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Reprodução do Livro dos Atlangas/Fonte: A Voz da Serra/divulgação |
@ Aonde você estava há exatos 60 anos?
- I -
Quando
gritaram que havia um incêndio no centro da cidade, todos correram para as
janelas.
Estava eu no
8º andar na Assembleia Legislativa. Se não me engano era 1976?!
Talvez entre
uma e duas horas da tarde.
Da janela, o
pavor; que se via lá pelos lados do mercado público ou mais à direita?!
- Está
queimando a Renner, alguém gritou.
Rádios
ligados na Guaíba e já transmitiam.
Teria eu lá
meus 23, 24 anos!
Aquilo me
lembrou o ‘fogo do Paraná!’.
Aliás, sempre
que se falava ou presenciava um incêndio, eu lembrava do ‘fogo do Paraná!’.
- II -
Em 1963 –
houve um grande incêndio no Paraná.
A televisão
brasileira ainda engatinhava e o que as rádios noticiavam é que o fogo se fazia
fora de controle e a cada dia o medo dentro da gente ia crescendo.
Por aqui se
comentava, não sei se para brincar ou amedrontar, ou apavorar; que as forças
civis já não tinham mais como controlar o fogo que engolia matas, lavouras,
localidades e todo mundo estava fugindo.
- III -
Tinha eu meus
10 anos e poucas vezes me lembro nesta vida, de ver meus medos cederem lugar ao
pânico.
Era questão
de dias: o fogo comeria o Paraná e já estaria batendo em Santa Catarina que
era mais estreito – olhem, só no mapa -, e daí seríamos nós. Seria a nossa vez.
Correr para
onde – depois de nós, o Uruguai (país) – mas e depois! Olhem, só no mapa!
Ninguém,
absolutamente ninguém escaparia do ‘fogo do Paraná’!
- IV -
O Uruguai,
sim, talvez ele, o velho e bom rio Uruguai, que era quase um ‘mar’ de tão largo
aos meus olhos infantis, talvez ele pudesse, só ele, ali em Marcelino Ramos,
deter o ‘fogo do Paraná’ e nos salvar.
‘Mas não
adianta: o fogo era tão grande, as explosões jogavam brasas a muitos metros de
distância e é quase certo que nem o rio Uruguai iria segurar o fogo. E ainda
mais que tinha a ponte... e havia o estreito. Por um ponto do Uruguai mais
estreito, ah, o estreito, ali o fogo do Paraná iria me encontrar.
Aiaiaiaiaiaiai – Minha Mãezinha do céu!
- V -
Nossa Senhora
de Fátima – quantos rosários deveríamos devorar para impedir que aquela
tragédia se consumasse! Será que a vida acabaria assim – tão sem alternativa?
E Erechim,
Santo Deus, ainda se Erechim tivesse bombeiros!
Lá em casa,
na frente do Mantovani, conferia todas as noites onde estava a magueira e
torneira, e se havia água.
Era na
escola, era na mesa do almoço de casa, era com os amigos à tarde, era na igreja, era na Baixada Rubra – e sempre o ‘fogo do Paraná’ estava na conversa.
Quantos pais
jogavam as culpas nas crianças pelas suas artes, e por isto ou aquilo, é que o
‘fogo do Paraná’ saíra de controle e vinha agora, castigar a todos sem
distinção, queimar tudo e a todos, independente de quem era bom ou
desobediente, rico ou pobre.
O fogo do
Paraná não queria nem saber quem era do Atlântico ou do Ypiranga.
Da Escocesa
ou da Marcial.
Do PTB ou da
UDN.
Do Comércio, do Atlântico ou do Caixeiral.
- VI -
Não se dormia
sem dobrar o joelho ao lado da cama e sem antes rezar com o fervor que ferve no
centro de todos os incêndios – para que o ‘fogo do Paraná’ não viesse para Erechim
– primeira vizinha de Santa Catarina.
Na madrugada
do dia 5 de setembro de 1963 - hoje, 60 anos -, escapei da morte abatido por susto: ‘Olha o
fooooooooogo!’ – gritou meu pai da soleira da porta dos fundos da nossa casa
ali perto do Mantovani, às 6 horas da manhã.
Todos pularam
das suas camas ao mesmo tempo e quando vi que o clarão ruborizado no céu eu
acreditei pela primeira na vida, que a vida tinha fim, e que a morte vinha vindo
ali por detrás do Hospital de Caridade.
- VII -
‘Santa Mãe do
Céu – é o fogo do Paraná!’, acho que fui eu que gritei, ou gritamos todos.
E era.
Não havia
como considerar que podia ser mentira.
Não tinha
como desacreditar do que se podia ver.
Não. Não,
ninguém estava sonhando nada. Era pura verdade: estouros e labaredas, o
horizonte pintado de clarão e fogo. As chamas estavam vindo – comendo tudo
pela frente.
