Escudo do C.E.R. Atlântico Foto: Arquivo |
Lembro que nas férias de verão em Sede Dourado nos anos 1960 na casa do meu avô Mathias Ody, lá nos cafundós da Linha Poço Grande em Sede Dourado, todas as madrugadas um galo cantava.
E mais ao
longe ouvia-se logo em seguida, um desfile de cantorias com outros galos
anunciando que estava na hora de levantar para tirar leite das vacas.
Meu avô já havia então rezado um terço. Minha avó já estava com as chaleiras e panelas sobre o fogão à lenha esperando a chapa arder. Preparava tudo para o café, reforçado e, depois, roça.
Durante o
dia, no pátio flagrava de repente, um galo véio dando em cima de uma galinha, espantando
o grupinho das fêmeas. Ele não pedia. Apenas se calçava nas esporas e suas
enormes asas escondidas se abriam e atropelava. E o desgraçado não desistia. Ia atrás onde ela se enfiasse até pular
em cima da coitada.
Na casa onde
morava com meus pais não tínhamos o hábito de ir à Missa do Galo na São Pedro,
afinal, nossa hora de dormir era às 8 da noite.
Mas nos
tempos do padre Rigoni, quando a igreja de madeira preta ficava espremida entre
os fundos da igreja atual e o salão de festas – dizem que dava quórum de casa
cheia para a tal missa à meia noite de 24 para 25 de dezembro.
Nós começamos a assisti-la pela televisão quando o afamado aparelho que, inacreditável; mostrava num vidro (a tela), imagens em preto e branco. Mas como isso. Que milagre é esse! E ainda imagens e som que vinham além mar e, do Papa? Cristo! Aonde vamos parar com essas modernidades!?
Comecei a matutar: será que a costureira, a esposa do Ivo Zamprogna, a dona (como nos referíamos a ela Natália - obrigado Lúcia), não pode ver por aquele aparelho (televisão) o que acontece no fundo do lote dela? O terreno de frente para a Amintas Maciel era de uns 50 metros e fazia fundos com a nossa casa que era e é na Jerônimo Teixeira. Por um bom tempo fiquei sem tirar laranjas e peras daquele fundo de lote porque temia ser flagrado pela costureira no seu aparelho. Sim - por que se vinha imagem até do Papa ou do futebol de Porto Alegre, não seria de se imaginar que poderia vir de mais perto? Um dia me garantiram que não. Então subi de novo no galinheiro de casa onde um galo impaciente me assistia - e voltei a estender o cabo de vassoura com uma latinha até o pé de pera, um puxãozinho e peguei!
A tradição
segundo a Igreja Católica reza que o nascimento de Jesus Cristo foi anunciado
pelo canto de um galo à meia noite. Por conta disso o galo se tornou um símbolo
de acordar, e de um novo tempo, ou de uma Nova Igreja Católica.
Lá em casa na minha infância a verdade é que aos domingos o galo - pobre galo com sua carne saborosa estava na nossa mesa. Ele que tivera o pescoço torcido no sábado pelo meu pai, completava o risoto com arroz e colorau. Massa e maionese - ou seria salada de batatas. E não é tudo a mesma coisa!?
Conta-se que
o galo canta para marcar território. Para lembrar fêmeas, concorrentes e humanos que
está chegando a hora de acordar. É um despertador de carne, osso, penas, crina
e esporas. E canta principalmente, mas essencialmente - para se impor anunciando que aquele espaço
tem dono. É dele.
A certidão
mais antiga de um galo encontrei na Índia 3.200 a.C. Na China por volta de
1.500 a.C. Depois foi visto pelo Egito,
em Creta até chegar à Europa.
Na Última Ceia Jesus largou uma bomba para perplexidade dos Doze.
Mirando Pedro anunciou: “Em verdade te digo que esta noite, antes que o galo cante, me negarás três vezes!”. Todas as mãos se afastaram das cambucas.
Pedro revoltou-se . Reagiu retrucando que nunca, de jeito nenhum, jamais faria isso. (Mais tarde, diante de Cristo ressuscitado, e muito ter chorado e se arrependido, Pedro seria perdoado).
Naquela
época a lei judaica proibia a criação de galos e galinhas em Jerusalém por
questões religiosas e higiênicas - pelo que apurei. Os romanos que dominavam a região dividiam a
noite em quatro vigílias: A primeira do pôr do sol às 9 horas, a segunda das 9
à meia noite. A terceira da meia noite às três da madrugada e a quarta das
três até o amanhecer.
