Elisa Ody - Foto Arquivo |
Corria 1967 e era
sábado.
Dia 16 para 17 de dezembro.
À noite no C.E.R.
Atlântico haveria a formatura do Ginásio do Mantovani – 1º grau, ensino
fundamental hoje.
Eu já tinha lustrado
meu Vulcabrás e o terninho dormia sobre a cama, a gravatinha, chic, com cabeça
de boi metalizada esperava.
Tudo seria normal não
fosse um singelo detalhe: eu ainda não sabia se tinha passado na “segunda época”
de Matemática.
Não dava mais para
suportar a ansiedade.
Atravessei a rua e fui
até o Mantovani. “A professora ainda não entregou as notas”, disse-me uma
servente.
O dia da formatura e
só a servente e eu no colégio.
Não me contive mais e
então saí correndo como Forrest Gamp até a casa da professora.
A Geni morava lá perto
da Incasel.
Naqueles anos a
Incasel (na rua do Querência) ficava do Mantovani como daqui a Getúlio Vargas.
Era lããã... fora. Hoje parece tudo mais perto.
Corri como só um guri
de 14 anos corre, ou corria, quando precisa ver uma nota, a última nota, a nota
da vida, a nota da segunda época.
- Nãããoo... a Geni não
tá... ela foi lá no colégio levar a nota d’um aluno que ficô em segunda época,
disse-me, acho que foi seu pai que me falou. “O, o, o .... senhor não sa-sa-sabe se o a-a-aaluuuuuuno
passou?”, perguntei.
- Ahhhhhhh... não sei meu filho... isso é só
ela!’.
Minha Nossa Senhora de
Fátima... então ela já sabia se eu tinha passado ou rodado, se eu me
formaria... sabia se a minha vida acabaria ali mesmo, naquele sábado...
rodado!?
Foi então que corri
como nunca mesmo.
Incasel, Sete de
Setembro, HC, mato da comissão, fiz a curva do portão do Mantovani num pé só e
lá estava: na porta de vidro havia um papel... eu via de longe... sim, havia um
papel branco e com um nome... fui indo, indo, indo e... lá estava: José Adelar
Ody (aprovado). Salvo – eu estava salvo para a vida outra vez!
À noite, com o
terninho me batendo nas canelas e a melena encaracolada cheirando à glostora,
entrei no salão do CER Atlântico ladeado por duas colegas, rainhas, e nós três
por dois membros da Banda Marcial.
Quieto, recebi meu
canudo de papel – e o que me ficou foi também esta lembrança.
Fato raro, raríssimo –
único -, porém, estava por me acontecer quatro anos depois, na minha formatura
do CPOR (Centro de Preparação para Oficiais da Reserva) em Porto Alegre. Era
dezembro. 17 de 1971.
A chuva transferiu a
solenidade do Parque da Redenção para o salão de atos da UFRGS.
De madrugada já chovia
como naquele ano nada parecido tinha havido. A formatura era às 9 horas no
centro da cidade, e eu estava lá perto do campo do Grêmio. Na divisa da Azenha
com o Menino Deus. Longe – muito longe da Reitoria da UFRGS.
Às 7 comecei a tentar
um táxi. Pressenti que ia dar no que deu. Éramos eu, a madrinha de formatura,
sua irmã e a dona da pensão e uma parente dela.
Não aparecia um táxi
vazio.
Pegar ônibus nem
pensar porque tinha de caminhar várias quadras, e como? – se não parava de
chover e a mulherada de vestido longo e coisa e tal...!
Vrrrrrrrrrrr,
vrrrrrrrrrrrr, todos os táxis já ocupados e eu na chuva e o tempo passando,
correndo, voando. “Minha Mãe do Céu... e seu eu perder a formatura?”, me
gritava o estômago e o fígado, o coração, o crânio, a alma e todas as vozes dentro
de mim.
Não tinha celular
naquele tempo, não havia telefone, ônibus só lá no fim, ou era o início da
Azenha e era meio longe. Táxi? – como disse, todos, absoluta e rigorosamente
todos ocupados. “Será que todo mundo tinha decidido ir de táxi naquele dia?”.
De repente passa por
mim um automóvel de “saia larga”, tipo Ford Landau, um rabo de peixe preto.
Quase me atropela e eu ali, fardado com a estrelinha de 2º tenente sobre os
ombros, molhado como um cachorro guaipeca sem dono e sem casa. Um gauipeca
daqueles azarados e pobres, malhado e molhado pela intempérie e má sorte.
O carrão preto parou uns
20 metros à frente e iniciou uma ré, e eu sinalizando para todos os táxis de
Porto Alegre, ocupados.
O rabo de peixe preto
parou do meu lado, abriram-lhe os vidros e quando vi, gelei. Quase desmaiei:
‘que estaixs a fazer aqui?’, perguntou a voz portuguesa de dentro do carrão.
Minha Nossa Senhora de
Fátima e todas as outras Nossa Senhoras... era... era ele, era... não era
sonho... era o coronel, o comandante do CPOR.
- Querexs perder a
formatura moço! - gritou o comandante em tom de afirmação, de pergunta, e de inquisição. E eu ali, duro de frio e de
medo: “aluno 149... Ody... Infantaria do CPOR se apresentando senhor
Comandante...!” falei, gaguegei, gritei, molhado agora como um pinto
desenganado... como um recruta perdido.
- Encoxsta aí!,
ordenou o comandante ao seu motorista. “Em quantox extão aluno?”, perguntou o
coronel. “Sou eu... e aquelas ali... comandante”, e me virei apontando para o
naco de mulheres rechonchudas, quatro mulheres de pensão, engachadas como se
fossem uma só.
- Apanhe elasxxx e
venham, disse o coronel, simplesmente o comandante do CPOR.
