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Havia tempo que não
escrevia.
Muito por
causa da pandemia.
Mas também
por conta do tempo.
Não parece mas a energia, os objetivos,
os sonhos vão se desmanchando, murchando,
evaporando com o tempo.
Quem acha o
contrário, parabéns.
Semana passada mandei uma mensagem
para o celular do Miguel.
Mudo.
Instantes depois,
recebi resposta.
Era sua
filha Sonia.
Dizia que havia passado o recado para o seu
pai e mandava agradecer.
Ele estava
de aniversário.
Esta semana o Ricardo Carraro me avisou
que o Miguel estava hospitalizado.
Pedi o que tinha acontecido e ele
– sem entrar em detalhes – vaticinou: “pulmão”.
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Ontem veio a
notícia do falecimento do Miguel.
Uma noite perdida nos anos 1980 ele estava
no corredor que dava para o plenário
do
Legislativo.
Fumava e
mascava alguma coisa.
Caminhava da
porta até a escadaria e voltava.
Saí do
plenário e fui até ele.
Dava para
ouvir os debates e ver os edis.
Eram tempos onde os temas de interesse
da cidade ganhavam discussões acaloradas
ao
microfone.
Não havia
ofensas.
As convicções políticas eram expostas
às claras e respeitadas.
Eram tempos onde ideias prevaleciam
sobre ideais.
E nós dois trocávamos observações
sobre as intervenções dos representantes
do povo, de todo povo e não do povo do
governo ou do povo que não votara
no governo da
hora.
Naqueles
tempos não se encolhiam as sessões.
Invariavelmente se estendiam até às 23 horas,
meia noite – quando não invadiam as madrugadas.
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Eram tempos de ilustres vereadores,
entre os quais estava Miguel Gotler.
Os partidos
e ideologias eram respeitados.
As
convicções sobre a cidade – nem se fala.
Eram tempos em que a independência
dos Poderes orgulhava.
Fazia a
cidade mais livre.
Menos
cabisbaixa especialmente no Legislativo.
Mas isso são águas passadas já misturadas
ao oceano do tempo.
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Hoje vivemos
uma era moderna.
Um WhatsApp de meia dúzia de palavras
perfila a “convicção” da maioria.
Como diria o saudoso governador Brizola,
são “os interesses”.
E cá para nós – sempre existiram -,
mas, aparentemente, se portavam
com mais pudor.
Talvez por isso Miguel Gotler não
se aventurou mais a cargos eletivos.
Não largou seu MDB, onde sempre foi
voz de serenidade (junto a Chico Pungan),
quando labaredas de uma ou outra insensatez
ameaçava incendiar tudo.
Era o que se
ouvia. Era o que se deduz.
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Então, Miguel partiu com tudo que tinha –
conhecimento, energia, determinação,
novos objetivos, paciência, inteligência e discrição -,
à verdadeira dedicação comunitária.
Descobriu que ali podia fazer mais
– bem mais. E fez.
Não vou relembrar as incursões do Miguel
na sociedade erechinense, em missões sem paga.
Os jornais já fizeram.
Apaixonara-se
pelo voluntariado pelo visto.
De todos seus feitos, junto a outras
instituições e pessoas,
nenhuma outra atividade acalentava mais
a mente e o coração do Miguel,
que dedicar-se, sem dia nem hora,
à segurança pública, até onde todos
os seus braços se multiplicam, estendem
a alcançam.
Consepro - "comosempre"?
Provavelmente descobrira sua
real vocação.
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Não bastasse isso, emendo revirando
a memória agora, que o Miguel, embora
um homem de
família – era um cidadão da rua.
Isso mesmo.
Das calçadas.
Mãos nos bolsos e mascando uma goma - sei lá.
Caminhava a passos medidos.
Nunca tinha pressa.
E mesmo assim era um dos primeiros a chegar.
Parecia
multiplicar-se.
Estava no Posto Ipiranga,
numa loja,
no Colosso da Lagoa,
no Lions,
no aeroporto,
nas Frinapes,
na URI,
na Câmara de Vereadores,
junto a autoridades que aqui chegavam.
Podia ser visto por mais de hora
na fruteira do Beto conversando,
entre abacaxis, melancias, rapaduras e salames.