Era o fogo do
Paraná, que incrivelmente, chegara.
Sim, ele
tinha transposto o velho e bom rio Uruguai, fizera a volta pelo sul e agora
vinha vindo de volta para nos pegar ali perto do Atlântico.
Certamente do
aeroporto, para o São Cristóvão, para a avenida Sete, para o Caridade e agora
nos pegaria ali no Mantovani, no Atlântico... e depois queimaria Três Arroios,
Sede Dourado... meus avós, tios... tudo!
Era o fim do
mundo e dos tempos chegando em fogo, como certa feita, veio travestido de
dilúvio.
- VIII -
As Ave-Marias
e o Pai-Nossos se misturavam e não se concluíam em reza alguma.
Nada se
concatenava, nada era organizado.
Gritos de
incredulidade e o pânico eram nós mesmos em carne e osso, e em cada um. O fogo
estava ali, gigantesco, e vinha engolindo casa por casa!
Meu pai ligou
o rádio e a voz mais grave do Tramontini logo anunciou: ‘pavoroso incêndio irrompeu
há instantes no Colégio São José... está fora de controle. O sinistro começou
pela parte de madeira... Um caminhão de uma empresa particular está puxando
água. Centenas de erechinenses estão ajudando com mangueiras e até com
baldes. As chamas erguem-se a dezenas de metros. O sinistro é dos mais
pavorosos...’ acho que foi mais ou menos isto...!
- IX -
Nossa Senhora
de Fátima, Rogai por Nós. Nossa Senhora de Fátima, Ro... ro... Nosssssa Senhora
de Fáááátimmma... Tende Piiieeedaaadeeeee de Nóóóssssss – Para que todas as
Promessas de Cristo...!
Não, não era
o ‘fogo do Paraná’ – mas era o Colégio São José – a parte de madeira que estava
queimando... ‘e o sinistro só não se alastrou porque foi impedido por uma
parede de alvenaria...’, diria mais tarde o jornal A Voz da Serra. ‘Graças e
Louvores se deem a todo o momento/Ao Santíssimo e Diviníssimo Sacramento.
Graças e Louvores se deem a todo...’!
- X -
Ninguém teve
aulas naquele dia.
À tarde,
nunca descobrirei como, eu fazia parte de uma ‘comissão’ que buscava livros que
foram salvos lá no São José e levava tudo de camionete, ou de Vemaguete, ou nos
braços mesmo, até as salas que abriram espaço no Mantovani, quase concluído.
Tudo ia para uma pilha e outros iam separando.
As aulas das
1.200 alunas do Colégio das Irmãs foram dadas por semanas, meses... até 1964,
lá no Mantovani, no Medianeira e no Industrial.
O padre
Tarcísio Utzig era o presidente da Comissão Central – formada na cidade -, para
reconstruir um novo ‘Colégio das Freiras’ – um novo São José. Oscar Abal era
o vice.
Havia quase
uma dezena de comissões pró-reconstrução.
O prefeito
José Mandelli Filho comunicou ao governador. Ildo Meneghetti mandou
disponibilizar as escolas públicas.
A Voz da
Serra vociferou com seu papel de imprensa: ‘... e onde estão os bombeiros de
Erechim? A população que paga a taxa....’.
- XI -
Poucas vez vi
nestes meus anos, e só hoje me dou conta disso, poucas vezes vi e senti tamanha
solidariedade. Era como se a cidade tivesse pegado fogo e perdera um pedaço de
si.
E não era?!
Nunca mais
ouviria falar no ‘fogo do Paraná!’.
Será que ele
existiu mesmo?!
O que
consumiu a parte de madeira do São José existiu. O meu pânico foi inesquecível
naquela longínqua aurora de 5 de setembro de 1963.
A
solidariedade nasceu e fortificou-se para mim, diante dos meus olhos, também naquele dia e nos
dias sequenciais.
Como é bom
descobrir que podemos ajudar, e como é gratificante nutrir um sentimento de
que, no fundo de tudo, estamos todos no mesmo barco, navegamos sobre o mesmo
mar e sonhamos com um porto seguro mais ou menos parecido.
- XII -
Todas as
vaidades se desmancham e evaporam um dia, pois no centro de todas as razões
somos todos por ventos favoráveis, e também todos, nos regozijamos quando a
terra firme se permite à nossa vista.
Os sinistros,
as tragédias também têm este poder.
Quase sempre,
para nos devolver às nossas limitações, à nossa pequenês e finitude, enfim, à
nossa igual origem, e igual fim, às vezes nos é cobrado um bem precioso.
5 de
setembro de 1963.
60 anos do incêndio do Colégio das freiras.
60 anos – do fim
do ‘fogo do Paraná’ no meu arquivo de pânicos.