Cada uma tinha um nome. A primeira era Entardecer, a segunda Meia Noite, a terceira Canto do Galo e a quarta, Amanhecer. A cada troca da guarda romana uma trombeta soava. Naquela madrugada Jesus já estava preso, Pedro já O negara duas vezes. No terceiro"eu não conheço Este Homem" - a trombeta soou. Era a troca da guarda para a Terceira Vigília. Seria a trombeta o canto do Galo!?
Devia ter uns 5 anos quando meu pai Alberto, fanático atlantista me levou à Baixada Rubra. E lá – ouvia um ou outro “vamo, vamo Galo!”. Com o tempo descobriria que este era o mascote do Atlântico. O grito de guerra do meu time. Galo, galo, galo.
Erechim era menos
que uma vila quando em 1910 começou a receber italianos vindos das Colônias
Velhas. Cinco anos depois, esses mesmos italianos, fundaram a Societá Italiana di Mutuo Soccorso XX di Setembre - a semente que produziria o Atlântico. Mutuo Soccorso - o nome diz tudo. Três anos depois a vila já
não era mais vila e nascia o município.
Quando já
era Boa Vista do Erechim entre 1922 e 1938, dos 70 mil habitantes do município, 40
mil eram italianos segundo Fernando Hervé Calliari que
está no seu livro "C.E.R. Atlântico – Uma história de conquistas".
Em 1928
resolveram construir uma sede para encontros, jantares, bailes, jogos de baralho, marcar jogos de bocha, etc. Anunciaram a inauguração para janeiro de 1929. Depois passaram para abril. Acabou
que em 3 de junho a sede abriu as portas.
Ainda me apoiando no belo livro do Fernando a Sede Social ficava onde está hoje a atual, só que em 1929 o lugar era bem mais alto - e do alto de uma coxilha resplandecia o prédio de madeira. Destacava-se em Boa Vista do Erechim, mas não só por isso.
Sede da Societá Italiana do Mutuo Soccorso XX di Setembre inaugurada em 9 de junho de 1929. Nesta foto a sede aparece já ampliada. Foto: Arquivo/Atlântico |
O prédio de madeira tinha no seu alto uma torre, uma espécie de campanário, com três lâmpadas de 600 velas. Era um verdadeiro farol para quem vinha de longe no meio das picadas ou estradas estreitas. No convite ao Intendente Municipal, Atilano Machado, para a inauguração da sede, era solicitada a ligação elétrica e, como italianos da gema, isenção da taxa de luz. Em troca as luzes permaneceriam acesas a noite toda como uma referência, um guia a quem vinha de fora, sim porque naquela época era um desafio e a localização da sede, em terreno alto e com luzes acesas. iluminava o caminho para forasteiros com suas dúvidas em meio à escuridão e ao desconhecido até Boa Vista do Erechim.
Imagem de um galo de alumínio ou lata. Um semelhante estaria na torre no alto da primeira Sede Social da Soccietá Italiana de Mutuo Soccorso XX di Setembre |
Segundo apurei ainda havia também além das lâmpadas, um galo – um galo de lata, alumínio ou ferro fino igual a inúmeros outros que vimos proliferar por prédios e residências durante décadas. Serviam para indicar a direção dos ventos e até sua velocidade. Também provocavam um barulho ao embalo do vento o que sempre indicava uma posição, dava um sinal.
Em 2 de maio
de 1940 quando da fusão do Atlântico Foot Ball Club com a Sociedade Recreativa
e Beneficente Atlântico a entidade assumiu o nome pela qual é conhecida até
hoje: Clube Esportivo e Recreativo Atlântico, o C.E.R. Atlântico. A propósito
já não era sem tempo, considerando as mudanças de nomes que a Velha Soccietá ou
o próprio Atlântico como sempre o conhecemos – teve. Mas uma coisa nunca mudou:
o mascote? Sempre um Galo. O velho Galo de respeito.
Galo, símbolo da França e seleção fracesa. Foto: Internet/Divulgação |
O Tottenham
Hotspur também tem como símbolo um galo sobre uma bola. Hotspur era o apelido
de um nobre inglês, um capitão que liderou tropas em conflitos contra a Escócia e
rebeliões contra o rei Henrique IV. Virou personagem na peça Henry IV - de William Shakespeare. Hotspur na verdade era o apelido de Henry Percy, o
nobre e capitão. Apreciava rinhas de galo e nos campos de batalha usava esporas
em suas botas.
