sexta-feira, 7 de outubro de 2022

O Atlanga nas mãos do Professor

 

Ruy Carlos Ostermann

Não posso guardar só para mim o sentimento de orgulho que me invade, quando recebo a foto do livro dos Atlangas nas mãos do professor Ruy Carlos Ostermann.

Não é por acaso que este homem das letras, da cultura, secretário de Estado e, do futebol, é conhecido e tratado como professor. Todos sabem quem ele foi e o que ele ainda representa – fiquemos apenas enquanto comentarista de futebol.

Sereno, de fala afável de tão educada para com os ouvidos das pessoas e, profundamente respeitável com a inteligência dos ouvintes, à minha observação o comentarista Ruy Carlos Ostermann externava no microfone, um predicado raro, e que continua cada vez mais escasso: os seus comentários sobre um jogo de futebol, invariavelmente, sempre tinham duas equipes em campo. Ele via e analisava um jogo como ele é – ou seja – produto de 22 jogadores. Ouvi-lo era compreender de onde brotavam os resultados, salvo raras exceções que podem ser rotuladas irmãs das circunstâncias ou contingências de um jogo de futebol. A propósito, não faz muito, o técnico Josep Guardiola, ao sofrer uma virada para o Real Madrid, aos 45 e 46 minutos do 2º tempo – disse resignado: “eu aceito porque é futebol!”.

Os comentários do professor permitiam que todos entendessem em detalhes o que acontecia no gramado. E até para quem estivesse no estádio, ouvir um comentário deste homem, era ser alertado para coisas que tinham acontecido ou estavam acontecendo – mas que a sombra da paixão do torcedor encobria; não permitindo que percebessem o que de fato acontecera na realidade deixada no campo.

Lembro quando criança/adolescente correr para casa e ligar o rádio Semp do meu pai Alberto, sintonizar a Guaíba para ouvir o professor. A partir da sua fala, eu entenderia o quê, por que e como as coisas tinham acontecido. E isto era um deleite para mim.

Sim, entender através de uma fala mansa, as razões, o que fizeram as duas equipes em campo para merecer o que colheram ou, então; até onde houvera interferência dos “Deuses do futebol” - como diria o saudoso Milton Jung. Esta era uma qualidade que ninguém tinha melhor que o professor, para explicar ao grande público, sem estardalhaço, sem agressão, sem exageros – mas com decência, lucidez, tranquilidade, português limpo e isenção, o que de fato acontecera dentro das quatro linhas. Sabiamente, preservava os técnicos, talvez por que só o professor para entender as circunstâncias limitadoras deste profissional - depois que a bola começava a rolar.    

Um dia, a vida me proporcionou trabalhar na mesma empresa onde este homem, trabalhava. E aqui agradeço em especial ao ex-colega Marco Antônio Baggio que me abriu as portas da imprensa em Porto Alegre – sem sequer me conhecer.  

E foi assim que em 1977/1978 ao cruzar nos corredores do 2º andar da Caldas Júnior com o professor Ruy, não raras vezes eu me beliscava, porquanto – mas como! – até “ontem” eu buscava sua voz no radinho Semp do pai e agora ele, eu, nós ali caminhando cada um em direção à sua sala, lembro bem; ele além da Guaíba – na Folha da Manhã e eu na Central do Interior, dois espaços separados pelo corredor.

Pesquisei quase três anos para tentar recuperar a história do maior jogo de futebol de Erechim, o clássico Atlanga (Atlântico x Ypiranga) – uma espécie de “o nosso Grenal”. Com o auxílio de muitas pessoas, entrevistas com ex-dirigentes, ex-atletas, torcedores apaixonados e seus testemunhos de fatos pouco conhecidos que cercaram o clássico durante 40 anos, publicações como o jornal A Voz da Serra, dos livros de Fernando Calliari e Nadir Pereira, das minhas lembranças de presença viva nos clássicos e, especialmente do visionário diretor-presidente da Editora Edelbra, Jaci José De Lazzari, o livro ficou pronto.

