Melita Ody |
Dia 5 de março de 2022. Sábado.
1
Decidimos - meus dois irmãos Gilberto
e Vanderlei e eu - que não precisava mais reabrir o caixão para um último adeus
à minha mãe Melita. Já nos despedíramos na capela. Estava sim – morta. Não
havia o que reconferir. Era hora de irmos embora. Os pedreiros fecharam o que
ainda supúnhamos – vida e fomos para casa.
O carro fúnebre já estava na porta do
cemitério quando cheguei. Foi um deslocamento rápido do Pio XII até a Capela B
do HC.
Na capela todos nos despedimos dela,
familiares, parentes, vizinhos e muitos amigos. A tampa do caixão saiu do
encosto da parede e encobriu a mãe com sua medalhinha e flores.
O diácono emérito da igreja São Pedro,
Almeri Borneli, conduziu as preces e disse palavras simples, rápidas,
importantes e reconfortantes. Sem firulas falou o essencial.
Antes das 10 horas a capela foi
enchendo. Parentes vindos de cidades vizinhas chegavam. O irmão dela, Rainoldo,
de 93 ou 94 anos veio de Aratiba, alquebrado pelo tempo e trazido pelas filhas.
Outros vieram de Santa Catarina. Às 10 horas a capela B do HC ficou pequena. Às
9 horas começaram a chegar e chegar. Às 8 horas meu irmão Gilberto estava na
Catedral para pegar um documento para o sepultamento. Meu irmão Vanderlei fora
na São Pedro acertar a vinda do diácono.
2
Às 6 horas já havia quem corresse em
volta do Parque Longines Malinowski. Mais mulheres que homens inspirando o
perfume das árvores.
Abri a capela às 5h10min e tudo
estava dormindo como a quietude do Mato da Comissão. Eram as quietudes de quase
90 anos: do mato e da mãe com seu modo de ser.
Às 5 horas levantei tirei uma manta
com a qual me cobrira. E levantei do sofá da capela. Era mais cochilo do que
sono.
Meu irmão Gilberto ainda tentou se
remexer no outro sofá – mas logo decidiu também levantar.
Às 4 horas abri os olhos. Às 4h30min
eu levantei. Dei um volta pela capela. Não havia calor nem frio. Só silêncio
com suas mil perguntas.
Ali deitada quieta como fora em vida
– minha mãe descansava no caixão emoldurado por flores, luz de vela à energia e
o crucifixo atrás. No canto da capela o tampão esperava por seu papel.
Às 3 horas me acordei e com a cabeça
recostada num travesseiro que meu irmão trouxera de casa, abria os olhos, vira
o olhar à esquerda e via a primeira parte do caixão. Era o rosto da minha mãe.
Mudo. Pálido. Sereno. Tal qual fora assim lá acomodado.
Olhava e olhava, fechava os olhos,
tomado por um misto de sonho e realidade. Mas era esta é que era.
Pensei comigo: dormi em muitas camas,
dormi na casa de parentes, amigos, dormi em bancos de rodoviária, em carros, em
poltronas, até em casas de má fama, – mas nunca em uma capela mortuária.
Pouco antes das 3 horas, meu irmão
Vanderlei e sua esposa Cecília foram para casa descansar. Todos os demais também
já tinham também se retirado, afinal... Decidimos que Gilberto e eu ficaríamos à
noite.
Fechados à chave na capela mortuária com
minha mãe e seu sono eterno.
No dia 4, na noite anterior, sexta-feira,
portanto, alguns vizinhos e conhecidos mais próximos apareceram. Surpresos com
o falecimento da dona Melita – residente há 65 anos ali na Jerônimo Teixeira,
defronte ao antigo portão do Mantovani. Antigo e primeiro.
3
Voltando ainda no tempo – às 21h30min
o carro fúnebre chegou na capela para depositar o caixão. Minha mãe estava
vestida com a roupa que pedira e discretamente maquiada. Maquiada?
Antes disso saímos a providenciar
questões burocráticas (porém necessárias): como qual funerária, o que
forneciam, documentos para identificar quem partira, informar a imprensa,
disparar mensagens pelo WhatsApp, definir horário do velório, fecharíamos ou
não a capela, missa ou encomendação, horário de sepultamento, avisar parentes,
vizinhos e amigos, etc. Essas coisas que a gente vai fazendo, passando por
cima, superando uma a uma sem se dar contar. Não há tempo para pensar em nada.
