terça-feira, 17 de dezembro de 2024

 

Elisa Ody - Foto Arquivo


 Hoje, 17 de dezembro é o aniversário da Elisa, minha filha. Que ela seja o que sempre tem sido – e a saúde não lhe falte. Mas vou me permitir recordar alguns 17 de dezembro na minha vida.

 

Corria 1967 e era sábado.

Dia 16 para 17 de dezembro.

À noite no C.E.R. Atlântico haveria a formatura do Ginásio do Mantovani – 1º grau, ensino fundamental hoje.

Eu já tinha lustrado meu Vulcabrás e o terninho dormia sobre a cama, a gravatinha, chic, com cabeça de boi metalizada esperava.

 

Tudo seria normal não fosse um singelo detalhe: eu ainda não sabia se tinha passado na “segunda época” de Matemática.

 

Não dava mais para suportar a ansiedade.

Atravessei a rua e fui até o Mantovani. “A professora ainda não entregou as notas”, disse-me uma servente.

O dia da formatura e só a servente e eu no colégio.

 

Não me contive mais e então saí correndo como Forrest Gamp até a casa da professora.

A Geni morava lá perto da Incasel.

Naqueles anos a Incasel (na rua do Querência) ficava do Mantovani como daqui a Getúlio Vargas. Era lããã... fora. Hoje parece tudo mais perto.

 

Corri como só um guri de 14 anos corre, ou corria, quando precisa ver uma nota, a última nota, a nota da vida, a nota da segunda época.

 

- Nãããoo... a Geni não tá... ela foi lá no colégio levar a nota d’um aluno que ficô em segunda época, disse-me, acho que foi seu pai que me falou. “O, o, o ....  senhor não sa-sa-sabe se o a-a-aaluuuuuuno passou?”, perguntei.

-       Ahhhhhhh... não sei meu filho... isso é só ela!’.

 

Minha Nossa Senhora de Fátima... então ela já sabia se eu tinha passado ou rodado, se eu me formaria... sabia se a minha vida acabaria ali mesmo, naquele sábado... rodado!?

 

Foi então que corri como nunca mesmo.

Incasel, Sete de Setembro, HC, mato da comissão, fiz a curva do portão do Mantovani num pé só e lá estava: na porta de vidro havia um papel... eu via de longe... sim, havia um papel branco e com um nome... fui indo, indo, indo e... lá estava: José Adelar Ody (aprovado). Salvo – eu estava salvo para a vida outra vez!

 

À noite, com o terninho me batendo nas canelas e a melena encaracolada cheirando à glostora, entrei no salão do CER Atlântico ladeado por duas colegas, rainhas, e nós três por dois membros da Banda Marcial.

Quieto, recebi meu canudo de papel – e o que me ficou foi também esta lembrança.

 

Fato raro, raríssimo – único -, porém, estava por me acontecer quatro anos depois, na minha formatura do CPOR (Centro de Preparação para Oficiais da Reserva) em Porto Alegre. Era dezembro. 17 de 1971.

 

A chuva transferiu a solenidade do Parque da Redenção para o salão de atos da UFRGS.

De madrugada já chovia como naquele ano nada parecido tinha havido. A formatura era às 9 horas no centro da cidade, e eu estava lá perto do campo do Grêmio. Na divisa da Azenha com o Menino Deus. Longe – muito longe da Reitoria da UFRGS.

 

Às 7 comecei a tentar um táxi. Pressenti que ia dar no que deu. Éramos eu, a madrinha de formatura, sua irmã e a dona da pensão e uma parente dela.

Não aparecia um táxi vazio.

 

Pegar ônibus nem pensar porque tinha de caminhar várias quadras, e como? – se não parava de chover e a mulherada de vestido longo e coisa e tal...!

 

Vrrrrrrrrrrr, vrrrrrrrrrrrr, todos os táxis já ocupados e eu na chuva e o tempo passando, correndo, voando. “Minha Mãe do Céu... e seu eu perder a formatura?”, me gritava o estômago e o fígado, o coração, o crânio, a alma e todas as vozes dentro de mim.