E depois de vê-lo entre amigos de diferentes cidades do país e do exterior, sinto-me privilegiado e plenamente contemplado, quando “Atlanga – 40 anos de emoções” está na residência, nas mãos do homem que melhor soube interpretar o futebol desde os anos 1960 para cá. O futebol com suas clarividências indiscutíveis, mas também com suas áreas obscuras despercebidas à maioria - e que o professor desnudava com brilhantismo inigualável - recuperava à razão vitoriosos quanto derrotados. Com as orelhas baixas - era um bálsamo ouvir este homem tocar em filigranas, que na hora da paixão, quase ninguém percebia. 

E este sentimento de orgulho e honra – não cabe apenas em mim. Preciso dividi-lo com tantos quantos puder. Com os atletas do futebol erechinense daquele tempo de dentro e fora dos gramados, com as amigas Cleusa e Márcia, com colegas da imprensa local e, também, com os membros da Academia Erechinense de Letras (AEL).  

Meu pai Alberto que me levava pela mão ao campo do Atlântico é falecido. O futebol de campo do Atlântico também não existe mais. O Ypiranga está forte há sete anos na série “C” do brasileiro.  O rádio Semp Valvulado - não sei onde foi parar. Eu cresci e o futebol continua. Outros comentaristas vieram com outros estilos - onde grande parte troca a análise por uma espécie de relatório para comentar uma partida de futebol. O professor se aposentou dos microfones convencionais. Não temos mais acesso aos comentários esmiuçados, serenos e sábios deste homem que viu e analisou o futebol como poucos, ou, talvez como ninguém no estado e no país. Por isso mesmo nada detém, nesta hora, minha emoção de ver Ruy Carlos Ostermann, acomodado no sofá de sua residência - abrindo o Livro dos Atlangas. Que honra... Ah – queeee honra! - digo eu, plagiando o professor Ruy quando queria destacar um atleta de qualidades superiores, como um Zico, um Gessi, um Falcão, um Hugo De Léon, um Dirceu Lopes, um Zidane, um Fernandão, um Ronaldo Fenômeno, um Mauro Galvão, um Ronaldinho, um Dicá, um Airton Pavilhão, um Gamarra, um Benitez, um Andrade, um Gallardo (River), um De Bruyne, um Valdo, um Zé Carlos (Cruzeiro e Guarani),  um Carpegiani, ou um... “ahhhh queeeee jogador senhores!”, dizia ele.

O livro dos Atlangas pode encerrar sua viagem agora. Sim porque ele chegou às mãos de quem melhor soube e sabe avaliar a relevância de um clássico de futebol – seja ele em nível de estado ou de país, de Porto Alegre ou de Erechim. Sobre a figura humana do professor Ruy? Magnífica.

 

Encontro com o professor

Paulo César Carpegiani e o livro
dos Atlangas 
Em um dos três grenais jogados no Colosso da Lagoa, há alguns anos, fui cedo ao estádio. O professor estava sozinho sentado nas cadeiras esperando sua hora de ir à cabine da Gaúcha.

Fui até ele dizendo que tinha trabalhado na Central do Interior da Caldas Júnior quando ele estava na Folha da Manhã. Obviamente não me reconheceu, mas, como de praxe dos grandes, serenamente assentou: “ah sim..!”.

E caímos numa rápida conversação sobre Paulo César Carpegiani – que jogou nas categorias de base do Atlântico e do Ypiranga.

Opinei ao professor que considerava o Carpegiani o maior jogador da história do Internacional – mas que em Erechim dizia-se que o pai dele, Hermínio Carpegiani (o Velho Borges) teria jogado mais que o filho.

O Ruy então largou sua famosa gargalhada que ecoou no estádio ainda vazio - fazendo os quero-quero levantar voo do gramado, para advertir: “não meu filho, não... Ninguém jogou mais que o Paulo César (Carpegiani). Toda vez que aparece alguém extra-classe, um jogador de futebol, um cantor, enfim um artista... sempre surge logo um ou outro com ‘...isso que tu não viu o pai dele'; Não. Ninguém jogou mais que o Paulo César,”, completou, provavelmente numa comparação com o pai, que sim, jogou demais ou; que talvez se restringia ao Internacional em termos de estado, foi o entendi.