Estava no Clube do Comércio,
no sorveteiro,
no 13º
nos eventos cívicos da cidade,
e no ponto de táxi...
Quantas trocas no 13º?
Quantas formaturas no 13º?
Quantas posses na civil?
Nos bombeiros?
Quantas sessões na Colenda até como observador?
Sim - ele conversava com as pessoas.
Parecia adorar isso.
Era como um lenitivo diário pra ele.
Recolhia informações e, por certo,
montou uma “biblioteca” em sua
cabeça mesclando características, nomes,
dificuldades, demandas, opiniões,
penúrias, anseios e sonhos de erechinenses
de todas as camadas sociais;
capacitando-o,
como poucos, a interpretar
a verdadeira alma
do
erechinense.
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O Miguel de fato gostava de conversar e
de ler nem se fala.
Trocar ideias.
Mas entre tantas virtudes,
nesta cada vez mais dificultosa arte
do exercício do diálogo
- Miguel sabia ouvir.
Dava tempo para ouvir e, isso,
convenhamos,
também vem rareando.
Entre num bar, entre numa barbearia,
sente-se numa roda de amigos num café ou,
aí é pra encerrar essa parte, pegue o celular
e entre num grupo ou só expecte as postagens
não sobre política ou futebol,
nem sobre religião ou gênero,
muito menos sobre preconceito e
menos ainda sobre todos
os “ismos”, sem falar se a pandemia
é pra enriquecer laboratórios,
ou pra dominar o mundo, ou que a vacina
é máscara e a máscara é pra acabar
com a identidade das pessoas
– mas sobre, digamos uma obviedade
esdrúxula...
será que Elvis
não morreu mesmo?
Falta civilidade.
Não há paciência.
A concordância passa longe.
Sobram ofensas.
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Então, o Miguel com sua calça frisada,
seus confortáveis sapatos de couro marrom (?),
sua camisa de mangas,
sua blusa decote “V” e suas "japonas",
(jaquetas para os mais novos)
ou casaco de
de lã ou ainda o "sobretudo" preto em dias frios,
e, de quando em vez com seu lenço ao pescoço;
– ouvia, ouvia e ouvia, e, quando abria
a boca,
com voz macia - quase aveludada,
buscava a concordância,
não por agrado,
mas com argumentos, e, sem pressa,
vasculhando
a história na sua biblioteca de memória
– contrapunha.
E dali ou de onde fosse
se saía sabendo mais.
Menos mal que o Miguel,
ao que tudo indica,
e ao contrário de outras lideranças
- preparou um substituto
para a continuidade das suas ações
na Segurança Pública: provavelmente será
Jaime Pereira de Lima.
Se for, que desafio
aguarda o Jaime!
Boa sorte e siga seu “professor”: ouça mais
e só então aja.
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Ah o “seu Miguel”,
lá, lá bem ao fundo...
misturando a fumaça dos seus "pitos"
aos cheiros, cores e estampas de todos
os tecidos em grandes rolos
recém chegados da capital paulista
- na afamada Casas São Paulo.
Lembram?
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O tempo, esse tempo,
que não está nem aí para o “tempo”
que estamos vivendo, ou que vivemos
ou que virá – ele se encarrega de levar tudo.
Levou o Miguel Gotler por tantas entidades
de Campo Pequeno.
Levou o Miguel Gotler ao Legislativo
quando este questionava o Executivo.
Levou o Miguel Gotler do futebol do Ypiranga
para o MDB.
Levou o Miguel Gotler para o Consepro.
Levou o Miguel Gotler por todas as ruas da cidade.
Levou o
Miguel Gotler das Casas São Paulo.
Levou as
Casas São Paulo.
E agora levou o próprio.
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No entanto,
seu olhar de “feliz consigo mesmo”,
sua presença afável e,
de inebriante discrição,
com suas mãos esfregando os dedos
no fundo dos longos bolsos
das calças frisadas,
descansando a consciência
dos deveres cumpridos;
este ficará entre nós,
como exemplo de admiração
da elite aos mais humildes,
a maioria
- desconhecidos vizinhos da mesma cidade.
Parece que o Miguel queria
encurtar essa distância.
Aproximar os tão diferentes.
E para muitos conseguiu.
Seu legado é sem contestação.
Vai Miguel. Vai...!
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