 

Não tinha celular naquele tempo, não havia telefone, ônibus só lá no fim, ou era o início da Azenha e era meio longe. Táxi? – como disse, todos, absoluta e rigorosamente todos ocupados. “Será que todo mundo tinha decidido ir de táxi naquele dia?”.

 

De repente passa por mim um automóvel de “saia larga”, tipo Ford Landau, um rabo de peixe preto. Quase me atropela e eu ali, fardado com a estrelinha de 2º tenente sobre os ombros, molhado como um cachorro guaipeca sem dono e sem casa. Um gauipeca daqueles azarados e pobres, malhado e molhado pela intempérie e má sorte.

 

O carrão preto parou uns 20 metros à frente e iniciou uma ré, e eu sinalizando para todos os táxis de Porto Alegre, ocupados.

 

O rabo de peixe preto parou do meu lado, abriram-lhe os vidros e quando vi, gelei. Quase desmaiei: ‘que estaixs a fazer aqui?’, perguntou a voz portuguesa de dentro do carrão.

 

Minha Nossa Senhora de Fátima e todas as outras Nossa Senhoras... era... era ele, era... não era sonho... era o coronel, o comandante do CPOR.

 

- Querexs perder a formatura moço! - gritou o comandante em tom de afirmação, de pergunta,  e de inquisição. E eu ali, duro de frio e de medo: “aluno 149... Ody... Infantaria do CPOR se apresentando senhor Comandante...!” falei, gaguegei, gritei, molhado agora como um pinto desenganado... como um recruta perdido.

 

- Encoxsta aí!, ordenou o comandante ao seu motorista. “Em quantox extão aluno?”, perguntou o coronel. “Sou eu... e aquelas ali... comandante”, e me virei apontando para o naco de mulheres rechonchudas, quatro mulheres de pensão, engachadas como se fossem uma só.

 

- Apanhe elasxxx e venham, disse o coronel, simplesmente o comandante do CPOR.

 

As quatro gordinhas (respeitosamente e sendo cavalheiro) correram com seus vestidos longos e saltos altos pelas poças, se acomodaram no banco de trás sei lá eu como. O comandante foi para perto do motorista, e eu, o aluno, o formando, o futuro oficial R2, o recruta, o 149, o ratão (como chamavam os alunos que tinham de fazer as refeições no quartel) fiquei na porta da frente do rabo de peixe do comandante do CPOR.  E lá fomos nós em direção ao centro de Porto Alegre, ao salão de atos da reitoria da UFRGS, sob chuva torrencial de acabar com todas as secas.

 

Eu tremia de frio e de calor. De medo e de nervosismo. Ninguém dizia nada. Ninguém piava. Eu rezava para que o comandante não me perguntasse nada, para que nem me olhasse... para que nenhuma daquelas mulheres gordinhas, gente de casa, se atrevesse a fazer o mínimo comentário.

 

E se uma delas pedisse se o comandante gostava de ver o Sílvio Santos ou a Hebe?

Ou se era do Grêmio do Inter?

Ou... se uma dela desandasse a comentar tipo “O Ody é da Infantaria – qual é a sua arma?” Ou... "ainda bem que um colega do Ody viu que ele estava aqui todo molhado”, ou – assim sem mais nem menos - “o senhor também vai se formar?” Meu pai. Meus dentes queriam morder se morder entre si. A boca ficou selada como um morto no caixão. O suor tomou conta dos pingos na testa e minhas orelhas ardiam. Parecia-me não sentir as pernas naqueles minutos - eternos. Quando insinuei me acalmar – lembrei da sogra do sujeito do carro que presenciou o acidente no início do filme “Deu a louca no mundo” que não parava de palpitar, ordenar e se tivesse de dar uma sacolada – dava.   

