sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

O meu sorvete inesquecível!

I
Devia ser fevereiro quando num dia de sexta-feira de calor que me fazia andar só de calçãozinho, sem camisa e pé no chão, e a dona cujo nome não me lembro mais – mas era a mulher do Zamprogna, do Ivo Zamprogna, isso mesmo – me chamou.  -    Ô guri, ô Adelar - vem aqui, gritou ela da varanda da sua linda casa.


Ela tinha fama de grande costureira de vestidos na cidade. Costurava para os ricos de Campo Pequeno, para quem morava ‘no centro’ e tinha também fama de ser uma mulher fechada, que detestava barulho, especialmente de piazada correndo, brincando de pegador e odiava os gritos: ‘Um, dois, três – peguei, peguei o Adelar. Um, dois, três – me salvei, me salvei!’.
Ela resmungava – Úúúte piazada -, e abaixava a janela de vidro quadriculado, se fechando ainda mais em si mesma – com suas magníficas obras em vestidos.

A grande costureira morava ali na Amintas Maciel, 616, na quadra entre a Cantina do Mandelli e onde hoje está o Colégio Mantovani. Na época, onde hoje é o Mantovani, tudo era um terreno baldio que servia para acolher algum circo, parque ou acampamentos de ciganos e, claro, as nossas ‘peladas’ inesquecíveis de futebol. E depois do campo do Atlântico e o terreno baldio, vinha a Legião. Era o bairro mais carente de Erechim. Trezentas casinhas de 30 metros quadrados, se tanto, pintadas a óleo cru e com uma ‘patente’ no fundo do lote. Água? – Só na bica coletiva da Legião ou lá nos tanques do Mato da Comissão. Luz? Só de lampião.

Ali na Jerônimo Teixeira era quase o ‘fim da cidade’. Dali para ‘baixo’ (centro direção bairro) vinha então a Legião, o Grupo Escolar Campos Sales, (imaginem – onde hoje é a ‘Su’ já foi Grupo Escolar), depois o presídio e... mato e mato. Já era quase... quase – área rural. De lá vinha o leite em litros esverdeados de vidro. Litrões grossos. Falando em mato, o Mato da Comissão (Parque Longines Malinowski), na entrada que existe até hoje pela Comandante Kraemer, havia uma dezena de tanques coletivos. Ali corria água transparente e as mulheres da Legião deixavam seu estresse (se é que isso existia) naquele local, ‘surrando’ as roupas contra uma laje e mergulhando-as na água limpinha. Aquelas calças brincoringa, molhadas, pesando cinco quilos, erguidas pelos braços das mulheres da Legião, e vaaaappppppppppp – tuuuummmmmmmmmmmm, contra a laje. A sujeira saía não por causa da água limpinha e do sabão gorduroso – mas, provavelmente, penso hoje, de medo. Do estalo inapelável contra a laje de pedra. E era – vaaaaaaaaaaaaaaaaappppp- tchaaaaaaaaaaaaannnnnnnnnnnnnnnnnnnnnn. A brincoringa depois descansaria ardendo ao sol no varal dos fundos das casinhas até secar - de ficar em pé. Lá - mato adentro a gente tomava banho e pescava.

II


Um dia preguei uma latinha na ponta de uma ripa e passei o braço esticado por cima da cerca entre o lote onde nós morávamos e que dava de fundos para o lote da dona... a mulher do Zamprogna. A costureira. A ripa que tinha ‘pegado’ lá das sobras de madeira e serragem do Madalozzo - era comprida o suficiente para alcançar com a latinha os pêssegos que avermelhavam, apodreciam e caíam no lote da vizinha costureira – mas se ela visse aquilo, aiaiaiaiiii. Era o que se dizia. Dar, ela não dava. Pedir? - se tinha até medo. Além do que – não adiantava. E como a gente não queria que os pêssegos ‘morressem’ daquele jeito – o jeito era chegar até eles e, no caso, a ripa com a latinha resolvia, e ainda nos livrava de sermos apanhados em lote alheio. Naquele tempo isso era um pecado – quase mortal.

