I
Devia ser fevereiro quando num dia de sexta-feira de calor que me fazia andar só de calçãozinho, sem camisa e pé no chão, e a dona cujo nome não me lembro mais – mas era a mulher do Zamprogna, do Ivo Zamprogna, isso mesmo – me chamou. - Ô guri, ô Adelar - vem aqui, gritou ela da varanda da sua linda casa.
Devia ser fevereiro quando num dia de sexta-feira de calor que me fazia andar só de calçãozinho, sem camisa e pé no chão, e a dona cujo nome não me lembro mais – mas era a mulher do Zamprogna, do Ivo Zamprogna, isso mesmo – me chamou. - Ô guri, ô Adelar - vem aqui, gritou ela da varanda da sua linda casa.
Ela tinha fama de grande costureira de
vestidos na cidade. Costurava para os ricos de Campo Pequeno, para quem morava
‘no centro’ e tinha também fama de ser uma mulher fechada, que detestava
barulho, especialmente de piazada correndo, brincando de pegador e odiava os
gritos: ‘Um, dois, três – peguei, peguei o Adelar. Um, dois, três – me salvei,
me salvei!’.
Ela resmungava – Úúúte piazada -, e
abaixava a janela de vidro quadriculado, se fechando ainda mais em si mesma –
com suas magníficas obras em vestidos.
A grande costureira morava ali na
Amintas Maciel, 616, na quadra entre a Cantina do Mandelli e onde hoje está o Colégio
Mantovani. Na época, onde hoje é o Mantovani, tudo era um terreno baldio que
servia para acolher algum circo, parque ou acampamentos de ciganos e, claro, as
nossas ‘peladas’ inesquecíveis de futebol. E depois do campo do Atlântico e o
terreno baldio, vinha a Legião. Era o bairro mais carente de Erechim. Trezentas
casinhas de 30
metros quadrados, se tanto, pintadas a óleo cru e com
uma ‘patente’ no fundo do lote. Água? – Só na bica coletiva da Legião ou lá nos
tanques do Mato da Comissão. Luz? Só de lampião.
Ali na Jerônimo Teixeira era quase o
‘fim da cidade’. Dali para ‘baixo’ (centro direção bairro) vinha então a
Legião, o Grupo Escolar Campos Sales, (imaginem – onde hoje é a ‘Su’ já foi
Grupo Escolar), depois o presídio e... mato e mato. Já era quase... quase –
área rural. De lá vinha o leite em litros esverdeados de vidro. Litrões
grossos. Falando em mato, o Mato da Comissão (Parque Longines Malinowski), na
entrada que existe até hoje pela Comandante Kraemer, havia uma dezena de
tanques coletivos. Ali corria água transparente e as mulheres da Legião deixavam
seu estresse (se é que isso existia) naquele local, ‘surrando’ as roupas contra
uma laje e mergulhando-as na água limpinha. Aquelas calças brincoringa,
molhadas, pesando cinco quilos, erguidas pelos braços das mulheres da Legião, e
vaaaappppppppppp – tuuuummmmmmmmmmmm, contra a laje. A sujeira saía não por
causa da água limpinha e do sabão gorduroso – mas, provavelmente, penso hoje,
de medo. Do estalo inapelável contra a laje de pedra. E era –
vaaaaaaaaaaaaaaaaappppp- tchaaaaaaaaaaaaannnnnnnnnnnnnnnnnnnnnn. A brincoringa
depois descansaria ardendo ao sol no varal dos fundos das casinhas até secar - de
ficar em pé. Lá
- mato adentro a gente tomava banho e pescava.
II
Um dia preguei uma latinha na ponta de
uma ripa e passei o braço esticado por cima da cerca entre o lote onde nós
morávamos e que dava de fundos para o lote da dona... a mulher do Zamprogna. A
costureira. A ripa que tinha ‘pegado’ lá das sobras
de madeira e serragem do Madalozzo - era comprida o suficiente para alcançar
com a latinha os pêssegos que avermelhavam, apodreciam e caíam no lote da
vizinha costureira – mas se ela visse aquilo, aiaiaiaiiii. Era o que se dizia. Dar, ela não dava. Pedir? - se tinha até medo.
