Milton Amadeo Arioli, 24 de abril de 2018 |
Eu nunca perguntei por que ele me cumprimentava nas
calçadas das ruas de Erechim. Ele, um homem reconhecido em todas as instâncias da
sociedade local e eu, um sem-rumo, que corria pra cá e pra lá o dia inteiro pra
poder comer à noite. Enquanto eu espichava o passo acelerado, lá vinha ele, na
frente do antigo Cine Luz, com seu jeito muito particular de caminhar, que
denotava uma calmaria perturbadora. Isso mesmo: uma passada que parecia esperar
a outra perna colocar o pé no chão (é claro que é com todos os caminhantes
assim), mas ele parecia que o pé de apoio “esperava – dava um tempo” até o outro
alcançar o chão para só daí levantar e dar mais um passo, o seu passo, levando-o
à frente aparentemente recolhido à sua mais recôndita intimidade.
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E aí vinha dos seus olhos um olhar educado, e da sua
boca, uma carinhosa saudação com um “boa tarde”, acompanhado de um leve sorriso
- como se eu fosse um dos seus amigos ou antigos conhecidos de vivências mis
quer fosse no futebol, no agronegócio, nos interesses da igreja, nas reuniões
de família, do HC ou das festas do Aristocrático.” Ah, já sei – acho que ele me
cumprimenta”, pensava eu, e podia mesmo ser por isso, “pela proximidade que
tinha com sua esposa a senhora Lurdes, e aqui até eu já me confundo, não sei se
aos tempos do JB ou da 15ª Delegacia de Educação, hoje 15ª CRE – quando esta se
situava no térreo do São José.
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Eu só sei de uma coisa: passado todo esse tempo,
pego lá dos anos 1981 em diante – ele e ela -, eram de uma educação, de uma simplicidade,
de uma sortida posição social e ao mesmo tempo de uma discrição que, como
disse antes, a mim parecia perturbar. Talvez porquanto somos levados a associar
quem muito bem de vida – a ser “um nariz empinado”, um indiferente, um
prepotente, um “sabe com tá falando?”. Não era o caso. Era o contrário.
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Não – ele e ela não misturavam suas joias de pulso com as relações humanas e isso, no meu caso, me colocava tão à vontade que eu
nem percebia minha posição boquiaberta. Com o tempo fui me confundindo e
passando a falar, a ver ou tratar como se fôssemos contemporâneos “sociais”.
Santa ingenuidade. Eles com seu modo elegante de ser e eu com minha estupidez, como se diz, "se achando...!".
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Milton Amadeo Arioli, nascido em Erechim, tinha
duas credenciais para jogar futebol e no Atlântico: primeiro, era um bom
meia-atacante em 1952 (ano que nasci) e 1953 e, além disso, um familiar que
viria a ser presidente do clube.
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Mas o que o colocou mesmo em campo ao
lado do gênio Borges e ainda de Fábio Koff, Toinho, Fossatti & Cia, foi seu
futebol. Disputou quatro clássicos Atlanga e fez dois gols. Venceu um, perdeu
outro e empatou dois.
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Ou seja – Milton Arioli passou pelos
Atlangas com o balanço fechado. Nos quatro jogos deixou dois gols e foi
justamente nos dois empates e ambos na Montanha. A seu favor conta ainda ter
jogado contra uma das melhores equipes montadas pelo Ypiranga desde 1924 –
superada, é claro, pelo timaço de 1949.
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Como a comprovar sua polidez e discrição
humana, Milton Arioli, extremamente solícito, não fala dele no livro dos
Atlangas. Prefere enaltecer com quem atuou. E nessa história está com destaque o "Velho Borges" – Herminio Carpegiani.
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“O Velho Borges era demais. Era um
atleta completo. Batia com os dois pés, cabeceava, armava, comandava o time. Em
um Atlanga que o Atlântico goleou, ele fez dois gols de falta. Na primeira ele
deu uma bomba de direita que o goleiro até hoje não sabe por onde ela entrou”.
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Outro atleta que Arioli define como
extra-classe na história do futebol local, foi o goleiro Waldemar, o ‘Pantera Negra’ – apelido do grande goleiro
do Atlântico na década de 1950, que entre outras brincadeiras, hoje proibidas
no futebol, gostava de fazer. “Depois de uma defesa, o Waldemar devolvia a bola
para atacantes e mandava chutar de novo. Imaginem!” – me relatou. Ele até
escalou sua seleção Atlanga: Waldemar; Bino, Garcia, Noronha e Chitolina;
Fossatti, Borges e Marimba; Tomasi, Índio e Lauro.
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Houve um tempo em que eu ia à missa todos
os sábados à tarde na Catedral São José. Tinha até um lugar preferido. À
direita do altar e pertinho de onde estão depositados os restos mortais da
minha irmã Maria Ceci – no ossário. Alguém pode ter interpretado que queria
aparecer, pois quase sempre estava meio sozinho naquele canto da catedral, mas
não. A razão é essa aí.
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E lembro desse tempo, porque todos os sábados
(aiaiaiai – ou seria uma ou outra a missa dos domingos de manhã!), mas o fato é
que encontrava sempre, sempre e sempre Milton e Lurdes, que, se já não disse vou
dizer – pareciam feitos um para o outro.
Era o que me saltava aos olhos. E então quase sempre nos cumprimentávamos - para mim uma alegria – ser notado e receber um “boa
tarde’ ou um “oi” – do casal que sempre admirei.
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E eu ficava contente vendo ambos se
afastarem, de mãos dadas, rumo a uma das entradas mais importantes da Maurício.
