sábado, 12 de fevereiro de 2022

Vai Miguel. Vai...!


1

Havia tempo que não 

escrevia.

Muito por causa da pandemia.

Mas também por conta do tempo.

Não parece mas a energia, os objetivos, 

os sonhos vão se desmanchando, murchando, evaporando com o tempo.

Quem acha o contrário, parabéns.

Semana passada mandei uma mensagem 

para o celular do Miguel.

Mudo.

Instantes depois, recebi resposta.

Era sua filha Sonia.

Dizia que havia passado o recado para o seu 

pai e mandava agradecer.

Ele estava de aniversário.

Esta semana o Ricardo Carraro me avisou 

que o Miguel estava hospitalizado.

Pedi o que tinha acontecido e ele 

– sem entrar em detalhes – vaticinou: “pulmão”.


2


Ontem veio a notícia do falecimento do Miguel.

Uma noite perdida nos anos 1980 ele estava 

no corredor que dava para o plenário 

do Legislativo.

Fumava e mascava alguma coisa.

Caminhava da porta até a escadaria e voltava.

Saí do plenário e fui até ele.

Dava para ouvir os debates e ver os edis.

Eram tempos onde os temas de interesse 

da cidade ganhavam discussões acaloradas 

ao microfone.

Não havia ofensas.

As convicções políticas eram expostas 

às claras e respeitadas.

Eram tempos onde ideias prevaleciam 

sobre ideais.

E nós dois trocávamos observações 

sobre as intervenções dos representantes 

do povo, de todo povo e não do povo do 

governo ou do povo que não votara 

no governo da hora.

Naqueles tempos não se encolhiam as sessões.

Invariavelmente se estendiam até às 23 horas, 

meia noite – quando não invadiam as madrugadas.


3


Eram tempos de ilustres vereadores, 

entre os quais estava Miguel Gotler.

Os partidos e ideologias eram respeitados.

As convicções sobre a cidade – nem se fala.

Eram tempos em que a independência 

dos Poderes orgulhava.

Fazia a cidade mais livre.

Menos cabisbaixa especialmente no Legislativo.

Mas isso são águas passadas já misturadas 

ao oceano do tempo.


4


Hoje vivemos uma era moderna.

Um WhatsApp de meia dúzia de palavras 

perfila a “convicção” da maioria.

Como diria o saudoso governador Brizola, 

são “os interesses”.

E cá para nós – sempre existiram -, 

mas, aparentemente, se portavam 

com mais pudor.

Talvez por isso Miguel Gotler não 

se aventurou mais a cargos eletivos.

Não largou seu MDB, onde sempre foi 

voz de serenidade (junto a Chico Pungan), 

quando labaredas de uma ou outra insensatez 

ameaçava incendiar tudo.

Era o que se ouvia. Era o que se deduz.


5


Então, Miguel partiu com tudo que tinha – 

conhecimento, energia, determinação, 

novos objetivos, paciência, inteligência e discrição -, 

à verdadeira dedicação comunitária.

Descobriu que ali podia fazer mais 

– bem mais. E fez.

Não vou relembrar as incursões do Miguel 

na sociedade erechinense, em missões sem paga.

Os jornais já fizeram.

Apaixonara-se pelo voluntariado pelo visto.

De todos seus feitos, junto a outras 

instituições e pessoas, 

nenhuma outra atividade acalentava mais 

a mente e o coração do Miguel, 

que dedicar-se, sem dia nem hora, 

à segurança pública, até onde todos 

os seus braços se multiplicam, estendem 

a alcançam. 

Consepro - "comosempre"?

Provavelmente descobrira sua

real vocação.


6


Não bastasse isso, emendo revirando 

a memória agora, que o Miguel, embora 

um homem de família – era um cidadão da rua.

Isso mesmo. 

Das calçadas.

Mãos nos bolsos e mascando uma goma - sei lá.

Caminhava a passos medidos.

Nunca tinha pressa.

E mesmo assim era um dos primeiros a chegar.

Parecia multiplicar-se.

Estava no Posto Ipiranga, 

numa loja, 

no Colosso da Lagoa, 

no Lions, 

no aeroporto,

nas Frinapes,

na URI,

na Câmara de Vereadores, 

junto a autoridades que aqui chegavam. 

Podia ser visto por mais de hora 

na fruteira do Beto conversando,

entre abacaxis, melancias, rapaduras e salames. 