Além do que – não adiantava. E como a gente não queria que os pêssegos
‘morressem’ daquele jeito – o jeito era chegar até eles e, no caso, a ripa com
a latinha resolvia, e ainda nos livrava de sermos apanhados em lote alheio.
Naquele tempo isso era um pecado – quase mortal.
A vizinha não falava com os vizinhos e
se consumia costurando, dias e noites adentro, enquanto os pêssegos, as peras,
os limões e as canas nasciam, cresciam, amadureciam, apodreciam e caíam no fundo
do lote comprido dela. A menos que a latinha na ponta da ripa ou do bambu ‘recolhesse’
a fruta. Mas, e se ela contasse as peras? – ia dormir eu carregando todo o dia
o pecado daquele ‘furto’ na consciência. Furto de um pêssego ou de uma pera que
apodreceria no chão, se eu não a ‘roubasse’ e comesse. Agora, qual criança
daqueles anos, não se arriscaria por uma fruta, ainda mais – ‘roubada’. Quem,
com 10 anos ou menos, naqueles anos, tinha um níquel no bolso? Quem tinha
bolso!
III
Pois, naquele dia de sol de rachar,
brincava eu com a piazada pelas redondezas, quando a dona... a mulher do
Zamprograna, do Ivo Zamprograna, a costureira, gritou de novo: - Ô guri. Adellllar
- vem aqui.
- Meu Deus – ela sabe o meu nome. Então
deve saber sobre os pêssegos, as peras, as laranjas...
Por puro impulso, quando me vi, estava
eu na frente da temida mulher que ‘não falava com ninguém’.
- Tu sabe onde fica o Café
Grazziottin?
- Não senhora.
- Tu
já foi pro centro alguma vez?
- Já.
- Tu sabe onde fica o cine Ideal?
- O Cinema ‘de Cima’ – retruquei -, pois
o Cine Luz era identificado como o ‘de Baixo’. Tanto que na época se dizia: ‘o
Ari foi no cinema. No ‘de Cima’ ou no ‘de Baixo’? – No ‘de Cima’. Ah – então no
Ideal, geograficamente falando. O Ideal era onde está a Ponto Frio. O Luz –
onde fica a Renner. Depois de cinema já foi de Bingo a Igreja.
- Pois então se tu sabe onde fica o
cinema Ideal, você vai mais um pouco pra cima, pela calçada, e quase do lado do
cinema, o ‘de Cima’ como tu diz, é o Café Grazziottin.
- Não é na frente da banquinha de
revista do pai da Salete onde tem os engraxate? – perguntei.
- Isso mesmo. Quase em frente da banquinha.
(A banca existe até hoje, se não me equivocou, um pouco acima de onde era, mas...).
No cinema eu já tinha entrado para
torcer pelo Johnny Weissmuller e na banquinha eu já tinha até engraxado
sapatos. (Hoje, se me pegassem lustrando sapatos com aquela idade – dava Conselho
Tutelar, MP, polícia, BM, BO... Se duvidar - cadeia). Mas, enfim, voltando –
situando um, eu sabia onde ficavam os outros. O centro, a ‘avenida’, o cinema ‘de
Cima’, a banquinha... o Café Grazziottin.
Ela então, sem me perguntar se eu
levaria ou não, me alcançou um pacotão, um embrulho de papel, esses de rolo
grande e disse: - Leva esse vestido lá e entrega pra dona do Café que eu te dou
um dinheiro. (Imagine hoje – confiar a um guri um vestido, o vestido que uma
madame esperava! Um piá, de calçãozinho, pé no chão... com um pacotão nos
braços, subindo a Jerônimo Teixeira, a Nelson Ehlers, a ‘avenida’ Maurício Cardoso,
pela calçada, no meio de gentes grandes... Hoje... bem – esquece. O mundo não
mudou. O mundo apenas é outro.
IV
Apanhei aquele embrulho enorme para o
meu tamanho, e só fiquei com a cabeça acima para ir desviando as pedras ponteagudas
que nasciam do chão, assim como línguas traiçoeiras brotam hoje em dia, que
rachavam unhas mal nascidas e compridas ou faziam sangrar o couro fino da parte
interna do tornozelo.