 

Que esquecessem que aquilo estivesse acontecendo. Que fechassem os olhos e contabilizassem tudo na pasta dos sonhos, dos equívocos, do impossível aquela fatia de realidade. Não. Aquilo não podia estar acontecendo.

 

Nunca vi uma reitoria, um salão de atos tão distante. Quanto mais o rabo de peixe preto andava mais longe me parecia a UFRGS. Se tivesse ido a pé chegaria antes – acreditava.

Quando íamos chegando, meu Deus do céu – o trânsito parando, monitorado por todos os policias de Porto Alegre e só passava o autão preto do coronel... comigo, a madrinha, sua irmã, a dona da pensão e a prima dela.

 

- Luvas de guardas mandavam que o rabo de peixe preto fosse passando, passando, passando; enquanto que para todos os demais... “não, não, não pode passar... não é permitido passar...”.

 

Os pingos da chuva e do suor mais nervoso que já verti me desciam por cima das calças e pelas pernas e me entravam até pelas meias. Sob o quepe de um verde oliva escurecido pela chuva e a umidade, um mar de suor me descia pelas têmporas.

A face era um vermelhão só e o carrão do comandante deslizava por entre barreiras e sinais que mandavam que avançasse.

 

Eu fechava os olhos e não queria nem que me vissem. 

Os joelhos me faltavam, os músculos das pernas queriam pular fora, eu tinha os braços,

 eu via, mas não os sentia. Por Deus aquilo não aconteceu!

 

O autão preto do comandante do CPOR mergulhou sob a marquise

 que dá direto para o saguão de entrada da reitoria da UFRGS.

 

Ali só entrava a diretoria, como diria o Mano!

Um batalhão de repórteres aguardava o comandante do CPOR.

 Eram gravadores, fotógrafos e TV. Todos queriam documentar a chegada do comandante. 

Guardas perfilados esperavam-no para apresentar armas.

Quando o carrão negro, o rabo de peixe finalmente parou, 

o batalhão da imprensa se concentrou na porta dele. 

“Ó pessoal... aí vem o senhor comandante do CPOR”. 

E então abre-se a porta e desço eu... isso mesmo... eu, molhado,

inundado de chuva, suor e de um nervosismo que até hoje me faz tremer 

sempre que me lembro do infausto.

 

Abri a porta de trás do Landau preto, tirei as quatro as mulheres, 

queridas amigas da pensão, que não entendiam o que se passava, e sumi. 

Consta que nunca mais fui visto nas imediações.

 

Era 17 de dezembro de 1971.

Onze anos depois, também num 17 de dezembro, nascia Elisa, 

minha filha, que hoje está de aniversário, a quem  reforço meu eterno amor.

E hoje, com chuva ou sem chuva, que dê tudo certo com ela... 

e comigo. Ela tenha um ótimo dia rodeada por sua família ed amigos  que a amam.

 

O Internacional estava diante do Barcelona.

O melhor jogador do time, capitão e símbolo dos colorados

 – Fernandão se lesiona e precisa sair.

Entra Adriano – o “Gabiru”.

Era uma troca quase que ficcional.

Gabiru faz o gol.

O inter vence o todo poderoso.

O Inter é campeão mundial de clubes.

E também era um 17 de dezembro.

 

Hoje é dia de São Lázaro, aquele que tinha por irmãs Marta e Maria de Bethânia, 

aquele que Jesus ressuscitou. Santo protetor dos enfermos, 

desamparados e animais doentes.

Lázaro também nasceu num 17 de dezembro.

Em 1936, nasceu o papa Francisco.

Era 17 de dezembro.

Em 1989 Fernando Collor vence Lula no 2º turno das eleições.

Era 17 de dezembro.

Sobre este último, perdi.

Mas 35 anos depois, observando o panorama,

ainda bem àquele resultado.

Esses 17 de dezembro com suas surpresas alegres, 

emotivas, apavorantes 

ou simplesmernte amorosas.