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Nelly Todeschini Cantele |
Sendo
honesto comigo mesmo e com todos os demais, admito que gosto mais de prosa do
que de poesia. Para alguém que ocupa uma cadeira na Academia Erechinense de
Letras (AEL) pode parecer estranho – mas a minha verdade é assim. Agora, uma
virtude eu reconheço. Se é preciso ter algum talento para escrever um romance
ou uma obra de ficção, ou com base em fatos reais, históricos e batidos com um
pouco de ficção; como deve ser o talento de quem consegue dizer em algumas
linhas, na maioria das vezes, o que demandaria centenas de páginas em prosa!? Embora
– reconheça em ambas, essências afins, especialmente se olharmos para os
andares mais altos da literatura.
Escrever uma
história compondo um livro, normalmente parte da escolha de um assunto, de um
mote. Já nas primeiras páginas sinaliza um caminho que pode e deve dar suas
voltas no desenvolvimento, que chamamos de enredo, até desembocar como os rios
da bacia do Guaíba e da Lagoa dos Patos, deslizam para o mar incorporando-se ao
oceano. No trajeto das páginas todas as emoções, desgraças e ressurreições nos impelem a não desistir para ver como tudo termina.
Por isso, para ser atraente e não ficar na evidência do
tradicional “início, meio e fim” – a prosa é como um filme com sua proposta
inicial (geralmente) e um seguir à frente quase uniforme, com alguns sobressaltos, quase sem incompreensões ou
questionamentos, apresentando personagens, diálogos, papéis – vez por outra
atingindo um determinado pico até ali impensável, em alguns casos -, mas, como
disse, invariavelmente alcançando um desfecho à proposta inicial da história.
É óbvio que
há talentos capazes de oferecer histórias que nos levam a imaginação (se não
toda escrita seria inútil, como uma “fé sem obras”, segundo São Paulo), mas a
prosa sugere uma compreensão, na maioria das vezes mais direta e acessível
também para a maior parte dos leitores. Mesmo assim, aqui temos obras
classificadas como clássicos ou obras-primas. Alguém lembrará que esqueci os best-sellers
(os mais vendidos), mas nem todos, desta categoria incluo nesta abordagem.
Na poesia,
no meu pouco entendimento, o buraco é mais em baixo e o alcance nem sempre é
para todos os comuns, fazendo-se o
reparo quase desnecessário que depende – da poesia e das poesias. Mesmo que todos os poemas tenham uma mensagem
(e o autor sempre considera que sim – tem); me é particularmente de difícil
compreensão de onde seus artífices tiraram a primeira palavra, a primeira
linha, a primeira frase, o primeiro verso – ou a sequência daquela arte que em
alguns casos só seus “pais” têm a exata dimensão do que escrevem.
Reconheço,
de novo, que temos poesias e poesias, ou seja – poetas e poetas que nos ofertam
obras de clara compreensão, de rimas curiosas e bem aplaudidas. Bem fechadas e atraentes – mas o
quê se passa na cabeça ou na alma daqueles poetas que iniciam uma obra, (aparentemente
para nós comuns), do nada, e assim, entre alternando altos e baixos como um
eletrocardiograma espelhado, como a contemplação da brisa do mar desde a areia, e num repente, na linha seguinte - assodada nos assalta e aterroriza no meio da noite com quem
foi arrancado de sua cama, de sua casa – assim como aqueles pobres escolhidos
pelo infortúnio da desgraça, que se
viram apanhados pelo Taquarí, pelo Jacuí vendo-se tal qual expurgo entre
madeiras, cadeiras, relâmpagos, pias, vidros, pedras, telhas, trovões, toras, a desgraça em matéria - e gritos
sufocados em meio a negritude da noite entre canhadas e montanhas sem fim, esquecidas; de rochas, árvores e árvores, que ao mesmo tempo em que também ajudavam a açoitar – viam-se engolidas
por terrenos inconfiáveis a desabar morro abaixo em direção também ao destino de cada
qual. De que é feita essa inteligência de acomodar palavras, linhas e conceitos, aparentemente a mim, estranhos - mas eu, todos sabem - não o são.
Me reconheço amplamente analfabeto quando identifico em algumas poesias de
classe, poesias de categoria superior, porém recobro quando já no outra linha algum termo me acorda
do meu caos, ou seria da minha ignorância; colocando-me acomodado em uma cadeira bem acolchoada numa varanda sorvendo um mate com o
cachorro aos pés, amarrado-solto, atento à sua quietude em companhia,
enquanto num erguer de olhos miro ao longe, fundindo-se ao verde da mata fechada, uma
neblina entre-cortada por bandos voando em simetria bilateral.
