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Naquele tempo quando eu tinha de 10
a 12 anos e aos sábados ia com meus
pais
para Sede Dourado onde residiam
todos os seus irmãos,
quase sempre
dormíamos no tio Guido.
De lá estendíamos as visitas.
Ora no tio Arno, no tio Pedro,
no tio Aloísio, ora no tio João.
Todos hoje residentes no céu.
Nos fevereiros como agora,
não podíamos deixar de ir no tio
José,
o irmão mais velho
do meu pai.
Por vezes de Jipe ou Barata Ford,
por vezes numa
Vemaguete ou num fusca.
Saindo da geral entrávamos numa
estradinha sem saída.
O ponto final dela
dava na casa do tio José.
À esquerda uma sanga
falava - protegida por folhas
de Costela de Adão.
Na chegada à casa do tio
era aquela correria.
Toda vez uma
galinha
se atravessava e se metia embaixo
do carro e saía perdendo as penas,
cacarejando em reclamos.
O tio José
e sua esposa Suzana Brígida
(apelido de Khita em alemão)
tinham muitos filhos.
Era uma alegria contagiante.
A tia Khita era uma dessas senhoras
baixinhas, gordinhas e “elétricas”.
Fazia duas, três coisas ao mesmo
tempo
e não parava de falar um minuto.
E era só “mein Gott”,
pra cá e “mein Gott” pra lá.
A simpatia em carne e osso.
Na chegada logo uns dois ou três primos
e primas sumiam. Onde teriam ido!?
Um outro de espingarda perseguia
um galo, pé por pé – pobre galo
que à noite seria nossa carne no
risoto.
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Nas cadeiras de palha em círculo
sob pés de caqui e bergamoteiras,
começavámos a ganhar pratos e facas.
Eram para os figos.
Logo os primos e primas
que tinham sumido reapareciam.
Traziam dois, três cestos de vime,
desse vime quase envernizado.
Cada um deles derramando figos.
Eram os figos mais bonitos que
me lembro até hoje,
quando aqui tento revivê-los no
Youtube da minha cabeça,
reativando lembranças que
me marcaram quando criança.
Os figos “gordos” e meio “rachados”
vinham de figueiras que se
enfileiravam morro acima, costeando
o caminho que levava à roça onde só
com carroça se podia passar ou a pé.
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Eu gosto de figo.
Sempre gostei.
Demais!
Leva um tempinho pra descascar,
mas quando madurinho, grande e doce,
vale sempre à pena.
Também gosto das folhas das figueiras.
Sua ramagem transforma-se em ornamento
que nunca sai de moda.
E foi por aquela lembrança
dos sábados de figo na casa do tio José,
lá aonde o “diabo perdeu as botas”
na Linha Poço Grande
- é que num sábado desses de 2018 ou
2019
fui a uma dessas casas que vendem
mudas
de tudo que é fruta, e achei e
comprei,
uma mudinha de figueira.
Estava na calçada da revenda.
Parecia uma criancinha abandonada
à espera de adoção.
Achava difícil vingar, mas
a vontade de rever um pé
de figo e, ainda mais, no meu pequeno
lote
de casa seria como com um número
só –
em cem - ganhar uma rifa.
Com o tempo a figueira meio que caiu
no esquecimento.
Deixei ao Deus dará, depois de plantá-la
como vendedor aconselhara.
Mas, tinha poucas esperanças.
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Com o passar dos meses a figueira
pareceu querer seguir seu curso
natural,
e crescer.
Tive mais sorte que juízo porquanto
a natureza fez tudo por mim,
ou pela figueira - e ela começou
a ganhar corpo e expandir-se
para os lados.
Se fez notar até tornar-se jovial.
De criança à adolescência a figueira
levou
uns três anos – mas da adolescência
à fase adulta foi um pulo.
Hoje ela é um ser vivo que respira,
se alimenta, toma muito banho de sol,
e se refresca com a chuva. Nunca se
queixa
e, ainda por cima, desde o ano
passado
vem ensaiando dar frutos. Imagina só.
Talvez queira retribuir quem
a recolhera numa calçada.
Eu a trouxe,
plantei e lhe dei um pouco de terra
fofa.
Recém plantada não deixava passar
sede e,
o resto ficou por conta do tempo e dela.
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Quando já
tinha
então meus 12 a 13 anos e passava as
férias
de verão em Sede Dourado, na casa
do tio Guido, num
fim
de tarde fomos em quatro
ou cinco para a fileira de figueiras
que
ornamentava com sua ramagem e folhas
carnudas os altos de um potreiro.
As figueiras se escoravam na taipa
de pedra erguida à mão sabe-se lá
quando.
A fartura era tanta que cada um tinha
seu pé de figo preferido e, ali
mesmo,
ia tirando, abrindo e comendo.
Não precisava nem descascar
porque os figos eram tão maduros
que a casca saía com as unhas.
Era só shheeelllllléééppp, sheellléepp e
shhheeeeeeeellllllééééééépppp!
Crianças!
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Fora um dia muito quente.
O sol bronzeara muitos figos.