Estava no Clube do Comércio, 

no sorveteiro,

no 13º

nos eventos cívicos da cidade,

e no ponto de táxi...

Quantas trocas no 13º?

Quantas formaturas no 13º?

Quantas posses na civil?

Nos bombeiros?

Quantas sessões na Colenda até como observador?

Sim - ele conversava com as pessoas.

Parecia adorar isso.

Era como um lenitivo diário pra ele.

Recolhia informações e, por certo, 

montou uma “biblioteca” em sua 

cabeça mesclando características, nomes, 

dificuldades, demandas, opiniões, 

penúrias, anseios e sonhos de erechinenses 

de todas as camadas sociais; 

capacitando-o, 

como poucos, a interpretar 

a verdadeira alma 

do 

erechinense.


7


O Miguel de fato gostava de conversar e 

de ler nem se fala.

Trocar ideias.

Mas entre tantas virtudes, 

nesta cada vez mais dificultosa arte 

do exercício do diálogo 

-  Miguel sabia ouvir.

Dava tempo para ouvir e, isso, 

convenhamos, 

também vem rareando.

Entre num bar, entre numa barbearia, 

sente-se numa roda de amigos num café ou, 

aí é pra encerrar essa parte, pegue o celular 

e entre num grupo ou só expecte as postagens 

não sobre política ou futebol, 

nem sobre religião ou gênero, 

muito menos sobre preconceito e 

menos ainda sobre todos 

os “ismos”, sem falar se a pandemia 

é pra enriquecer laboratórios, 

ou pra dominar o mundo, ou que a vacina 

é máscara e a máscara é pra acabar 

com a identidade das pessoas 

– mas sobre, digamos uma obviedade 

esdrúxula... 

será que Elvis não morreu mesmo?

Falta civilidade.

Não há paciência.

A concordância passa longe.

Sobram ofensas.


8


Então, o Miguel com sua calça frisada, 

seus confortáveis sapatos de couro marrom (?), 

sua camisa de mangas, 

sua blusa decote “V” e suas "japonas",

(jaquetas para os mais novos) 

ou casaco de 

de lã ou ainda o "sobretudo" preto em dias frios, 

e, de quando em vez com seu lenço ao pescoço;

– ouvia, ouvia e ouvia, e, quando abria 

a boca,

com voz macia - quase aveludada, 

buscava a concordância, 

não por agrado, 

mas com argumentos, e, sem pressa, 

vasculhando 

a história na sua biblioteca de memória 

– contrapunha.

E dali ou de onde fosse 

se saía sabendo mais.


Menos mal que o Miguel, 

ao que tudo indica, 

e ao contrário de outras lideranças 

- preparou um substituto 

para a continuidade das suas ações 

na Segurança Pública: provavelmente será 

Jaime Pereira de Lima.

Se for, que desafio aguarda o Jaime!

Boa sorte e siga seu “professor”: ouça mais 

e só então aja.


9


Ah o “seu Miguel”,

lá, lá bem ao fundo...

misturando a fumaça dos seus "pitos" 

aos cheiros, cores e estampas de todos 

os tecidos em grandes rolos

recém chegados da capital paulista  

- na afamada Casas São Paulo. 

Lembram?


10


O tempo, esse tempo, 

que não está nem aí para o “tempo” 

que estamos vivendo, ou que vivemos 

ou que virá – ele se encarrega de levar tudo.

Levou o Miguel Gotler por tantas entidades 

de Campo Pequeno.

Levou o Miguel Gotler ao Legislativo 

quando este questionava o Executivo.

Levou o Miguel Gotler do futebol do Ypiranga 

para o MDB.

Levou o Miguel Gotler para o Consepro.

Levou o Miguel Gotler por todas as ruas da cidade.

Levou o Miguel Gotler das Casas São Paulo.

Levou as Casas São Paulo.

E agora levou o próprio.


11


No entanto,

seu olhar de “feliz consigo mesmo”, 

sua presença afável e,

de inebriante discrição, 

com suas mãos esfregando os dedos

no fundo dos longos bolsos 

das calças frisadas, 

descansando a consciência 

dos deveres cumpridos;

este ficará entre nós,

como exemplo de admiração

da elite aos mais humildes,

a maioria 

- desconhecidos vizinhos da mesma cidade.

Parece que o Miguel queria

encurtar essa distância.

Aproximar os tão diferentes.

E para muitos conseguiu.

Seu legado é sem contestação.

Vai Miguel. Vai...!  

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