As quatro gordinhas (respeitosamente e sendo cavalheiro) correram com seus vestidos longos e saltos altos pelas poças, se acomodaram no banco de trás sei lá eu como. O comandante foi para perto do motorista, e eu, o aluno, o formando, o futuro oficial R2, o recruta, o 149, o ratão (como chamavam os alunos que tinham de fazer as refeições no quartel) fiquei na porta da frente do rabo de peixe do comandante do CPOR. E lá fomos nós em direção ao centro de Porto Alegre, ao salão de atos da reitoria da UFRGS, sob chuva torrencial de acabar com todas as secas.
Eu tremia de frio e de
calor. De medo e de nervosismo. Ninguém dizia nada. Ninguém piava. Eu rezava
para que o comandante não me perguntasse nada, para que nem me olhasse... para
que nenhuma daquelas mulheres gordinhas, gente de casa, se atrevesse a fazer o
mínimo comentário.
E se uma delas pedisse
se o comandante gostava de ver o Sílvio Santos ou a Hebe?
Ou se era do Grêmio do
Inter?
Ou... se uma dela
desandasse a comentar tipo “O Ody é da Infantaria – qual é a sua arma?” Ou... "ainda bem que um colega do Ody viu que ele estava aqui todo molhado”, ou –
assim sem mais nem menos - “o senhor também vai se formar?” Meu pai. Meus
dentes queriam morder se morder entre si. A boca ficou selada como um morto no caixão. O suor
tomou conta dos pingos na testa e minhas orelhas ardiam. Parecia-me não sentir as pernas naqueles minutos - eternos. Quando insinuei me acalmar – lembrei da
sogra do sujeito do carro que presenciou o acidente no início do filme “Deu a
louca no mundo” que não parava de palpitar, ordenar e se tivesse de dar uma
sacolada – dava.
Que esquecessem que
aquilo estivesse acontecendo. Que fechassem os olhos e contabilizassem tudo na
pasta dos sonhos, dos equívocos, do impossível aquela fatia de realidade. Não.
Aquilo não podia estar acontecendo.
Nunca vi uma reitoria,
um salão de atos tão distante. Quanto mais o rabo de peixe preto andava mais
longe me parecia a UFRGS. Se tivesse ido a pé chegaria antes – acreditava.
Quando íamos chegando,
meu Deus do céu – o trânsito parando, monitorado por todos os policias de Porto
Alegre e só passava o autão preto do coronel... comigo, a madrinha, sua irmã, a
dona da pensão e a prima dela.
- Luvas de guardas
mandavam que o rabo de peixe preto fosse passando, passando, passando; enquanto que
para todos os demais... “não, não, não pode passar... não é permitido
passar...”.
Os pingos da chuva e
do suor mais nervoso que já verti me desciam por cima das calças e pelas pernas
e me entravam até pelas meias. Sob o quepe de um verde oliva escurecido pela
chuva e a umidade, um mar de suor me descia pelas têmporas.
A face era um
vermelhão só e o carrão do comandante deslizava por entre barreiras e sinais
que mandavam que avançasse.
Eu fechava os olhos e não queria nem que me vissem.
Os joelhos me faltavam, os músculos das pernas queriam pular fora, eu tinha os braços,
eu via, mas não os sentia. Por Deus
aquilo não aconteceu!
O autão preto do comandante do CPOR mergulhou sob a marquise
que dá direto para o saguão de
entrada da reitoria da UFRGS.
Ali só entrava a
diretoria, como diria o Mano!
Um batalhão de repórteres aguardava o comandante do CPOR.
Eram gravadores, fotógrafos e TV. Todos queriam documentar a chegada do comandante.
Guardas perfilados
esperavam-no para apresentar armas.
Quando o carrão negro, o rabo de peixe finalmente parou,
o batalhão da imprensa se concentrou na porta dele.
“Ó pessoal... aí vem o senhor comandante do CPOR”.
E então abre-se a porta e desço eu... isso mesmo... eu, molhado,
inundado de chuva, suor e de um nervosismo que até hoje me faz tremer
sempre que me lembro do infausto.
Abri a porta de trás do Landau preto, tirei as quatro as mulheres,
queridas amigas da pensão, que não entendiam o que se passava, e sumi.
Consta que nunca mais fui visto nas
imediações.
Era 17 de dezembro de
1971.
Onze anos depois, também num 17 de dezembro, nascia Elisa,
minha filha, que hoje está de aniversário, a quem reforço meu eterno amor.
E hoje, com chuva ou sem chuva, que dê tudo certo com ela...
e comigo. Ela tenha um ótimo dia
rodeada por sua família ed amigos que a amam.
O Internacional estava
diante do Barcelona.
O melhor jogador do time, capitão e símbolo dos colorados
– Fernandão se lesiona e precisa sair.
Entra Adriano – o
“Gabiru”.
Era uma troca quase que ficcional.
Gabiru faz o gol.
O inter vence o todo
poderoso.
O Inter é campeão
mundial de clubes.
E também era um 17 de
dezembro.
Hoje é dia de São Lázaro, aquele que tinha por irmãs Marta e Maria de Bethânia,
aquele que Jesus ressuscitou. Santo protetor dos enfermos,
desamparados e animais doentes.
Lázaro também nasceu
num 17 de dezembro.
Em 1936, nasceu o papa
Francisco.
Era 17 de dezembro.
Em 1989 Fernando
Collor vence Lula no 2º turno das
eleições.
Era 17 de dezembro.
Sobre este último,
perdi.
Mas 35 anos depois,
observando o panorama,
ainda bem àquele resultado.
Esses 17 de dezembro com suas surpresas alegres,
emotivas, apavorantes
ou simplesmernte amorosas.