estivermos mais por aqui. Bem igual ao que acontece com as exceções, com os gênios nas mais diferentes atividades da vida humana.
Nésio Alves Côrrea, o Gildinho. Foto: Arquivo/Os Monarcas |
Naquela noite de 2016 quando Gildinho ingressou na Academia Erechinense de Letras, fechei minha fala ousando entre um ler e cantar... “Quem passar pelo planalto com certeza/ao olhar para a mais bela natureza/ há de ver campos de mel de guaramirim/vai provar o mate da hospitalidade/vai levar no coração uma saudade/e a vontade de voltar pro Erechim”.
Gildinho virou a cabeça para o microfone e com o canto do olho deve ter pensado: "Esse guri. Mas que ousadia. Quem ele pensa que é!". Bem igual a todo líder que tem as rédeas do que precisa ordenar e ditar o tom. O Gildinho - também era assim. Um líder que nunca deixou a fama lhe subir à cabeça ou atrapalhar seus planos para os "Os Monarcas" nem para sua vida pessoal.
Nos seus 82 anos de idade, Gildinho foi um homem por determinado período até transcender-se e virar uma identidade. Em breve será estátua. Com o tempo - uma lenda. Uma lenda nada fantasiosa, apenas verdadeira para privilégio de quem viveu no seu tempo. E como os tempos de hoje não são mais os de andar à cavalo, como Gildinho o fez muitas vezes, por que não armazenar este lendário na nuvem - como dizem hoje em dia!