A vizinha não falava com os vizinhos e se consumia costurando, dias e noites adentro, enquanto os pêssegos, as peras, os limões e as canas nasciam, cresciam, amadureciam, apodreciam e caíam no fundo do lote comprido dela. A menos que a latinha na ponta da ripa ou do bambu ‘recolhesse’ a fruta. Mas, e se ela contasse as peras? – ia dormir eu carregando todo o dia o pecado daquele ‘furto’ na consciência. Furto de um pêssego ou de uma pera que apodreceria no chão, se eu não a ‘roubasse’ e comesse. Agora, qual criança daqueles anos, não se arriscaria por uma fruta, ainda mais – ‘roubada’. Quem, com 10 anos ou menos, naqueles anos, tinha um níquel no bolso? Quem tinha bolso!


III


Pois, naquele dia de sol de rachar, brincava eu com a piazada pelas redondezas, quando a dona... a mulher do Zamprograna, do Ivo Zamprograna, a costureira, gritou de novo: - Ô guri. Adellllar - vem aqui.
- Meu Deus – ela sabe o meu nome. Então deve saber sobre os pêssegos, as peras, as laranjas...

Por puro impulso, quando me vi, estava eu na frente da temida mulher que ‘não falava com ninguém’.
- Tu sabe onde fica o Café Grazziottin?
- Não senhora.
-  Tu já foi pro centro alguma vez?
- Já.
- Tu sabe onde fica o cine Ideal?
- O Cinema ‘de Cima’ – retruquei -, pois o Cine Luz era identificado como o ‘de Baixo’. Tanto que na época se dizia: ‘o Ari foi no cinema. No ‘de Cima’ ou no ‘de Baixo’? – No ‘de Cima’. Ah – então no Ideal, geograficamente falando. O Ideal era onde está a Ponto Frio. O Luz – onde fica a Renner. Depois de cinema já foi de Bingo a Igreja.

- Pois então se tu sabe onde fica o cinema Ideal, você vai mais um pouco pra cima, pela calçada, e quase do lado do cinema, o ‘de Cima’ como tu diz,  é o Café Grazziottin.
- Não é na frente da banquinha de revista do pai da Salete onde tem os engraxate? – perguntei.
- Isso mesmo. Quase em frente da banquinha. (A banca existe até hoje, se não me equivocou, um pouco acima de onde era, mas...).

No cinema eu já tinha entrado para torcer pelo Johnny Weissmuller e na banquinha eu já tinha até engraxado sapatos. (Hoje, se me pegassem lustrando sapatos com aquela idade – dava Conselho Tutelar, MP, polícia, BM, BO... Se duvidar - cadeia). Mas, enfim, voltando – situando um, eu sabia onde ficavam os outros. O centro, a ‘avenida’, o cinema ‘de Cima’, a banquinha... o Café Grazziottin.

Ela então, sem me perguntar se eu levaria ou não, me alcançou um pacotão, um embrulho de papel, esses de rolo grande e disse: - Leva esse vestido lá e entrega pra dona do Café que eu te dou um dinheiro. (Imagine hoje – confiar a um guri um vestido, o vestido que uma madame esperava! Um piá, de calçãozinho, pé no chão... com um pacotão nos braços, subindo a Jerônimo Teixeira, a Nelson Ehlers, a ‘avenida’ Maurício Cardoso, pela calçada, no meio de gentes grandes... Hoje... bem – esquece. O mundo não mudou. O mundo apenas é outro.


IV


Apanhei aquele embrulho enorme para o meu tamanho, e só fiquei com a cabeça acima para ir desviando as pedras ponteagudas que nasciam do chão, assim como línguas traiçoeiras brotam hoje em dia, que rachavam unhas mal nascidas e compridas ou faziam sangrar o couro fino da parte interna do tornozelo.

Subi pela Nelson Ehlers afundando as canelas no pó fofo, arriscando a cada pisada - rasgar o pé.
Parecia uma missão como essas que se vê em filmes mais antigos, onde alguém tem de atravessar terras, mares e céus para levar uma mensagem.