Eu, vocacionado ao pecado, recém saído da missa já me traía sobre o que
prometera diante do padre. “Meu Deus – o que será que essa gente vai fazer
agora, com tudo que tem!?”, arquitetava em pensamento simplista e desprovido de
qualquer prova que meus olhos pudessem atestar por uma única vez que fosse.
Idiota. Coisa de bisbilhoteiro de segunda categoria. Mas, francamente, não era
por mal. Era por pobreza de espírito mesmo – confesso hoje.
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Era domingo 9 de agosto de 1953.
O Milton tinha feito 20 anos havia seis meses.
Eu chorava e agitava os braços e as pernas
num bercinho de madeira em Sede Dourado. Em um mês faria meu primeiro ano de
vida. Pelo que pesquisei o estádio da Montanha estava lotado. Era o 86º
Atlanga. Aos 8 minutos o Milton aproveitou uma falha da zaga verde-amarela e
abriu o placar no clássico. O time comandado por Ervino Ritter forçou e aos 34
minutos Quinzinho empatou o Atlanga. Na etapa complementar o Atlântico foi
pressionado, mas suportou o ataque ypiranguista. O goleiro do Atlântico,
Wilson, repetiu façanha de domingo passado, dia 2 de agosto de 1953, quando o Galo bateu o Canário por 2 a 1. Melhor que o goleiro só o exemplar comportamento
dos 22 em campo facilitando a arbitragem de Ney Barbosa. Atlântico jogou com:
Wilson; Rico e Alencar; Borges, Fossatti e Dirceu; Piaveta I, Milton Arioli,
Toinho, Alexandre e Barbieri. E o Ypiranga teve: Miguel; Frainer e Celso; Rodo,
Plínio Parenti e Ronchetti; Tuta, Quinzinho, Milton, Marimba e Paiva.
Gols: Milton Arioli (A) e Quinzinho (Y)
Atlântico em Aratiba/Arquivo Milton Arioli O 3º agachado da esqerrda para a direita |
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Ao iniciar o texto não sabia por onde começar. Se pelo
futebol ou pelas outras referências lá em cima. Podia ser pela notícia do
falecimento. Ou podia ser pelos cânticos do padre Sala na Capela do HC, pelo
envolvimento comunitário do Milton no futebol com a camisa do Atlântico, ou
pelo agronegócio, ou pelos passeios com sua Lurdes de mãos dadas na avenida, ou
pelas festas no Clube do Comércio que presidiu, ou pela ajuda que nunca negou à
igreja quase que anonimamente, ou pela participação no HC, ou por suas camisas
de mangas arregaçadas, ou por seu par de Mocassin a lhe garantir um passo seguro
e macio, ou pela hemodiálise que me disse... E se iniciasse pelo livro dos
Atlangas que o ‘Seu Milton’ tanto me ajudou cedendo fotos, identificando
pessoas, passando informações, contando histórias...
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Um dia criei coragem e liguei. Ele passou a
data e o horário que poderia me receber e que entrasse pelo portão que
dá da Maurício à sua residência. Fiquei com medo que tivesse cachorro, mas que
nada, lá estava ele na porta me esperando no horário marcado. Convidou-me a
sentar, parou seu trabalho e começamos a falar. Eu explicando sobre o livro e
ele me passando fotos e contando histórias. De frente para a porta, seu filho,
Reno, mantinha a rotina e virava folha em cima de folha ou nota em cima de
nota, sei lá, e de vez em quando levantava a cabeça, ajeitava seus cabelos
brancos que lhe encobriam os olhos e dava um sorriso.
Milton Arioli em seu escritório. 24 de abril de 2018. |
Depois disso seguiram-se encontros rápidos, mensagens por celular e ele sempre me auxiliando, tirando dúvidas. Um dia o livro ficou pronto. E por mais inacreditável que pareça, permaneço com a dúvida: “será que eu dei um livro para o ‘Seu Milton’?. Acho que sim. Não é possível que tenha tropeçado em tão irreparável equívoco, e com ela convivo nesta hora tão difícil para a minha colega e amiga Lurdes, esposa do ‘Seu Milton’ e para seus filhos, noras, genro, netos e demais familiares; enfim, para todas as pessoas que tiveram o prazer de conhecer este ser humano magnífico que leva consigo talvez aquela que pode ser a maior das virtudes entre as que as possuem: a discrição. Foi tudo que foi, fez tudo que fez, deixou tudo que deixou quase anônimo, averso a titulações, a reverências de seus semelhantes. Na igreja de sempre, ouviu (?) a sua derradeira missa no dia do seu aniversário – rezada em sua honra. Por isso achei muito feliz a iniciativa do padre Sala, na capela do HC, ao destacar que “hoje temos festa no céu. Chega um aniversariante. Uma salva de palmas ao ‘Seu Milton Arioli’, que hoje completaria, e completa, 89 anos”. Descansou um terço de Nossa Senhora de Fátima entre mãos da senhora Lurdes – e eu fui tomado por uma estranha calmaria. Bem parecida com àquela que um homem de tantos envolvimentos comunitários, expressava quando caminhava do CC, passando pelo antigo Cine Luz, ou da Catedral... até a entrada da sua casa e, ainda, encontrava tempo para me sorrir e saudar com sua voz macia – como se eu fosse alguém da sua estatura. Parabéns não só pelo seu aniversário desta feita - mas pela obra que construíste e pelo exemplo que deixaste a quem contigo conviveu ou, como eu, por ti tão elegantemente, tantas vezes, foi recebido e tratado. Como eu me orgulho deste privilégio. Vai 'Seu Milton' - vai comemorar seu aniversário no céu.