Escudo Tottenham Hotspur e o Galo Foto: Internet/Divulgação |
No final do ano passado voltei ao ginásio de Esportes do Atlântico - o “Caldeirão do Galo”, como o saudoso repórter Osvaldo Afonso Chitollina batizou o local. Era uma partida importante contra o São Bernardo pela Liga Nacional. Surpreendentemente o Atlântico não se achou em quadra, foi dispersivo e desarrumado. Parecia atordoado. Sem foco. Acabou eliminado. Foi tudo menos o Atlântico.
Lembrei-me então dos galos que, sem opção, tiveram o pescoço torcido pelo meu pai. Uns poucos que me conhecem associaram o fato da eliminação na Liga a mim porquanto teria levado o azar comigo para o Caldeirão. Sou inocente. Este ano
voltarei e provarei que a sorte ou azar não estão comigo.
Nove vez
fora não obstante, o que mais me chamou a atenção foi o grito uníssono de
“Galô, Galô!”, “Galô, Galô!” – com tonalidade mais forte no “o”, por isso
circunflexado aqui. No ginásio inteiro.
Era a prova
incontestável que eu queria ver e ouvir: italianos, intendentes, jovens, atletas,
atlantistas históricos ou de hoje, mulheres, torcedores, sede de madeira ou
alvenaria, dirigentes, futebol de campo ou futsal, todos passarão – mas o Galo continuará
cantando tempo afora marcando seu território na história deste clube.
Em 16 de
agosto de 1981 no Colosso da Lagoa, o Atlântico fez seu último Atlanga fora de
seus domínios. Ambos os times eram formados por amadores, mas a rivalidade
estava reposta. Mais que o empate de 0 a 0, o que marcou aquele domingo foi a
entrada em campo do time verde rubro. Sua fanática torcida ocupou as gerais com
uma charanga, foguetes, bandeiras enquanto dois galos eram arremessados por
cima do alambrado para dentro do gramado.
Numa
madrugada dessas a próstata me acordou, de novo, e conduziu-me até o vaso
sanitário. Em pé diante do vaso e nada. Nada e nada – mas a vontade era real. Depois
de uns longos minutos saíram umas gotas. Para reforçar o volume da bexiga
fui até a cozinha e tomei um copo d’agua. Eram 4h45min quando na vizinhança, um galo
que ainda não vi, cantou. Talvez imitasse a minha Hiperplasia Prostática
Benigna anunciando que “aqui quem manda sou eu!”.
Refletindo sobre essas questões me pergunto: “por que na atual sede verde rubra, que tem no seu cume, luminárias até bem potentes - não se vê torre nem galo!?. Não seria interessante reabilitar a antiga e tradicional torre ou campanário colocando dentro as luminárias? E em cima - um belo exemplar de Galo de metal? No meu entender, constituiria, no mínimo, um reconhecimento à própria história e à arquitetura do prédio original que os mais antigos e membros do clube instituíram. A sede não ficaria ainda mais ‘empoleirada’ na cidade – anunciando poder e autoridade!? Uma tradição com sua história que se iniciou há 110 anos estaria, outra vez inteira, no lugar mais alto da sede social do C.E.R. Atlântico".
Sede do clube - hoje. Reformada. Não tem torre nem galo. Apresenta holofotes no alto Foto: J. A. Ody |
E cá para nós como são bonitos os escudos nas camisetas do Tottenham e da seleção francesa. São galos charmosos, discretos, mas de grande significado. Sim porque eles atraem observação e atenção - impõem respeito, representam a própria história e até intimidam quem lhes ousa fitar os olhos. Como quem olha para o Galo da Torcida Camisa 6 no Caldeirão.
Bandeira da Torcida Camisa 6 no Caldeirão do Galo. Foto: J. A. Ody |
Galô, Galô!
Galô, Galô!
Nota: Dedicado à Família Atlantina, na pessoa de seu presidente Julio Cezar Brondani e a Cezar Augusto Caldart, ex-presidente e apaixonado por história. O Galo destaca-se no cenário nacional pelo futsal e veio ao mundo da bola há exatos 88 anos. Era um fevereiro igual ao de hoje de 1937. A sede da Soccietá Italiana di Mutuo Soccorso XX di Setembre, com suas lâmpadas e um galo (pelo que me garantem) ocupa a mesma área há 95 anos no centro da cidade.