sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

De figos e ‘Josés’

 

1

Naquele tempo quando eu tinha de 10

a 12 anos e aos sábados ia com meus pais

para Sede Dourado onde residiam

todos os seus irmãos,

quase sempre

dormíamos no tio Guido.

De lá estendíamos as visitas.

Ora no tio Arno, no tio Pedro, 

no tio Aloísio, ora no tio João

Todos hoje residentes no céu.

Nos fevereiros como agora,

não podíamos deixar de ir no tio José,

o irmão mais velho

do meu pai.

Por vezes de Jipe ou Barata Ford, 

por vezes numa

Vemaguete ou num fusca.

Saindo da geral entrávamos numa

estradinha sem saída.

O ponto final dela

dava na casa do tio José.

À esquerda uma sanga

falava - protegida por folhas

de Costela de Adão. 


Na chegada à casa do tio

era aquela correria. 

Toda vez uma galinha

se atravessava e se metia embaixo

do carro e saía perdendo as penas,

cacarejando em reclamos.

O tio José

e sua esposa Suzana Brígida

(apelido de Khita em alemão)

tinham muitos filhos. 

Era uma alegria contagiante.

A tia Khita era uma dessas senhoras

baixinhas, gordinhas e “elétricas”.

Fazia duas, três coisas ao mesmo tempo

e não parava de falar um minuto. 

E era só “mein Gott”,

pra cá e “mein Gott” pra lá. 

A simpatia em carne e osso. 


Na chegada logo uns dois ou três primos

e primas sumiam. Onde teriam ido!?

Um outro de espingarda  perseguia

um galo, pé por pé – pobre galo

que à noite seria nossa carne no risoto.

2

Nas cadeiras de palha em círculo

sob pés de caqui e bergamoteiras,

começavámos a ganhar pratos e facas.

Eram para os figos.

Logo os primos e primas

que tinham sumido reapareciam.

Traziam dois, três cestos de vime,

desse vime quase envernizado.

Cada um deles derramando figos.

Eram os figos mais bonitos que 

me lembro até hoje,

quando aqui tento revivê-los no

Youtube da minha cabeça,

reativando lembranças que

me marcaram quando criança.

Os figos “gordos” e meio “rachados”

vinham de figueiras que se

enfileiravam morro acima, costeando

o caminho que levava à roça onde só

com carroça se podia passar ou a pé.

3

Eu gosto de figo.

Sempre gostei.

Demais!

Leva um tempinho pra descascar,

mas quando madurinho, grande e doce

vale sempre à pena.

Também gosto das folhas das figueiras.

Sua ramagem transforma-se em ornamento 

que nunca sai de moda.

E foi por aquela lembrança

dos sábados de figo na casa do tio José,

lá aonde o “diabo perdeu as botas”

na Linha Poço Grande

- é que num sábado desses de 2018 ou 2019

fui a uma dessas casas que vendem mudas

de tudo que é fruta, e achei e comprei,

uma mudinha de figueira.

Estava na calçada da revenda.


Parecia uma criancinha abandonada

à espera de adoção.

Achava  difícil vingar, mas 

a vontade de rever um pé

de figo e, ainda mais, no meu pequeno lote

de casa seria como com um número só –

em cem - ganhar uma rifa.


Com o tempo a figueira meio que caiu 

no esquecimento. 

Deixei ao Deus dará, depois de plantá-la

como vendedor aconselhara. 

Mas, tinha poucas esperanças.

4

Com o passar dos meses a figueira

pareceu querer seguir seu curso natural,

e crescer.


Tive mais sorte que juízo porquanto

a natureza fez tudo por mim,

ou pela figueira - e ela começou

a ganhar corpo e expandir-se

para os lados. 

Se fez notar até tornar-se jovial.


De criança à adolescência a figueira levou

uns três anos – mas da adolescência

à fase adulta foi um pulo.


Hoje ela é um ser vivo que respira,

se alimenta, toma muito banho de sol,

e se refresca com a chuva. Nunca se queixa

e, ainda por cima, desde o ano passado

vem ensaiando dar frutos. Imagina só.

Talvez queira retribuir quem

a recolhera numa calçada.

Eu a trouxe,

plantei e lhe dei um pouco de terra fofa.

Recém plantada não deixava passar sede e,

o resto ficou por conta do tempo e dela.

5

Quando já tinha

então meus 12 a 13 anos e passava as férias

de verão em Sede Dourado, na casa

do tio Guido, num fim

de tarde fomos em quatro

ou cinco para a fileira de figueiras que

ornamentava com sua ramagem e folhas

carnudas os altos de um potreiro.

As figueiras se escoravam na taipa

de pedra erguida à mão sabe-se lá quando. 

A fartura era tanta que cada um tinha

seu pé de figo preferido e, ali mesmo,

ia tirando, abrindo e comendo. 

Não precisava nem descascar

porque os figos eram tão maduros

que a casca saía com as unhas.

Era só shheeelllllléééppp, sheellléepp e 

shhheeeeeeeellllllééééééépppp!

Crianças!

6

Fora um dia muito quente.

O sol bronzeara muitos figos.