Poemas profundos - verdadeiros rosários de surpresas, ora feitos aparentes armadilhas, ora nos
fazendo parar e pensar na tentativa de compreender o que está ali, como disse –
ora nos arrastando, ora nos sustentando sob asas, nos conduzindo a sentir as
labaredas do inferno para logo a seguir nos descortinar defronte à imaginação e
sensações paradisíacas – pois, de onde os poetas maiores tiram, e como eles
manobram com total destreza, intelectualidade e domínio a linha que costura obras tão vívidas, sobre a vida
nesta vida, que não raras vezes, nos conduzem a colocar um pé noutras vidas e
tão misteriosas, tão eloquentes!?
Pensando bem – palavra,
linha, frase, pontuação, ideia, verso - não constituem feitos ao acaso. São filhas e filhos de mentes privilegiadas, superiores, que veem e sentem o que a maioria jamais
perceberia; obras de um primor gestado por talentos que deviam e devem, sempre,
merecer a mais distinta consideração de quem lhes chega aos pés e de quem aos
seus pés não lhes alcança – mas tem também permissão para olhar, ler, tentar
decifrar, contemplar, imaginar, refletir e saborear, se não com a conclusão a
que não chegou, saciar-se com o que pode imaginar com sua muito própria capacidade
de entendimento.
E sob este
aspecto, permito-me, destacar o nome da senhora Nelly Cantele, como, muito
provavelmente nossa poetisa maior ao longo da história desta cidade. Simples como só os grandes, inteligente -dom que procura guardar para si, meiga, desapressada, ouvinte a ser seguida e uma mulher ao mesmo tempo elegante e doce - fazem da senhora Nelly um padrão inato aos notáveis, aos vitoriosos numa vida de alardes ausentes e merecedora, não saberia se de muitas palmas ou de silêncios penitenciosos em obediência à grandiosidade. Na poesia de Campo Pequeno, é, como observei, muito provavelmente (sim - pois devemos sempre respeitar as controvérsias quando se fizerem), a maior poetisa que se fez de Paiol Grande a Erechim. Quando a vejo chegando às reuniões mensais da AEL, numa sala da URI, de braços com sua filha Vivien - inseparável companheira - sinto um regozijo de sabê-la bem; e por poder estar na mesma sala por alguns instantes. Nas reuniões enquanto no geral falo demais para dizer de menos - a poetisa só observa, imaginando quem sabe - "ah moço - quanto desperdício, quanta superficialidade, quanta obviedade, quanto descarte...!", e aqui me refiro às minhas intervenções. Quando vejo a Nelly de braços com a Vivien surgindo à meia luz do pátio, sob vento e um guarda-chuva, desconsidero as cadeiras vazias.
A Nelly que
faz da Academia Erechinense de Letras uma entidade mais encorpada, respeitada e
admirada – também faz uso dos seus talentos, produzindo obras mais claras,
diretas e, digamos, leves e adocicadas – dando-se vez por outra ao descanso de
escritos mais sofisticados que nos sacodem em curiosidade, desfazendo teias,no buscar sobre o quê ela está mesmo querendo dizer com o que... diz! ?
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Maria Luíza |
E se a Nelly
Cantele permitir, colocaria ladeando-a na poesia erechinense, sua colega, a
poetisa Maria Luíza Servelin Zanette, porquanto já desde tempos a magia dos seus poemas e a leveza com que os oferece, são obras quase sagradas no mundo da poesia erechinense. Também servindo, entre obras doces e de desafios, a mexer neurônios dos que insistem em resistir às primeiras chuvas nestes maios gaúchos.
Desejo incluir aqui, com os
devidos reconhecimentos pela poesia que constroem e ofertam, cada qual com seu estilo próprio de pintar o doce, o enigmático e o belo - Ana Maria Mikulski, Cleusa Masria Nehring Cappellesso, Maria Salete Mendes Jacques, Karina Albuquerque Denincol, Luiz Ademir da Rosa, Marco Antônio Scheurer de Souza, Ermindo Silva e Nesio Alves Correa - o Gildinho também como nomes que engrandecem e orgulham a AEL.
