(Odyflix. - Mini série "Em tempos de Quarentena" - Seis episódios)
O Frentista da Administração
3º Episódio
O Frentista da Administração
3º Episódio
(Mas eu juro pelo meu emprego que
mantinha com unhas e dentes – de frentista
a do Posto Atlantic, eu juro que preferia mil vezes, não – mil vezes é
pouco -, um milhão de vezes eu preferia copiar aquelas contas enviadas por
satanás, do que ouvir meus colegas se apresentando... proprietário, sócio,
diretor, gerente, dono, administrador, Banco do Estado do Rio Grande do Sul,
Banco do Brasil, Secretaria da Fazenda, agropecuarista...! E o professor de
Metodologia que parecia ter baixado direto do céu em cima do estrado, esfregava
candidamente as mãos, enquanto um enorme crucifixo lhe pendia e balançava no peito.
Lá do canto do canto, do último canto do meu canto da sala eu ju, eu jjjj... eu
ju-ju...e,e,e, jjjjjjjjuuuuuro que parecia que tinham descido Ele do crucifixo
e me levavam de arrasto para ocupar Seu lugar. “É hoooojee. É hoje que tu vai
ver o que é bom pra tosse”, era o que martelava dentro da minha cabeça. Eu já
me via no lugar Cristo. Só não haveria de ressuscitar).
- Muuuuuitto bem, prosseguiu o professor Girônimo Zanandréa. Vamos ao próximo
aluno?! O seeenhooor ééééé?
Eu sou João Aldo Zanin. Sou corretor de imóveis. Tenho meu
escritório ali no Condomínio Erechim e estamos à disposição dos amigos!
(palmas....).
Aiaiaiaiai – e-e-e-euuuu, eeuuuu preciso de um imóvel?...
pensava lá no meu canto com a cara pegando fogo e enfiada entre as pernas. Eu
que não tenho nem onde cair morto e o colega se colocando à disposição de quem
quisesse um imóvel. Mas ele estava na dele... e eu... bem eu estava na minha,
não... na minha não... estava no meu... azar de ter sido aprovado.
- O próximo, disse o professor com os dedos entrelaçados como só
os tranquilos titulares ocupantes do Ministério de Deus podem se colocar.
Sou Dorvalino Ceconello, da Cooperativa de Getúlio Vargas; me
chamo Eugênio Miroslau Kluch do Banco do Estado; eu sou Heitor Detoni...
trabalho como contabilista; sou Henrique Ângelo Salomoni, sou granjeiro; me
chamo Idione Enderle e trabalho no INPS; meu nome é Ilário Strada e sou do
Daer; José Vedana, vendedor de veículos; José Thorsetenberg, Banco do Brasil;
Ademir Basso, da Ascar de Concórdia, plá, plá, plá...; Jorge Augusto Muller, do
Banco Nacional do Comércio; Rui Oliveira Rigoni, Intecnial... plá, plá, plá...
Luiz Álvaro Prataviera, Lurdes Pedron... Caixa Econômica Estadual; Osvaldo
Gorski... Banco do Brasil, plá, plá, plá, e plá e plá...!
Chega Meu Deus – chega! Eu não acredito que... que... que tô
aqui no meio dessa gente que... que... isso sim é que é geeennte e não um
desencaixado como eu. Todo mundo é alguma coisa de importante e eu... um... um
o quê? Aonde é que eu andava com a cabeça quando aceitei fazer vestibular?
Tanta gente que rodou e eu aqui? – eu pagaria, sim, se eu pudesse eu pagaria
para ficar no lugar de um rodado no vestibular – mas não, agora eu estava no brete
que nem boi no frigorífico da Cotrel, ou melhor, da Aurora.
- Mas olha só minha gente... que bonito néééé´. Todos já
maduros, pais de família, certamente cristãos... e agora aqui – dispostos a um
novo desafio... ensinava o ministro de Deus, o professor de Metodologia,
Girônimo Zanandréa a quem só faltava um púlpito para comandar o espetáculo... o
espetáculo que culminaria com a minha execução na apresentação. E cada vez que
seu crucifixo balançava – mais eu me via pendurado na cruz!
Aiaiai – se, se... seeerá que eu co-co-co-me-cocome-cocomeeeço
por Adelar, ou por José... ou José Adelar... e o, o, o Ooddyyy – será que eu
digo?! Quem é gago sabe que começar com “A” parece que empaca Não
a-a-a-a-av-av-aaavannnça! Que desgraça eu ter passado. E continuava: “Me chamo
Renault Tedesco e sou da Emater de Gaurama; Claudete Cantelle; Ivone Maier,
Benenoy Fish, trabalho um Curtume de Passo Fundo, Adalberto Valentini,
engenheiro de Erechim; Vinícius Mário Cesne; Adão de Oliveira Smelindro - Banco
do Estado; Abigail Weimann, Secretaria da Fazenda; Zulmiro Zucchi, comerciante;
Sérgio Alves Trindade, Caixa Econômica Federal e era só plá, plá, plá, e mais
plá, plá, plá...; Sadi Provenzi, Banco do Estado; Sérgio Antonio Vial, Banco do
Brasil; Gilson Edy Carraro – diretor do jornal a Voz da Serra... plá, plá, plá,
pluuum!