Cada um dos primos num pé e eu

no meu, escalando cada vez mais alto,

metendo a mão, o punho, o braço,

o ombro, a orelha, a cabeça por entre

aquelas folhas verdonas.

Ah... e aquele aroma das folhas.

Eu não sei por que os figos mais bonitos

se fazem mais altos.

Na ponta dos pés na taipa,

quase querendo escorregar, eu ia

puxando os galhos, as ramagens

da figueira para perto e tirando

figo por figo. Quem me tentasse ver

– se visse, me veria vestido de figueira.

Eu ia e ia. Eu tinha que chegar à copa,

porque lá estavam os figos mais atraentes.

E pra chegar era só puxando

mais e mais as ramagens para baixo,

e elas dobravam e dobravam

- mas não quebravam.

7

Puxei, puxei, puxei, a ramagem cedeu

e cedeu sem quebrar até os figões

estarem ao meu alcance.

Quando eu levei a mão para apanhar

três figos de uma vez só, Meu Deus!

Eu sei que você também vai gritar.

Ali – a dois dedos da minha mão

e a um palmo do meu rosto,

na minha cara

– uma cobra.

“Meu Deus.

Meu Deus!”

Isso – não segure. 

Grite. 

Me ajude a gritar. Eu estou ouvindo.

Ela estava na copa da ramagem

mais alta, aquela que eu havia puxado

pra pertinho de mim.

Estaria guardando os figos

ou apenas tomando banho de sol!?

Não sei.

Era grande.

Toda enrolada.

Segurando a si mesma

– mas com boa parte do seu dorso

e a cabeça toda à luz do sol.

Confundia-se com o verde escuro

das folhas,

com as folhas mais desgastadas

– queimadas pelo sol

e com o roxo escuro dos figos.


Quando apanhado por aquela cena,

a cobra pertinha das minhas sobrancelhas

– num ato instintivo

e, surpreendentemente calmo

abri a mão e a ramagem voltou

para seu lugar normal.

Levou consigo os figos grandes e negros

e, ela, Graças a Deis - a cobra.

Quando me dei conta e a ficha caiu

– eu já estava no chão, na soleira da taipa

A vontade e a volúpia

por mais figos desaparecera como

num choque. Nunca mais me embrenhei

em figueiras, ainda mais sobre taipas

de pedras ardidas de tanto sol.

8

Mais de 50 anos depois continuo

gostando de figos.

E mais – admiro a árvore, as folhas carnudas

e seu verde escuro.

Das ramagens então – nem se fala.

Me encanto quando um figo

está ensaiando amadurecer.

Gosto de conferir nos fins de tarde,

se um ou outro já bronzeou o suficiente.

Me aguça a lembrança vendo os pingos

da chuva fazendo barulho sobre

as folhas da figueira e o escorrer da água.

Sinto um pequeno concerto da natureza.

9

Minha figueirinha que levei para casa

ainda criancinha, hoje enfeita

meu pedacinho de lote,

me presenteando com seu garbo,

permitindo apreciar mais

que uma árvore

– uma paisagem inteira que se fez

lá atrás no tempo. E se por entre as folhas

da minha figueira já adulta me escoa

também a lembrança daquele dia

aterrorizante, deleto aquela imagem

e reabilito uma nova,

abrindo a pasta das belezas

inesquecíveis onde me reencontro

com a inquietude da tia Khita,

com o esvoaçar das penas e o cacarejar

da galinha que se atravessava embaixo

do carro do meu pai

e, com a doçura,

dos figos do tio José.










10

Há uns dois anos,

minha figueirinha que virou adulta,

deu lá os primeiros frutos

- mas os canários, bem-te-vis, 

pombas e pardais chegaram antes

e só me restou a alegria de apreciar a

passarada pinicando figo por figo 

até deixá-los em casca – secar.


Mas neste fevereiro,

minha figueirinha decidiu me presentear

de verdade.

Quem sabe por tê-la recolhida junto ao

meio fio de uma revenda de mudas.

E há uma semana ou mais,

descubro um, dois, seis – dez figos prontos, 

dia após dia.

Não são como os do tio José,

mas são meus,

da mudinha que eu plantei, 

e isso me energiza

como se tivesse concluído 

uma entrevista, uma reportagem,

uma crônica.

Saudades daquele tempo, 

daquele ambiente. 

Dos primos e parentes.

Do meu pai e minha mãe.

Do tio José e seus figos.

Tudo se foi.

Se foi como se aquilo,

que um dia se fez real,

não passasse de pó.

O tempo soprou e as páginas da vida.

Até o pânico da cobra quase roçando 

meu cílios

-  evaporou, assim como os sonhos 

que nos fazem viver durante um bom sono.

Por acaso você lembra do que

sonhou - e pode pegar qualquer noite.

Pois é. O tempo. O tempo!


Reconheço que figos iguais àqueles

do tio José - nunca mais.

Me conforta, não obstante,

poder tocar a minha figueira,

sentir o perfume das suas folhas, 

sorrir ao descobrir um maiorzinho

e escuro de tão maduro.

Me conforta ainda, e, por que não; 

como ele também sou um José.

Ambos - de sobrenome Ody.