Comecei
confessando que gosto mais de prosa que de poesia. E as razões são claras para
mim. Primeiro por que não tenho talento para tanto. Segundo por que não tenho a
capacidade de síntese – dizer muito em poucas palavras. E terceiro por que eu não
chego aos pés de quem aparentemente iniciando do nada – contempla em sua poesia
o que nos faz rir e chorar, nos provoca em humilhações e exaltações, que fala de
paraísos e infernos, de situações que nos emocionam, nos irritam, nos tornam
maiores ou menores; as poesias de necessidades jamais satisfeitas,
das impurezas, das virtudes, das circunstâncias, do passado, do impensado, do
esquecido, do amor, da tristeza, da amargura, do inevitável, das intimidades
inconfessas, da revolta, da felicidade, das traições, do infortúnio, da
gratidão, da doença, dos profetas, da vida, dos gemidos de dores e prazeres, do outro, da
mentira, da diversidade de crenças, das mídias, das águas e dos céus, dos grotões e das estrelas, das tecnologias e seus segredos ainda "insabidos", do bem e do mal, dos
sonhos, dos precipícios, da miséria e da luxúria, dos abandonados, da
misericórdia, das obviedades que negamos, do que é, do que parece, das celebridades, do ar que não vemos, da beleza circunspecta dos feios, de teimosias, de
sentimentos de todas as ordens, da escuridão que nos esconde e nos
expõe, das energias, das passarelas e seus encantos encobertos, de catetos e hipotenusas, das pedras, dos crucifixos, de balas perdidas que sempre tiram uma vida, da luz que nos ilumina e aquece, das flores e espinhos, das demandas que
ignoramos, os acasos, dos ocasos, dos nossos pecados, dos espíritos, da
simplicidade, dos conflitos internos e pessoais, das decepções, das
incompreensões, das destruições e horrores, dos
filantropos, do nascer, da caminhada e do desfecho, das casas
americanas com suas janelinhas quadriculadas em madeira branca, dos casarões abandonados, do que não importa, do que está do outro lado, do porquê psicólogo, psicanalista até desistir ou trocar, da obra aqui deixada, da natureza e sua soberania, do que
poderia ter feito e não o fez, dos arrependimentos, de preces de rotina, de preces da última hora, poesias de termos desconexos e empoeirados por desuso - feitos algoritmos, dos reclames e suspeições, dos cemitérios com suas noites envoltas em pavor, de paixões mui
pessoais, dos que jamais deixarão de viver em nossas vidas, do que temos e
vemos e do que não vemos, mas temos, da ostentação,. Poesia sobre os loucos. Sobre as loucuras. Sobre vizinhos anônimos. Sobre máquinas a inventar homens. Dos mortos sem saber de onde veio. Poesia dos afortunados sem saber o quanto e nem de onde. Da vulgarização do crime. Do controle íntimo até as intimidades. Sobre alucinógenos como felicidade. Poesia que de pouco à rápido trocará nome por número. Poesia feita por prazer que nada remói no
aguardo de um retorno qualquer. Que faz porque quem é do bem. Que vem de quem sabe
o talento que acolhe. Poemas claros e de fácil compreensão, contrapondo a outros de mui difícil cognição. Poesias com finais repentinos, inesperados, que remetem à primeira vista - um fio solto. deixando o leitor a perguntar "por que parou?". Lembro de "Onde os fracos não tem vez". Poemas sobre prostitutas, amantes e mães. Me fica, por fim, a desconfiança que o verdadeiro poeta opera
em acalento à própria alma, brincando de modo sério de artificializar realidades. Poesia que traduz no seu compreensível e,
especialmente no incompreensível a muitos – perguntas ou respostas brotadas do mais fundo de sua alma a Deus, do porquê aqui andamos e para onde vamos. Quem sabe, na próxima linha ou no verso seguinte descubramos, desde que seu autor seja "Ele". Por que até aos mais talentosos poetas em última instância, imagino; tudo não passa de especulações e convicções pessoais - deitadas em linhas e versos bonitos,belíssimos, surpreendentes e intrigantes, fantasiados em meio a labirintos - com o fio acreditado da saída - firmemente agarrado no ventre da alma de quem assim decidiu poetizar suas mazelas, seus prazeres, seus dons. A poesia é como a pintura. Algumas gritam sua evidência. Outras silenciam sua intrigante comunicação que pode ir do dramático ao lírico, pisando na ambiguidade, na plurissignificação - na estranheza. E, no por descobrir, eis onde reside sua beleza, seu cheiro, seu perfume.