Quando cheguei no calçamento, já estava na primeira quadra da Nelson Ehlers, em frente do  Samdu e do Saps – Santo Deus, Nossa Senhora de Fátima, como era ‘grande’ o Saps – a gente até podia escolher os produtos... Ficava ao lado de onde hoje é a Loja do amigo Zucchi e o Samdu onde está o Belas Artes.

Depois de passar na frente da padaria ‘Sem Rival’, desviei os olhos para ver os sonhos, os folhados e os caros. O cheirinho de pastel feito na hora me invadiu as narinas que até hoje sinto aquele ar de massa frita na banha. Sem pastel - as pedras quentes do calçamento me fritavam a sola dos pés.

Depois do bar Arthur, o bar ‘Das Vitaminas’ (quanto bar!) dobrei a direita e subi pela ‘avenida’. Sempre de calçãozinho e pé no chão. Passei pela interminável escadaria da Delegacia Regional de Polícia que parecia levar aos céus – ou seria aos infernos – quase em frente à Voz da Serra. Lá em cima estava o delegado Rômulo Monteiro – pai do meu grande amigo Feliciano, o Fifa, hoje, baiano por adoção e opção.

Obstinado pela obediência à confiança recebida que me distinguia como alguém acreditado de fé -, incrivelmente nem parei para olhar os cartazes do Cine Ideal, o ‘de Cima’, e quando vi, estava em frente ao Café Grazziottin.


V


Fiquei deslumbrado quando entrei.
Aquelas mesinhas rodeadas de cadeiras bem desenhadas e de madeira com corte confortável. Como devia ser bom e importante poder sentar numa delas!

Gentes altas que nunca vira antes, mas por certo importantes enfiadas em paletós e fumegando mis cigarros, bebiam café em minúsculas xícaras, ou levantam à boca mais um gole de Serramalte ou Caracu. O café estava esfumaçado. Era chic – fumar... Hollywood, da caixinha vermelha, branca e com uma faixa azul, ou Minister então, da caixinha branca com a faixa azul acima e o ‘M’ em dourado, nossa - nem se fala!

Caminhei com o pacotão me cobrindo a parte da frente, (graças a Deus... e se me conhecessem... mas quem haveria de conhecer um fedelho daqueles!) sem camisa e de pé no chão até o balcão. Pensa só: pé descalço, calção e sem camisa – mas não por moda, mas por...


VI


De longe, uma senhora logo imaginou o que eu fazia naquele lugar, e mais; o que trazia e mandou que eu fizesse rapidamente a volta pelo balcão onde tinha um motor... gggggggrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr... barulho que até hoje não me abandona os ouvidos. Era o motorzinho que tocava a máquina de fazer sorvete.

- O que tu tem aí, menino!, adiantou-se a senhora, já suspeitando do que trazia.
- A dona... a costurera lá do ‘Seu Zamprogna’ me mandou... Eu...
-        Eu sei. Eu sei. Pode deixar aqui.
E sem identificações, identidades, desconfianças ou garantias de estar entregando o pacote para a pessoa certa – deixei aquele enorme embrulho nas mãos dela. Devia mesmo ser um vestido novo para um baile de sábado para aquela senhora, legítima proprietária do vestido, segundo deduzi e conclui pela sua intimação.
Grrrrooooonnnnnnngggggrrrrrrrrr. Grrrrroooooooooonnnnnnnnnggggrrr. Grrrrrggggooooonnnnnnnrrrrnnrrrr... fazia da maquininha do sorvete.


VII


Entregue o pacotão, e ainda complemente deslumbrado com aquele cenário que nunca tinha visto antes, pois, quando eu alcançava a porta da saída e o sol de rachar, de novo me batia nos olhos, aquele sol que vinha por detrás da rua Alemanha, da banquinha do pai da Salete...
- Ô - guri! Ô menino! – alguém gritou.
- Me virei e a mulher disse de novo, lá do fundo do Café Grazziottin, quase encoberta pelo balcão aonde o ar era fresquinho...
Volta aqui guri, disse ela e ordenou: pega aqui!