Subi pela Nelson Ehlers afundando as canelas no pó fofo, arriscando a cada pisada - rasgar o pé.
Parecia uma missão como essas que se vê
em filmes mais antigos, onde alguém tem de atravessar terras, mares e céus para
levar uma mensagem.
Quando cheguei no calçamento, já estava
na primeira quadra da Nelson Ehlers, em frente do Samdu e do Saps – Santo
Deus, Nossa Senhora de Fátima, como era ‘grande’ o Saps – a gente até podia
escolher os produtos... Ficava ao lado de onde hoje é a Loja do amigo Zucchi e
o Samdu onde está o Belas Artes.
Depois de passar na frente da padaria
‘Sem Rival’, desviei os olhos para ver os sonhos, os folhados e os caros. O
cheirinho de pastel feito na hora me invadiu as narinas que até hoje sinto
aquele ar de massa frita na banha. Sem pastel - as pedras quentes do
calçamento me fritavam a sola dos pés.
Depois do bar Arthur, o bar ‘Das
Vitaminas’ (quanto bar!) dobrei a direita e subi pela ‘avenida’. Sempre de
calçãozinho e pé no chão. Passei pela interminável escadaria da Delegacia Regional
de Polícia que parecia levar aos céus – ou seria aos infernos – quase em frente
à Voz da Serra. Lá em cima estava o delegado Rômulo Monteiro – pai do meu
grande amigo Feliciano, o Fifa, hoje, baiano por adoção e opção.
Obstinado pela obediência à confiança
recebida que me distinguia como alguém acreditado de fé -, incrivelmente nem
parei para olhar os cartazes do Cine Ideal, o ‘de Cima’, e quando vi, estava
em frente ao Café Grazziottin.
V
Fiquei deslumbrado quando entrei.
Aquelas mesinhas rodeadas de cadeiras
bem desenhadas e de madeira com corte confortável. Como devia ser bom e
importante poder sentar numa delas!
Gentes altas que nunca vira antes, mas
por certo importantes enfiadas em paletós e fumegando mis cigarros, bebiam café
em minúsculas xícaras, ou levantam à boca mais um gole de Serramalte ou Caracu. O
café estava esfumaçado. Era chic – fumar... Hollywood, da caixinha vermelha,
branca e com uma faixa azul, ou Minister então, da caixinha branca com a faixa
azul acima e o ‘M’ em dourado, nossa - nem se fala!
Caminhei com o pacotão me cobrindo a
parte da frente, (graças a Deus... e se me conhecessem... mas quem haveria de
conhecer um fedelho daqueles!) sem camisa e de pé no chão até o balcão. Pensa
só: pé descalço, calção e sem camisa – mas não por moda, mas por...
VI
De longe, uma senhora logo imaginou o
que eu fazia naquele lugar, e mais; o que trazia e mandou que eu fizesse rapidamente a volta pelo balcão onde tinha um motor... gggggggrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr...
barulho que até hoje não me abandona os ouvidos. Era o motorzinho que tocava a
máquina de fazer sorvete.
- O que tu tem aí, menino!, adiantou-se
a senhora, já suspeitando do que trazia.
- A dona... a costurera lá do ‘Seu
Zamprogna’ me mandou... Eu...
- Eu sei. Eu sei. Pode deixar aqui.
E sem identificações, identidades,
desconfianças ou garantias de estar entregando o pacote para a pessoa certa –
deixei aquele enorme embrulho nas mãos dela. Devia mesmo ser um vestido novo para
um baile de sábado para aquela senhora, legítima proprietária do vestido,
segundo deduzi e conclui pela sua intimação.
Grrrrooooonnnnnnngggggrrrrrrrrr. Grrrrroooooooooonnnnnnnnnggggrrr.
Grrrrrggggooooonnnnnnnrrrrnnrrrr... fazia da maquininha do sorvete.
VII
Entregue o pacotão, e ainda complemente
deslumbrado com aquele cenário que nunca tinha visto antes, pois, quando eu
alcançava a porta da saída e o sol de rachar, de novo me batia nos olhos, aquele sol que
vinha por detrás da rua Alemanha, da banquinha do pai da Salete...
- Ô - guri! Ô
menino! – alguém gritou.