Cada um dos primos num pé e eu
no meu, escalando cada vez mais alto,
metendo a mão, o punho, o braço,
o ombro, a orelha, a cabeça por entre
aquelas folhas verdonas.
Ah... e aquele aroma das folhas.
Eu não sei por que os figos mais
bonitos
se fazem mais altos.
Na ponta dos pés na taipa,
quase querendo escorregar, eu ia
puxando os galhos, as ramagens
da figueira para perto e tirando
figo por figo. Quem me tentasse ver
– se visse, me veria vestido de figueira.
Eu ia e ia. Eu tinha que chegar à copa,
porque lá estavam os figos mais atraentes.
E pra chegar era só puxando
mais e mais as ramagens para baixo,
e elas dobravam e dobravam
- mas não quebravam.
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Puxei, puxei, puxei, a ramagem cedeu
e cedeu sem quebrar até os figões
estarem ao meu alcance.
Quando eu levei a mão para apanhar
três figos de uma vez só, Meu Deus!
Eu sei que você também vai gritar.
Ali – a dois dedos da minha mão
e a um palmo do meu rosto,
na minha cara
– uma cobra.
“Meu Deus.
Meu Deus!”
Isso – não segure.
Grite.
Me ajude a gritar. Eu estou ouvindo.
Ela estava na copa da ramagem
mais alta, aquela que eu havia puxado
pra pertinho de mim.
Estaria guardando os figos
ou apenas tomando banho de sol!?
Não sei.
Era grande.
Toda enrolada.
Segurando a si mesma
– mas com boa parte do seu dorso
e a cabeça toda à luz do sol.
Confundia-se com o verde escuro
das folhas,
com as folhas mais desgastadas
– queimadas pelo sol
e com o roxo escuro dos figos.
Quando apanhado por aquela cena,
a cobra pertinha das minhas sobrancelhas
– num ato instintivo
e, surpreendentemente calmo
abri a mão e a ramagem voltou
para seu lugar normal.
Levou consigo os figos grandes e
negros
e, ela, Graças a Deis - a cobra.
Quando me dei conta e a ficha caiu
– eu já estava no chão, na soleira da taipa.
A vontade e a volúpia
por mais figos desaparecera como
num choque. Nunca mais me embrenhei
em figueiras, ainda mais sobre taipas
de pedras ardidas de tanto sol.
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Mais de 50 anos depois continuo
gostando de figos.
E mais – admiro a árvore, as folhas
carnudas
e seu verde escuro.
Das ramagens então – nem se fala.
Me encanto quando um figo
está ensaiando amadurecer.
Gosto de conferir nos fins de tarde,
se um ou outro já bronzeou o suficiente.
Me aguça a lembrança vendo os pingos
da chuva fazendo barulho sobre
as folhas da figueira e o escorrer da água.
Sinto um pequeno concerto da natureza.
9
Minha figueirinha que levei para casa
ainda criancinha, hoje enfeita
meu pedacinho de lote,
me presenteando com seu garbo,
permitindo apreciar mais
que uma árvore
– uma paisagem inteira que se fez
lá atrás no tempo. E se por entre as
folhas
da minha figueira já adulta me escoa
também a lembrança daquele dia
aterrorizante, deleto aquela imagem
e reabilito uma nova,
abrindo a pasta das belezas
inesquecíveis onde me reencontro
com a inquietude da tia Khita,
com o esvoaçar das penas e o cacarejar
da galinha que se atravessava embaixo
do carro do meu pai
e, com a doçura,
dos figos do tio José.
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Há uns dois anos,
minha figueirinha que virou adulta,
deu lá os primeiros frutos
- mas os canários, bem-te-vis,
pombas e pardais chegaram antes
e só me restou a alegria de apreciar a
passarada pinicando figo por figo
até deixá-los em casca – secar.
Mas neste fevereiro,
minha figueirinha decidiu me
presentear
de verdade.
Quem sabe por tê-la recolhida junto
ao
meio fio de uma revenda de mudas.
E há uma semana ou mais,
descubro um, dois, seis – dez figos
prontos,
dia após dia.
Não são como os do tio José,
mas são meus,
da mudinha que eu plantei,
e isso me energiza
como se tivesse concluído
uma entrevista, uma reportagem,
uma crônica.
Saudades daquele tempo,
daquele ambiente.
Dos primos e parentes.
Do meu pai e minha mãe.
Do tio José e seus figos.
Tudo se foi.
Se foi como se aquilo,
que um dia se fez real,
não passasse de pó.
O tempo soprou e as páginas da vida.
Até o pânico da cobra quase roçando
meu cílios
- evaporou, assim como os sonhos
que nos fazem viver durante um bom sono.
Por acaso você lembra do que
sonhou - e pode pegar qualquer noite.
Pois é. O tempo. O tempo!
Reconheço que figos iguais àqueles
do tio José - nunca mais.
Me conforta, não obstante,
poder tocar a minha figueira,
sentir o perfume das suas folhas,
sorrir ao descobrir um maiorzinho
e escuro de tão maduro.
Me conforta ainda, e, por que não;
como ele também sou um José.
Ambos - de sobrenome Ody.