Foto: José A. Ody |
Choveu a noite inteira.
De manhã a umidade dava
o tom e o tempo convidava
para ficar mesmo era no hotel.
Fiz meu chimarrão,
acomodei-me num sofá pra lá
de confortável e,
como um genuíno aposentado sem
compromisso algum, fui correndo a vista
desde
o rio do Peixe, lá embaixo, e subindo
um morro
que parecia não ter fim.
Da água do rio onde alguém, imagino eu,
consultava uma rede de pesca ou sei lá
se arremessava linhas à água equilibrando-se
num pequeno barquinho (era isso que a
minha vista alcançava considerando a distância),
pois, assim entre uma e outra cuia, ladeado pela
minha companheira Sonia, fui subindo o olhar
para o outro lado do rio.
Havia mata ciliar, depois plantações que não
dava para ver do que, mais matagal, uma casa
à esquerda e, de repente, despertei e fixei
a vista
num minúsculo pontinho branco que,
à tão distância,
me chamava atenção pela simples razão de
me convencer que aquele pontinho branco
- se movia.
Atrás de mim, hóspedes acertavam
suas contas e ajeitavam as malas.
Outros vinham se arrastando
pelo saguão depois do farto café, em busca
também de um lugar para se acomodar.
Fazia frio lá fora e como disse
o que não estava molhado, estava
úmido – e então melhor ficar em
casa nessas horas.
O chimarrão estava como sempre – muito bom
e, ademais, para aquele dia, caía em especial.
Mas aquele pontinho branco, agora parecia estar
noutro lugar. E movia-se lentamente sempre e
m linha reta, horizontalmente.
Ia até um
determinado lugar e logo voltava.
E assim ia
e voltava me desafiando, porque, em
linha reta daria um quilômetro.
Pelo chão - ah mais de dois a três.
Não sei, talvez menos, mas
era assim que a minha vista alcançava
e o cérebro processava.
Não foi difícil localizar no arquivo da minha
infância, de férias em Sede Dourado, que sim
– lá longe, aquele pontinho branco era
uma junta
de bois, submetidos à canga e, silentes e
sem outra opção e expectativa, arrastavam
um arado que um agricultor afundava na terra.
Aquilo despertou muitas lembranças
e imaginações.
Aos poucos fui percebendo que onde
a terra
já tinha sido lavrada a cor era diferente
da parte
que estava por lavrar. Uma cuia, duas,
uma
parada e mais cuias de chimarrão e
lá ia a dupla
de bois brancos até o fim da linha,
ou pedaço
de terra a ser lavrada, onde obedientes e
solidários faziam a volta sincronizada (pela
canga e ordens de quem conduzia o arado),
para
lavrarem nova linha no chão.
Pensei nas grandes extensões de terra.
Nos maquinários modernos.
E contrapus com
aquela realidade que colocava em cena, lá
longe, mas real; aqueles animais à canga,
ao arado e, a alguém, sabe-se lá se não de
pés descalços – com um deles enfaixado
com um pano branco em proteção,
ao menos
na proteção possível à ferida que fizera
há poucos dias ao ver, inadvertidamente,
uma lasca de grápia intrometer-se
em seu corpo.
Provavelmente tratara-se com
água, vinagre, sal e banha,
e aqueles panos que parecem
mesmo servir bem para isso.
Já enfastiado de chimarrão, e da vista
até meio
que pedindo por outras imagens, deixei o
saguão e levei tudo de volta ao quarto bem
acomodado numa sacola feita especialmente
para a cuia e a térmica – com o símbolo do
Lions Erechim Cinquentenário, ao qual
pertence a Sonia e muitos queridos
amigos.
Quando a tarde caía e só então o céu
refletia alguns primeiros e últimos raios
de sol nas
nuvens cor de fogo, sem notar, voltei de novo
a vista para o que tanto me prendera a atenção
de manhã. Um pedaço pequeno de terra
estava sim todo arado e, enquanto
o que parecia fumaça
saindo da chaminé de uma modesta
casinha de madeira, como que alcançando
sua liberdade,
no potreiro reencontrei a dupla de bois.
Estavam soltos. Libertos da canga como
dois escravos que receberam uma folga.
Distanciados também gozavam da merecida
liberdade – e pastavam matando a fome.
Refazendo as forças.
O que aquele agricultor haveria de plantar
naquele pedacinho de terra? Lhe daria
uma ajuda
para o sustento? Será que alguém o
convenceria a procurar socorro médico
para seu pé inflamado
e, talvez, ainda com lascas da grápia
traiçoeira
na sola do pé enfaixado (avançava eu em
pensamento sem saber se isso era mesmo
realidade ou alguma lembrança perdida na
minha memória porque um dia vira
cena igual)...
E aqueles animais, tão dóceis e fiéis ao
seu patrão, quanta terra haveriam de revolver
em arado!
Quantos vai e vêm fariam em sua jornada
de terra e, o que lhes reservava o futuro?
Seriam sacrificados para matar a
fome do agricultor e sua família,
ou num dia qualquer,
surpresos, seriam empurrados para
a carroceria
de um caminhão e, esperançosos de
mais liberdade,
ver-se-iam logo ali adiante, traídos ao se
depararem com o chão gelado de um
abatedouro qualquer!?
Não sei por que as coisas têm de ser assim.
Para uns, – humanos e animais – tão sofrida,
até o desfecho derradeiro, que olhando
para a trajetória de anos, a despedida
por lamentável que se apresente
– em verdade, representa
um alívio,
ou a certeza que o penar diário e sem-fim,
até que enfim,
encontrou seu próprio final.
Foto: José A. Ody |
No canteiro central da Maurício Cardoso
em Erechim,
ao lado da Catedral
São José existe um busto,
em homenagem
ao
agricultor, ou falando mais claramente,
ao colono
onde se pode ler aos pés
do homem em
bronze descansando,
apoiado no cabo de uma enxada:
pensa
naqueles que, alheios
aos gozos
mundanos,
só tem como
glória o suor do seu esforço”.
Como se vê, nem sempre é preciso
recorrer a um monumento para dar-se conta
que a glória íntima,
quieta e sofrida, está mais próxima
de nós do que podemos imaginar.
Preste mais atenção aos modestos
e humildes, com seus rostos suados
e suas íntimas glórias, e deixe
os famosos
também com as suas,
mais conhecidas, iluminadas
em holofotes e até invejadas.
Cada qual com seus méritos
- ou com suas sortes de
sobrevivência.
O certo é que mais dia, menos dia,
todos
haveremos de nos encontrar no
pós-socorro médico da vida,
no depois de um matadouro
qualquer, à porta de um novo
capítulo na história
de humanos e animais
– onde as diferenças
(é o que dizem)
serão um imenso,
um monumental
nada.
E vestido de esperança,
poderei retomar
meu chimarrão e voltar à uma
nova realidade.
E então esta será a minha íntima,
quieta
e não mais sofrida
– glória.
Independente do conforto
do sofá
em que estiver acomodado.