- Olha só que lindo... todos muuuuito bem já encaminhados nesta
vida dada por nosso Senhor Jesus Cristo - Senhor Pai que tanto nos ama a
todos... pessoas distintas da sociedade local e regional e que estão vindo em
busca de mais conhecimentos, demonstrando sua ânsia pelo saber e de se tornarem
pessoas mais capacitadas, afinal, a educação está na origem das pessoas e das
sociedades de bem e, blá e blá, e mais blá – era mais ou menos o que os meus
ouvidos teriam apanhado naquela noite de inesquecível memória. Eu queria saber que horas eram,
e como míster Bean, me esgueirava com o pescoço, com a cabeça, com as orelhas,
com os olhos, com o tronco... com o que pudesse tentando ver quanto faltava
para bater – mas o meu colega da esquerda não parava de se remexer e o da
frente tinha seu relógio de ouro escondido sob as mangas de um fino casaco.
Casaco não. Paletó!
A fila estava terminando. As apresentações da primeira turma do
curso de Administração de Empresas do Cese em 1972 estavam chegando ao seu fim
e a minha vez, a minha hora; sim, aquela seria definitivamente a minha hora,
estava também chegando. Os últimos falavam depressa e a minha vez vinha contra
mim como um tsunami. Tu vê e não pode fazer nada. E abrir os braços e esperar o
estouro contra o peito, a cara...
Meu coração não batia. Pulava. Eu suava nas mãos e a água me
corria pelas pernas. Eu queria rezar – mas não achava o começo. Já ia direto
para a “...seja feita a Vossa vontade assim na terra... mas livrai-nos do mal
amém... amém e amém!”.
Eu queria me ofender – mas nem achava as palavras. Até os
palavrões contra mim eu tinha perdido. Minha brincoringa tremia sobre as
canelas inundadas e geladas. Eu procurava um papelzinho que não existia no
chão, eu fechava, abria e fechava os botões da camisa de casemira que minha mãe
fizera, eu arrumava e desarrumava algum fio dos meus cabelos encaixados. Tossia
alto, parecia que me afogaria no seco do meu canto de tanto nervosismo. Minha
testa e as bochechas eram a faísca de todos os vulcões. Eu estava para morrer,
à beira de um colapso e ninguém via nada, ninguém fazia nada. Só podia,
pensava... eles queriam que eu morresse ali mesmo e pensando bem, do jeito que
eu me via, melhor lugar não havia. Seria ali... lá... aqui no canto do canto do
meu canto da sala. A primeira e única morte num canto de sala de aula –
abatido, vitimado por uma hecatombe nervosa. De que mais eu morreria? – talvez
de nada! E de que mais poderia morrer um nada senão do nada? – era o que todos
os meus sinais vitais e espelhos me diziam. Um nada – aqui no meio de tanto.
Então – que faleça de um tiro só e acabe de uma vez com esse sofrimento, essa
agonia que igual só pode estar na cabeça dos pobres sequestrados do Iraque...
enquanto tem cabeça!
- Muuuuuito beeeeeeem... disse o bispo, digo, disse o padre, o
Ministro de Deus, o professor Girônimo Zanandréa. E agora – vamos ao último,
isso mesmo... nunca, mas nunca alguém fora tão feliz para me definir. Vamos ao
último. Lá na última carteira. Quem é aquele menino, aquele rapazote lá? – ao
mesmo tempo em que todas cabeças da sala, todos os olhos de Erechim... toda
aquela multidão de vencedores, se viraram e me acenderam um milhão de lâmpadas,
e me focaram – me olhando, me mirando, me flechando, me fuzilando com tiros e
raios de olhos certeiros e mortíferos como os tomahawk, seria ali e não mais em
outro lugar. Minhas orelhas queimavam, a testa tisnava, o suor escorria gelado.
Eram todos os contrastes de uma vez só: o gelo se derretendo sobre meu
corpo em ardência.
Era eu... um nada – numa sala onde todo mundo era muito
e, todos, todos já encaminhados ou bem feitos na vida, sentados como uma
plateia que parece adivinhar o esquecimento da fala ou o tropeço do artista
nasal. Eu artista – sim, artista no paredão enquanto mais de quarenta armas
estavam apontadas para mim. Eu não sabia mais onde trabalhava, onde morava, de
onde vinha, como fora parar ali, lá, e de repente o professor, o padre com o
crucifixo no peito me empurrou: “vamos menino. O que foi. Está udo bem contigo.
Vamos. Fale. Teus colegas querem conhecê-lo. Eu sei que nem todos tem o dom da
palavra e, para uns, este momento até é difícil. Mas tudo, tudo é um aprendiza.
Coragem. Vamos – fale. Somos todos ouvidos.
Eu me levantei – sim, eu me lembro, eu consegui me levantar e...
e... disse! Sssiiimmmmm eeeuuuu diissssssssssseeeeeeeeeeeeeeee! (Amanhã o 4º episódio).-