Só em ir fazendo.
Eram 17h10min daquela sexta-feira, 4,
quando meu celular tocou com um número não identificado. Só me lembro que
disse: “Ai!”. Era o Moacir – enfermeiro com uns 30 a 35 anos de HC. Figura
afável. Estava agora lotado há tempos na UTI. Com voz pausada apenas disse:
“Seu Ody... a dona Melita... a sua mãe... (fez uma pausa)... (não precisava
dizer mais nada)... não conseguiu resistiu. Ela acabou de falecer”. Não posso
definir o que senti. Agradeci. Liguei para meus irmãos.
4
Fui ao hospital e à UTI. O enfermeiro
Moacir e o Dr. Spada me receberam em silêncio. Nos dirigimos até o último leito
da mãe. Descobri o lençol que a encobria. Estava sem ar. Sem batimentos. Sem
sinais. Mais quieta de como sempre preferira em vida. A única coisa que eu
conseguia ouvir era o silêncio da UTI. Beijei-lhe a testa. Nenhuma reação, como
se fosse possível. Nem 40 minutos antes, meu irmão Vanderlei, na visita
permitida à tarde, ainda a vira com vida – sustentada por medicamentos potentes
e aparelhos. Eu e a cunhada Gelsa tínhamos estado com ela na visita do meio
dia.
Antes de devolver o lençol sobre seu
rosto – vi claramente que sim, ela estava sem vida. Era o fim de uma caminhada de 89 anos. O enfermeiro Moacir e o Dr.
Spada, assim como a enfermeira Miriam – gentis, sentidos e sempre muito
solícitos – quase não disseram nada, porque não havia o que dizer. Tratei de
agradecer a delicadeza deles com que trataram e cuidaram da minha mãe desde a
entrada na UTI – um dia e meio antes – na quarta-feira à noite, dia 2. Estava enfartada,
de tal azar, que o cateterismo, tentado quinta, dia 3, tornou-se inviável de
tão complexo era o quadro da dona Melita.
Como sempre pedia (nunca soube se por
seriedade ou brincadeira) “só não me enterrem viva!”. Sim ela estava,
definitivamente, morta.
5
18 de setembro de 1952.
Descida do cavalo e levada às pressas
para dentro do Hospital do Dr. Pecoits em Aratiba, depois de 20 km e duas a
três horas, eu vinha ao mundo. Deus e minha mãe deram-me a vida – claro com meu
pai Alberto. Moravam em Sede Dourado.
Uns dias no hospital, outros em Sede
Dourado, hospital, Dourado, hospital... até que o médico decidiu: “ou deixa ele
um tempo aqui ou um dia vão chegar tarde demais!”.
Fiquei uns dias. Noventa. Aos
cuidados do Dr. Pecoits e da enfermeira Maria que nunca vim a conhecer. Até que
enfim melhorei, estabilizei e me levaram pra casa em Dourado.
Dois anos depois fomos para São
Miguel D’Oeste. Um ano depois para Erechim. Sentados na escada do Escritório
Contábil do Lewis Caron, na Tiradentes (disso começo a lembrar) almoçamos: pão,
banana e um pedaço de salame.
6
Moramos de aluguel na esquina da
Pedro Álvares Cabral com a que sobe pra Praça Jayme Lago. Era um casarão de
madeira pintado de preto. Meu pai abriu uma alfaiataria na Nelson Ehlers com o
irmão Augusto. Guardando o que podia – acertou com Celeste Dal Prá a construção
de uma casa de madeira na Jerônimo Teixeira, onde no caso da minha mãe, residiu
por cerca de 65 anos. Tínhamos uma casa. Um sonho de minha mãe.
Minha paisagem passou a ser o
descampado onde seria um tempo mais tarde o Mantovani. Era um lugar amplo que
recebia ciganos, circo, estacionamento para os Atlangas, a casa da Alba
Albarello na esquina do Mantovani com o Atlântico, o colégio em 1964, a Banda
Marcial, os jogos no Atlântico, minha mãe na máquina de costura juntando os
cortes feitos pelo pai com seu tesourão preto, as infindáveis visitas de
parentes que vinham de ônibus desde Dourado e iam à alfaiataria e, depois,
desciam pela Nelson Ehlers, convidados pelo pai para almoçarem lá em casa.