- Me virei e a mulher disse de novo, lá
do fundo do Café Grazziottin, quase encoberta pelo balcão aonde o ar era
fresquinho...
- Volta aqui guri, disse ela e ordenou: pega aqui!
Caminhei até o balcão, e aquela senhora,
a dona do vestido, me alcançou por cima daquele motorzinho, o maior, o mais
lindo porquanto incomparável e inesquecível, o melhor sorvete que eu já tomei
em toda minha vida.
- Toma aqui. E diz obrigado lá pra
costureira.
O sorvetão de uva, chocolate e creme me
escorria pelos dedos, pela goela e pelos beiços, derretendo de calor assim como
eu quase derreti quando subi correndo a Nelson Ehlers até o centro levando o
pacotão com o vestido que nunca haveria de ver na minha vida.
O ‘pazinha’ de madeira, (como eram
lindas e delicadas aquelas pazinhas dos sorvetes), guardei na gaveta das minhas
preciosidades de criança por meses a fio – mais de ano. Misturou-se, e
perdeu-se entre as figurinhas, o bodoque, as bolitas, o bilboquê e gibis, é
claro.
VIII
Que tempos eram aqueles que se guardava
uma ‘pazinha’ de madeira, essas de tomar sorvete – como se fosse um bem precioso,
sem preço - nem venda!
Hoje, quando não se tem sorvete em casa
– minha nossa!
Onde estará aquela costureira, a dona do
café? O que foi feito daqueles freqüentadores daquelas mesinhas?!
Gentes grandes, tão independentes que
era difícil acreditar que um dia teriam fim.
E aquele ‘ô guri – pega aqui!’ este eu
nunca esqueci, até por que, acho que foi o maior sorvete que o Café Grazziottin
serviu em toda sua rica história. E foi de graça. E foi para mim. Quem era eu?!
O pacotão com o embrulho de papel
grosso, entre um vermelho e um rosa, devia mesmo conter algo importante. Um
vestido. Onde estaria aquele vestido e que histórias, poderia ter ele presenciado
– além desta do meu primeiro sorvete!?
Se a vida passa rápida, mais depressa
ainda se vão os estilos de vida, levando consigo os vestidos, as casas de comércio,
os cinemas, as pedras de punhais escondidas sob o pó, as modas, os cafezinhos,
as Serramaltes, o chão de pedras decoradas do café - com suas mesinhas e
cadeiras de corte fino, as ‘pazinhas’ em madeira, os sorvetes... e tudo mais.
Aonde foram parar aquelas pessoas?
Sei, não sei... certamente – a maioria
sabe, sabemos todos.
Os avanços voam.
O mundo quando não muda – vira outro.
Comparando-se tempos e suas coisas,
concluir que os tempos mudaram soa inocente, quando não - ingênuo.
Os tempos não mudaram. São outros.
E neste outro tempo, quem só conhece o
hoje, custa a crer no ontem com suas gentes, idiossincrasias e modos de vida.
IX
Em outro fevereiro, sei lá, 50 anos
depois daquele do sorvete da minha vida; só o sol parece o mesmo. Abrasador,
insuportável e imponente.
Os cinemas viraram lojas. Sucursais de
rede.
O ‘Grazziottin’ de ontem – loja fina
vende moda.
Os sorvetes atendem filas nas calçadas.
Tudo pago. Nada dado.
No chão – tudo é outra coisa.
No alto, o sol, ninguém toca.
E hoje, quando me deparo com alguém de
pé no chão – sinto arder a sola do pé, e como se fosse ontem - desvio no chão para não ser surpreendido por uma pedra ponteaguda escondida sob o pó, que
também já não existe mais entre o Mantovani e a ‘avenida’.
Preciso de sapatênis.
Vou comprar,
quem sabe,
no ‘Cinema de Baixo!’.
Preciso de bermuda e camiseta.
Vou comprar,
quem sabe, no antigo Café Grazziottin.
Preciso de celular novo.
Vou comprar,
quem sabe,
no ‘Cinema de Cima!’.
Que calorão – Meu Deus!
Preciso de um sorvete.
Vou comprar,
quem sabe (fossem outros tempos – até ganharia um) na calçada.
Mas – pra que, Santo Deus,
–
se nem posso tomar. Estou diabético!