sábado, 1 de outubro de 2022

Quando a glória é quieta e sofrida


 

Foto: José A. Ody

Choveu a noite inteira.

De manhã a umidade dava 

o tom e o tempo convidava 

para ficar mesmo era no hotel.

Fiz meu chimarrão, 

acomodei-me num sofá pra lá 

de confortável e, 

como um genuíno aposentado sem 

compromisso algum, fui correndo a vista 

desde 

o rio do Peixe, lá embaixo, e subindo 

um morro 

que parecia não ter fim.

Da água do rio onde alguém, imagino eu, 

consultava uma rede de pesca ou sei lá 

se arremessava linhas à água equilibrando-se 

num pequeno barquinho (era isso que a 

minha vista alcançava considerando a distância), 

pois, assim entre uma e outra cuia, ladeado pela 

minha companheira Sonia, fui subindo o olhar 

para o outro lado do rio.

Havia mata ciliar, depois plantações que não 

dava para ver do que, mais matagal, uma casa 

à esquerda e, de repente, despertei e fixei 

a vista 

num minúsculo pontinho branco que, 

à tão distância, 

me chamava atenção pela simples razão de 

me convencer que aquele pontinho branco 

- se movia.

Atrás de mim, hóspedes acertavam 

suas contas e ajeitavam as malas. 

Outros vinham se arrastando 

pelo saguão depois do farto café, em busca 

também de um lugar para se acomodar. 

Fazia frio lá fora e como disse 

o que não estava molhado, estava

úmido – e então melhor ficar em 

casa nessas horas.

O chimarrão estava como sempre – muito bom 

e, ademais, para aquele dia, caía em especial. 

Mas aquele pontinho branco, agora parecia estar

 noutro lugar. E movia-se lentamente sempre e

m linha reta, horizontalmente. 

Ia até um 

determinado lugar e logo voltava. 

E assim ia 

e voltava me desafiando, porque, em 

linha reta daria um quilômetro.

Pelo chão - ah mais de dois a três. 

Não sei, talvez menos, mas 

era assim que a minha vista alcançava 

e o cérebro processava.

Não foi difícil localizar no arquivo da minha 

infância, de férias em Sede Dourado, que sim 

– lá longe, aquele pontinho branco era 

uma junta 

de bois, submetidos à canga e, silentes e 

sem outra opção e expectativa, arrastavam 

um arado que um agricultor afundava na terra. 

Aquilo despertou muitas lembranças 

e imaginações.

Aos poucos fui percebendo que onde 

a terra 

já tinha sido lavrada a cor era diferente 

da parte 

que estava por lavrar. Uma cuia, duas, 

uma 

parada e mais cuias de chimarrão e 

lá ia a dupla 

de bois brancos até o fim da linha, 

ou pedaço 

de terra a ser lavrada, onde obedientes e 

solidários faziam a volta sincronizada (pela 

canga e ordens de quem conduzia o arado), 

para lavrarem nova linha no chão.

Pensei nas grandes extensões de terra. 

Nos maquinários modernos. 

E contrapus com 

aquela realidade que colocava em cena, lá 

longe, mas real; aqueles animais à canga, 

ao arado e, a alguém, sabe-se lá se não de 

pés descalços – com  um deles enfaixado 

com um pano branco em proteção, 

ao menos 

na proteção possível à ferida que fizera 

há poucos dias ao ver, inadvertidamente, 

uma lasca de grápia intrometer-se 

em seu corpo. 

Provavelmente tratara-se com 

água, vinagre, sal e banha, 

e aqueles panos que parecem 

mesmo servir bem para isso.

enfastiado de chimarrão, e da vista 

até meio 

que pedindo por outras imagens, deixei o 

saguão e levei tudo de volta ao quarto bem 

acomodado numa sacola feita especialmente 

para a cuia e a térmica – com o símbolo do 

Lions Erechim Cinquentenário, ao qual 

pertence a Sonia e muitos queridos amigos.

Quando a tarde caía e só então o céu 

refletia alguns primeiros e últimos raios 

de sol nas 

nuvens cor de fogo, sem notar, voltei de novo 

a vista para o que tanto me prendera a atenção 

de manhã.  Um pedaço pequeno de terra 

estava sim todo arado e, enquanto 

o que parecia fumaça 

saindo da chaminé de uma modesta 

casinha de madeira, como que alcançando 

sua liberdade, 

no potreiro reencontrei a dupla de bois. 

Estavam soltos. Libertos da canga como 

dois escravos que receberam uma folga. 

Distanciados também gozavam da merecida 

liberdade – e pastavam matando a fome. 

Refazendo as forças.

O que aquele agricultor haveria de plantar 

naquele pedacinho de terra? Lhe daria 

uma ajuda 

para o sustento? Será que alguém o 

convenceria a procurar socorro médico 

para seu pé inflamado 

e, talvez, ainda com lascas da grápia 

traiçoeira 

na sola do pé enfaixado (avançava eu em 

pensamento sem saber se isso era mesmo 

realidade ou alguma lembrança perdida na 

minha memória porque um dia vira 

cena igual)... 

E aqueles animais, tão dóceis e fiéis ao 

seu patrão, quanta terra haveriam de revolver 

em arado! 

Quantos vai e vêm fariam em sua jornada 

de terra e, o que lhes reservava o futuro? 

Seriam sacrificados para matar a 

fome do agricultor e sua família, 

ou num dia qualquer, 

surpresos, seriam empurrados para 

a carroceria 

de um caminhão e, esperançosos de 

mais liberdade, 

ver-se-iam logo ali adiante, traídos  ao se 

depararem com o chão gelado de um

 abatedouro qualquer!?

Não sei por que as coisas têm de ser assim. 

Para uns, – humanos e animais – tão sofrida, 

até o desfecho derradeiro, que olhando 

para a trajetória de anos, a despedida 

por lamentável que se apresente 

– em verdade, representa 

um alívio, 

ou a certeza que o penar diário e sem-fim, 

até que enfim, encontrou seu próprio final.

Foto: José A. Ody

No canteiro central da Maurício Cardoso

em Erechim, ao lado da Catedral

São José existe um busto, 

em homenagem

ao agricultor, ou falando mais claramente, 

ao colono onde se pode ler aos pés

do homem em bronze descansando,

apoiado no cabo de uma enxada: 

“Ao defrontares com este símbolo,

pensa naqueles que, alheios

aos gozos mundanos,

só tem como glória o suor do seu esforço”.

Como se vê, nem sempre é preciso 

recorrer um monumento para dar-se conta 

que a glória íntima, 

quieta e sofrida, está mais próxima 

de nós do que podemos imaginar. 

Preste mais atenção aos modestos 

e humildes, com seus rostos suados 

e suas íntimas glórias, e deixe 

os famosos 

também com as suas, 

mais conhecidas, iluminadas 

em holofotes e até invejadas. 

Cada qual com seus méritos 

- ou com suas sortes de 

sobrevivência.

O certo é que mais dia, menos dia, 

todos 

haveremos de nos encontrar no 

pós-socorro médico da vida, 

no depois de um matadouro 

qualquer, à porta de um novo 

capítulo na história 

de humanos e animais 

– onde as diferenças 

(é o que dizem) 

serão um imenso, 

um monumental 

nada. 

E vestido de esperança, 

poderei retomar 

meu chimarrão e voltar à uma 

nova realidade. 

E então esta será a minha íntima, 

quieta 

não mais sofrida 

– glória.

Independente do conforto 

do sofá 

em que estiver acomodado.