Lembro de uma frase fantástica da mãe: “naqueles tempos, todo dia lá pelas
11:30, eu ia no portão para ver quantos chapéus vinham dobrando com o pai a
Nelson Ehlers até a Jerônimo Teixeira. O número de chapéus mostrava a água que
precisava emendar no feijão. Mas – reconheça-se sempre traziam ovos, mandioca,
queijo, pão, salame, batatas, bergamotas...
7
Minha mãe com suas intermináveis dores
de cabeça, com seus cuidados para andarmos bem arrumados, suas queixas com o
filho que fez isso ou aquilo e não obedeceu, com seus medos de temporais, com seus
quatro filhos que haveriam de nascer, com suas malas pra passarmos o fim de
semana em Sede Dourado, com as atenções para nossos temas de casa; minha mãe
com a pior dor que uma mãe pode passar – a perda da única filha aos 20 anos num
estúpido acidente (?) ou crime de trânsito em um sábado à noite (maio de 1975)
-, minha mãe com a preocupação dos filhos em arrumar um trabalho, com o rádio
sempre, sempre ligado, com a Copa do Mundo de 70 vista na TV da vizinha dona
Luiza Rodrigues. Minha mãe e os irmãos empurrando a Barata 1946 do pai que não
pegava, ou patinava na saída da garagem. Minha mãe e a retirada da Legião (mais de 200 casinhas) e a implantação das
casas do BNH como se dizia. Minha mãe e a neve de 1965. Minha mãe e o medo do
fogo do Paraná. O incêndio do Colégio das Irmãs. Minha mãe e os programas de
“completar as palavras”. Minha mãe e minhas alpargatas pra ir ao Grupo Escolar
Campos Sales. Minha mãe me levando na Foto Tomazzoni para a foto da Primeira
Comunhão – felizes, mas eu me soltara, e correndo sobre um amontoado de brita,
caí e rasguei a calça. Saí na foto com cara de choro. Minha mãe e as missas das
8 aos domingos. Minha mãe e os 10 cruzeiros pro matiné e um sorvete ou um folhado
da Sem Rival. Minha mãe e os boletins. Minha mãe e seus risotos imbatíveis, das
cucas também imbatíveis. Das domingueiras com o J. Silvestre e o Flávio
Cavalcanti. Depois o Silvio Santos. A mãe dos mates-doce, das pipocas e waffle em
dia de chuva. A mãe da “salada de batatas com ovo e azeite” (nossa maionese). A
mãe do Detefon e dos “boa-noite” queimando contra os mosquitos nos quartos. A mãe
dos acolchoados grossos de pena a nos cobrir até as orelhas. A formatura do 2º grau no Atlântico. Minha
mãe e meus trabalhos no Posto Atlantic, Santa Terezinha, bar do Massaro,
Sponchiado. Minha mãe e eu no CPOR. Minha mãe e a aprovação no vestibular de
Economia em 1972 no Cese (Centro de Ensino Superior de Erechim) com os “gerentões”
da cidade. Problema: chegou um dia e não podia mais pagar. Passei então a rodar
pilhas e pilhas de provas no mimeógrafo da faculdade. Comecei uma biblioteca
com estandes de escritório. Varria o pátio. Lustrava móveis. Passava pano nas classes
e cadeiras. Varria as salas pra ficar livre da mensalidade. A mãe dos meus
álbuns de figurinhas. A mãe na casa do meu irmão Gilberto (Nico) e de sua
esposa Gelsa – com seus grostolis e bolachinhas. A mãe dos programas de fofocas
de famosos na TV. A dona Melita e sua torcida para times em plena Champions
League. Imagina só! Minha mãe dos 10 gritos pelo nome, me chamando das peladas
no Atlântico para ir pra casa. Minha mãe e a Academia Erechinense de Letras.
Minha mãe e o Brasil Urgente. A guerra na Ucrânia. Minha mãe e o amor pelas
netos Cris e Ana; Eduardo, Elisa e Guilherme. A mãe com o bisneto Benjamin que ao lhe dar de presente 100 reais - o Ben reagiu que não queria um bilhete, mas um presente! A mãe e os almoços em família com
a Sonia na cozinha. Mãe a filhos que empurravam Jeeps que de repente apagavam o motor na estradinha pra Dourado, mãe que brilhou os olhos quando o pai encostou um Fusca zero km em casa.
8
Um dia saltei da Filosofia da UFSM
para o jornalismo da PUC em Porto Alegre. E eu na rádio Difusora, no Canal 10, na
Assembleia Legislativa e finalmente na Caldas Júnior, o templo da imprensa nos
anos 1970. Ligava para ela contando as novidades telefonando para a vizinha da
esquina e amiga dela – dona Romilda Rambo. A mãe se orgulhava.