Caminhei até o balcão, e aquela senhora, a dona do vestido, me alcançou por cima daquele motorzinho, o maior, o mais lindo porquanto incomparável e inesquecível, o melhor sorvete que eu já tomei em toda minha vida.

- Toma aqui. E diz obrigado lá pra costureira.
O sorvetão de uva, chocolate e creme me escorria pelos dedos, pela goela e pelos beiços, derretendo de calor assim como eu quase derreti quando subi correndo a Nelson Ehlers até o centro levando o pacotão com o vestido que nunca haveria de ver  na minha vida.

O ‘pazinha’ de madeira, (como eram lindas e delicadas aquelas pazinhas dos sorvetes), guardei na gaveta das minhas preciosidades de criança por meses a fio – mais de ano. Misturou-se, e perdeu-se entre as figurinhas, o bodoque, as bolitas, o bilboquê e gibis, é claro.


 VIII

Que tempos eram aqueles que se guardava uma ‘pazinha’ de madeira, essas de tomar sorvete – como se fosse um bem precioso, sem preço - nem venda!
Hoje, quando não se tem sorvete em casa – minha nossa!
Onde estará aquela costureira, a dona do café? O que foi feito daqueles freqüentadores daquelas mesinhas?!
Gentes grandes, tão independentes que era difícil acreditar que um dia teriam fim.
E aquele ‘ô guri – pega aqui!’ este eu nunca esqueci, até por que, acho que foi o maior sorvete que o Café Grazziottin serviu em toda sua rica história. E foi de graça. E foi para mim. Quem era eu?!

O pacotão com o embrulho de papel grosso, entre um vermelho e um rosa, devia mesmo conter algo importante. Um vestido. Onde estaria aquele vestido e que histórias, poderia ter ele presenciado – além desta do meu primeiro sorvete!?

Se a vida passa rápida, mais depressa ainda se vão os estilos de vida, levando consigo os vestidos, as casas de comércio, os cinemas, as pedras de punhais escondidas sob o pó, as modas, os cafezinhos, as Serramaltes, o chão de pedras decoradas do café - com suas mesinhas e cadeiras de corte fino, as ‘pazinhas’ em madeira, os sorvetes... e tudo mais.

Aonde foram parar aquelas pessoas?
Sei, não sei... certamente – a maioria sabe, sabemos todos.
Os avanços voam.
O mundo quando não muda – vira outro.
Comparando-se tempos e suas coisas, concluir que os tempos mudaram soa inocente, quando não - ingênuo.
Os tempos não mudaram. São outros.
E neste outro tempo, quem só conhece o hoje, custa a crer no ontem com suas gentes, idiossincrasias e modos de vida.


IX


Em outro fevereiro, sei lá, 50 anos depois daquele do sorvete da minha vida; só o sol parece o mesmo. Abrasador, insuportável e imponente.
Os cinemas viraram lojas. Sucursais de rede.
O ‘Grazziottin’ de ontem – loja fina vende moda.
Os sorvetes atendem filas nas calçadas.
Tudo pago. Nada dado.
No chão – tudo é outra coisa.
No alto, o sol, ninguém toca.
E hoje, quando me deparo com alguém de pé no chão – sinto arder a sola do pé, e como se fosse ontem - desvio no chão para não ser surpreendido por uma pedra ponteaguda escondida sob o pó, que também já não existe mais entre o Mantovani e a ‘avenida’.

Preciso de sapatênis.
Vou comprar,
quem sabe,
no ‘Cinema de Baixo!’.
Preciso de bermuda e camiseta.
Vou comprar,
quem sabe, no antigo Café Grazziottin.
Preciso de celular novo.
Vou comprar,
quem sabe,
no ‘Cinema de Cima!’.
Que calorão – Meu Deus!
Preciso de um sorvete.
Vou comprar,
quem sabe (fossem outros tempos – até ganharia um) na calçada.
Mas – pra que, Santo Deus,
 – se nem posso tomar. Estou diabético!