terça-feira, 3 de março de 2020

A praia não mente

Crédito: Guilherme Ody
 Sem preconceitos e sincero com nossa própria sinceridade,
nunca se mentiu tanto. Alguém ainda tentará salvar a assertiva com o Salmo Preferido do Século 21: “que nada! Sempre foi assim. Acontece que antes a gente não ficava sabendo e quando a notícia vinha – já havia muito tempo”.
Hoje é igual ao que sempre foi, só que hoje a gente clica e vê o tsunami de 2004 na hora quantas  vezes quiser.                                   

Leva numa caixinha de fósforos , digo, num
pen drive
e ali estão centenas de textos,
fotos, músicas, filmes...
Notícias.
E mentira – muitas mentiras.
E, incrivelmente, até algumas verdades.

Mas em termos de mentira ela caminha sim junto com o tempo.
Sempre se mentiu
– disso ninguém duvida.
Mas nunca antes na história deste...
mundo
mentiu-se e mente-se tanto.
Desde dentro de casa à sacristia.
Do emprego à política.
Da fidelidade à qualificação.
Do amor à saudade.
Do que se deseja a que se pode.
Do que se tem ao que jamais se haverá de ter.
De quem se pegou - a quem não quer pegar a gente.
Da economia à... economia.
Da ilusão ao real.
Do que gostaríamos de ser
– ao que de fato somos.

Deitado a 39 graus numa cadeira de praia
e vendo até onde a vista alcança
- o gigante de água,
na areia,
toda a mentira se desfaz como um punhado dela 
em mão fechada com água salgada.
Por um instante a verdade está – mas se esvai por entre os dedos.
Parecia que era verdade eterna, mas não;
uma nova verdade de faz.

Caminhando na areia
a mentira se veste de verdade
e aí, bem aí,
nada do que parecia é,
nada do que diziam é,
tudo que se imaginava – não é.
Só uma coisa é: tudo é verdade.
Uma surpreendente nova verdade.
Para o bem.
Para o mal.
E não é mentira!

Aquele cabelo longo e armado,
aquele quadril pescoço de girafa,
aquela barriga de tábua de pinho lustrado, 
aqueles seios de pêra,
aquelas pernas longilíneas,
aquele vestido de festa da alta,
aqueles cílios postiços,
aquelas unhas,
aqueles dentes alvos,
aqueles lábios de pura carne,
aquele, daquela BMW,
aquela, daquele Lamborghini preta,
aquele patrão super bem de vida,
aquela do 23º andar que me faz sonhar acordado,
a do ray ban vermelho,
aquele cientista,
aquela empresária imponente, mas ainda fêmea;
aquele peitoral de Johnny Weismuller,
aquele alto e arrojado como Liam Neeson, 
aquele “dono” da cidade,
aquele todo poderoso da cidade,
aquela estrangeira,
aquelas calças de marca,
aqueles bonés de marca,
aquelas bolsas de marca proibida aos comuns, 
aqueles ternos de atores de Hollywood,
aqueles braceletes de Cleópatra,
aqueles modelitos em carne, e
ossos encabidados
no último ditado da moda que dita a moda
– aonde estão que não os vejo!?
Estavam na minha cidade.
Nos meus bailes.
Nas lojas, 
nas calçadas, 
na outra quadra, 
na igreja, 
na minha escola, 
na minha rua.
Na minha TV...

Biquínis e tangas
ou calções não mentem.
Jamais.
E mais que isso, além de nunca mentirem,
trazem consigo,
oferecem gratuita, democrática e socialmente 
o que os adereços omitem,
escondem em mentira desavergonhada
que,
assim, uma simples praia,
desnuda e coloca à pés.
Nossa Senhora de Fátima
– até eu me achava...
Sim porque nunca tinha percebido.


Fosse a praia com seu sol ou nuvens,
o mar com seus azuis,
esverdeados
ou até acinzentados.
Fosse a praia com sua areia miúda ou encharcada pela maré.
Fosse o vendedor de picolé
e salada de frutas,
de chapéus ou tangas.
Fosse o grupo de pescadores a decidir como desencalhar o barco
e aonde largar a rede.
Fosse a caipirinha,
o milho verde,
a cadeira,
a barraca árabe,
o chuveirinho
e as palmas coletivas sinalizando que uma criancinha está perdida da mão do pai
(ou o pai que se perdeu de tanto “admirar”)
- fosse o barrigão que esconde,
tapa,
omite,
e apaga qualquer sinal de genitália de Adão ou Eva,
fossem os chinelos de dedo levados à mão,
os celulares,
relógios,
bronzeadores,
os trocados de reais,
as chaves,
caixas de isopor,
latinhas e latões de cervejas,
fossem as conchinhas
enfim,
fosse esse cenário - digamos, algo meio político,
e certamente teríamos um modelo híbrido 
acasalando um sistema democrata/socialista, 
como jamais
- o homem pelo homem,
conseguiu ver com os próprios olhos e, experimentar com a própria vida
no seu dia a dia.

Fosse isso um sistema político
como conhecemos,
aí a verdade iluminada pelo sol e pelo resplendor das ondas de mar,
simplesmente cambalearia,
porquanto os adereços da mentira já se fariam
a conspirar,
e contando com o nosso mais descarado pleno consentimento;
conspirando por inteiro contrário àquela verdade praiana
– a única verdade,
a última verdade.

Quando quem quiser descobrir
e ver-se como de fato é,
avaliando-se com os seus congêneres,
desapegue à casa ou do apê de quatro/cinco quartos, 
e fina mobília,
e do carrão último tipo.
Largue o exagero de qualquer circunstância,
largue o exibicionismo sempre nefasto,
porquanto falso, 
e sem utilidade prática alguma,
largue a euforia com a qual num simples espelho 
- que sempre nos enganamos;
largue a prepotência,
a arrogância,
o neologismo do eumismo,
vire às costas à conjugação de todos os verbetes 
apenas na primeira pessoa do singular.
Sim – quando estiver com saudade de você,
isso mesmo de – vo-cê;
jogue num canto da vida
- o que nunca levarás contigo,
que só serve para nos iludir,
submetendo-nos ainda ao ridículo de acharmos que somos, 
o que
realmente não somos.
Quando assim ensaio me portar - sábios riem.

Bota um calção,
enfia-te num biquíni,
mande vir uma caipira,
deite na última fronteira entre a areia mais seca e a onda mais longa do mar.
Se olhares para frente
verás mar-sem-fim,
para os lados - verdades em pé,
para trás – a cobra tentando seduzir com a maçã da mentira,
para cima – o céu azul sem fim.
O infinito.
O espelho fiel do que,
de fato és,
do que, de fato, somos.
E olhando para dentro de nós, 
veremos - a dimensão estampada na cara, 
no jeito, 
na fala e na interação com os nossos amigos.

Tudo isso,
de cabo a rabo,
de cima abaixo.

Óbvio que existe o interior de cada um.
Porém, nem sempre o interior  se deixa exteriorizar, como de fato se é – por fora.

Assim sendo
é de difícil contestação
o que se deita ou 
se faz caminhar à brisa do mar: a praia não mente.