Falamos mais um pouco, agradeci ao professor e fomos cada um para o seu lado. Eu – auxiliando no que podia o pessoal da Caldas Júnior e o professor Ruy na cabine da Gaúcha no Colosso da Lagoa.    

Enfim - obrigado pela oportunidade professor Ruy – Ruy Carlos Ostermann por esta honra. Agradeço ainda aos irmãos Benfica e à Cristiane Ostermann, pela gentileza de cortar caminho entre o livro e o professor.

sábado, 1 de outubro de 2022

Quando a glória é quieta e sofrida


 

Foto: José A. Ody

Choveu a noite inteira.

De manhã a umidade dava 

o tom e o tempo convidava 

para ficar mesmo era no hotel.

Fiz meu chimarrão, 

acomodei-me num sofá pra lá 

de confortável e, 

como um genuíno aposentado sem 

compromisso algum, fui correndo a vista 

desde 

o rio do Peixe, lá embaixo, e subindo 

um morro 

que parecia não ter fim.

Da água do rio onde alguém, imagino eu, 

consultava uma rede de pesca ou sei lá 

se arremessava linhas à água equilibrando-se 

num pequeno barquinho (era isso que a 

minha vista alcançava considerando a distância), 

pois, assim entre uma e outra cuia, ladeado pela 

minha companheira Sonia, fui subindo o olhar 

para o outro lado do rio.

Havia mata ciliar, depois plantações que não 

dava para ver do que, mais matagal, uma casa 

à esquerda e, de repente, despertei e fixei 

a vista 

num minúsculo pontinho branco que, 

à tão distância, 

me chamava atenção pela simples razão de 

me convencer que aquele pontinho branco 

- se movia.

Atrás de mim, hóspedes acertavam 

suas contas e ajeitavam as malas. 

Outros vinham se arrastando 

pelo saguão depois do farto café, em busca 

também de um lugar para se acomodar. 

Fazia frio lá fora e como disse 

o que não estava molhado, estava

úmido – e então melhor ficar em 

casa nessas horas.

O chimarrão estava como sempre – muito bom 

e, ademais, para aquele dia, caía em especial. 

Mas aquele pontinho branco, agora parecia estar

 noutro lugar. E movia-se lentamente sempre e

m linha reta, horizontalmente. 

Ia até um 

determinado lugar e logo voltava. 

E assim ia 

e voltava me desafiando, porque, em 

linha reta daria um quilômetro.

Pelo chão - ah mais de dois a três. 

Não sei, talvez menos, mas 

era assim que a minha vista alcançava 

e o cérebro processava.

Não foi difícil localizar no arquivo da minha 

infância, de férias em Sede Dourado, que sim 

– lá longe, aquele pontinho branco era 

uma junta 

de bois, submetidos à canga e, silentes e 

sem outra opção e expectativa, arrastavam 

um arado que um agricultor afundava na terra. 

Aquilo despertou muitas lembranças 

e imaginações.

Aos poucos fui percebendo que onde 

a terra 

já tinha sido lavrada a cor era diferente 

da parte 

que estava por lavrar. Uma cuia, duas, 

uma 

parada e mais cuias de chimarrão e 

lá ia a dupla 

de bois brancos até o fim da linha, 

ou pedaço 

de terra a ser lavrada, onde obedientes e 

solidários faziam a volta sincronizada (pela 

canga e ordens de quem conduzia o arado), 

para lavrarem nova linha no chão.

Pensei nas grandes extensões de terra. 

Nos maquinários modernos. 

E contrapus com 

aquela realidade que colocava em cena, lá 

longe, mas real; aqueles animais à canga, 

ao arado e, a alguém, sabe-se lá se não de 

pés descalços – com  um deles enfaixado 

com um pano branco em proteção, 

ao menos 

na proteção possível à ferida que fizera 

há poucos dias ao ver, inadvertidamente, 

uma lasca de grápia intrometer-se 

em seu corpo. 