Minha mãe do Atlântico de campo,
depois do futsal. Do Inter e do Ypiranga. Minha mãe das novelas. Das “provas”
para ajustes das costuras. Do “vai buscar lenha no porão e trás gravetos”. Minha
mãe do rádio: das notícias, do carnê social da Erechim, do Clube Infantil, do
Assim Canta o Rio Grande com Gildinho e Chiquito, do imperdível Jornal Falado, da
Hora da Ave Maria, do Mensageiro Gaúcho da Difusão, e mais notícias e noticiais.
Nunca soube por que quis me tornar jornalista – mas desconfio que achei a
resposta: minha mãe com o 4º livro sabia mais do que eu sobre meu futuro. As
mães podem ser mais falantes ou caladas, mas geralmente sabem mais sobre seus
filhos do que eles. Lhes iluminam por onde seguir. Minha mãe e meu casamento. Meus filhos. Meu neto. Minha mãe com
cara fechada – quieta. Emburrada. Mas – à bem da verdade, quando a conversa
engrenava, ela ia longe. Sem alarde, era bem informada sobre as coisas da vida.
Minha mãe e seu sonho de adolescente de ser professora – mas as condições, a
cultura e as necessidades familiares substituíram-lhe o lápis pelo cabo da
enxada. Minha mãe da roça e da cidade.
9
Minha mãe com vitórias e derrotas,
alegrias e decepções, teimosias, vitimismos (enfim não somos iguais...).
Pensando bem (se é possível imaginar); que diabo que há de se condenar uma mãe
que vê sua única filha sair para um aniversário aos 20 anos e voltar em um
caixão!? Quem se atreve a fazer esse julgamento? Passados quase 47 anos da
partida da sua filha Maria Ceci – perguntei como ela conseguira continuar
vivendo na casa onde velara a filha: “mas não tem outro jeito”, disse como que
fazendo uma resposta curta e completa. Teve apoios. Rezou, chorou, etc...
mas... isso é demais! Minha mãe com um marido alto, forte, bonito e de caráter
– que menos de um ano após o episódio com minha irmã, viu-se amarrado pelo Mal
de Parkinson com 57 anos e, aos poucos, ir “definhando” até a morte lhe
abreviar o sofrimento aos 73 anos. Afora as decepções comigo, por exemplo,
enfim, minha mãe com quedas e reerguimentos – viveu como lhe foi possível
viver. Minha mãe da Rede Vida. Dos rosários. Da fé. Da eterna preocupação com os
seus.
10
Minha mãe que só deitou em uma cama
de hospital (afora os partos), para uma cirurgia de fratura de fêmur, aos 87
anos. Minha mãe que queria ir para o céu, mas não almejava a morte. Minha mãe
que brincava ou falava sério! – “só não me enterrem viva!” e então – abria um
leve sorriso. Minha mãe e suas pantufas, seus casacões de inverno, suas caixas
de bom-bons a cada Natal. Minha mãe que jamais se cansou de economizar – para
amanhã não faltar. Para uma emergência. Minha mãe Melita – que sofreu um
enfarte às 20 horas do dia 2, uma quarta-feira, estava morta às 17 horas de
sexta-feira, dia 5. Foi tudo muito inesperado e rápido. Às 19 horas tomou café.
Às 20 horas foi deitar. Dez minutos depois chamou pelo Gilberto e, sentada na
cama, disse: “nunca me senti tão mal na vida como agora. E vomitou”. Minutos
depois estava na emergência. Exames de sangue, eletro, etc... Da emergência à
UTI. Minha mãe de 89 anos de sacrifícios, temores e receios (justificados) e,
por que não, de alegrias, finalmente livrara-se de seu último medo o “de ser
enterrada viva”. Eu a vi na UTI. O atestado de óbito confirmava. E depois na
capela mortuária. Não havia mais, nesta vida de carne e osso, temer o que quer
que fosse. Estava morta. Fisicamente. A fé em Cristo neste tempo de quase
Páscoa, sonhar que a dona Melita, finalmente reencontrou-se com seu marido Alberto
e com sua filha Maria Ceci – recomeçando uma outra vida, uma nova vida, a vida
eterna, mais que um consolo é um alento. A esperança que nos dá forças e impulsiona a seguir em frente.