Provavelmente tratara-se com 

água, vinagre, sal e banha, 

e aqueles panos que parecem 

mesmo servir bem para isso.

enfastiado de chimarrão, e da vista 

até meio 

que pedindo por outras imagens, deixei o 

saguão e levei tudo de volta ao quarto bem 

acomodado numa sacola feita especialmente 

para a cuia e a térmica – com o símbolo do 

Lions Erechim Cinquentenário, ao qual 

pertence a Sonia e muitos queridos amigos.

Quando a tarde caía e só então o céu 

refletia alguns primeiros e últimos raios 

de sol nas 

nuvens cor de fogo, sem notar, voltei de novo 

a vista para o que tanto me prendera a atenção 

de manhã.  Um pedaço pequeno de terra 

estava sim todo arado e, enquanto 

o que parecia fumaça 

saindo da chaminé de uma modesta 

casinha de madeira, como que alcançando 

sua liberdade, 

no potreiro reencontrei a dupla de bois. 

Estavam soltos. Libertos da canga como 

dois escravos que receberam uma folga. 

Distanciados também gozavam da merecida 

liberdade – e pastavam matando a fome. 

Refazendo as forças.

O que aquele agricultor haveria de plantar 

naquele pedacinho de terra? Lhe daria 

uma ajuda 

para o sustento? Será que alguém o 

convenceria a procurar socorro médico 

para seu pé inflamado 

e, talvez, ainda com lascas da grápia 

traiçoeira 

na sola do pé enfaixado (avançava eu em 

pensamento sem saber se isso era mesmo 

realidade ou alguma lembrança perdida na 

minha memória porque um dia vira 

cena igual)... 

E aqueles animais, tão dóceis e fiéis ao 

seu patrão, quanta terra haveriam de revolver 

em arado! 

Quantos vai e vêm fariam em sua jornada 

de terra e, o que lhes reservava o futuro? 

Seriam sacrificados para matar a 

fome do agricultor e sua família, 

ou num dia qualquer, 

surpresos, seriam empurrados para 

a carroceria 

de um caminhão e, esperançosos de 

mais liberdade, 

ver-se-iam logo ali adiante, traídos  ao se 

depararem com o chão gelado de um

 abatedouro qualquer!?

Não sei por que as coisas têm de ser assim. 

Para uns, – humanos e animais – tão sofrida, 

até o desfecho derradeiro, que olhando 

para a trajetória de anos, a despedida 

por lamentável que se apresente 

– em verdade, representa 

um alívio, 

ou a certeza que o penar diário e sem-fim, 

até que enfim, encontrou seu próprio final.

Foto: José A. Ody

No canteiro central da Maurício Cardoso

em Erechim, ao lado da Catedral

São José existe um busto, 

em homenagem

ao agricultor, ou falando mais claramente, 

ao colono onde se pode ler aos pés

do homem em bronze descansando,

apoiado no cabo de uma enxada: 

“Ao defrontares com este símbolo,

pensa naqueles que, alheios

aos gozos mundanos,

só tem como glória o suor do seu esforço”.

Como se vê, nem sempre é preciso 

recorrer um monumento para dar-se conta 

que a glória íntima, 

quieta e sofrida, está mais próxima 

de nós do que podemos imaginar. 

Preste mais atenção aos modestos 

e humildes, com seus rostos suados 

e suas íntimas glórias, e deixe 

os famosos 

também com as suas, 

mais conhecidas, iluminadas 

em holofotes e até invejadas. 

Cada qual com seus méritos 

- ou com suas sortes de 

sobrevivência.

O certo é que mais dia, menos dia, 

todos 

haveremos de nos encontrar no 

pós-socorro médico da vida, 

no depois de um matadouro 

qualquer, à porta de um novo 

capítulo na história 

de humanos e animais 

– onde as diferenças 

(é o que dizem) 

serão um imenso, 

um monumental 

nada. 

E vestido de esperança, 

poderei retomar 

meu chimarrão e voltar à uma 

nova realidade. 

E então esta será a minha íntima, 

quieta 

não mais sofrida 

– glória.

Independente do conforto 

do sofá 

em que estiver acomodado.