quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Marinho Peres no Inter

 

Marinho Peres no Inter (Foto/divulgação)

Era um fim de tarde.

Não recordo com exatidão mas parece que era fins de 1975. Eu estava na  redação de noticias da Rádio Difusora – atual Bandeirantes em Porto Alegre. Minha função era redigir o Jornal da Manhã do dia seguinte. Eu e o Eduardo Bueno (Peninha). Trabalhava das 17 às 22 horas.

Além do telex pelo qual vinham as noticias das agências, tínhamos o hábito de ouvir a Rádio Guaíba que na época era uma espécie de fonte de notícias de outras rádios da capital.

Pois, de repente a Guaíba anuncia uma noticia em primeira mão: o Internacional acabara de contratar o quarto-zagueiro Marinho Peres, junto ao Barcelona.

A Guaíba fez um contato com o diretor de futebol do Inter, Arthur Dallegrave, que estava em Barcelona e coube a ele anunciar a contratação. Imagina – Marinho faria companhia a Figueroa. O Marinho que fora capitão da seleção brasileira em 1974.

Marinho teria vindo a pedido do técnico Rubens Minelli que, segundo se especulava, via no atleta a peça que faltava para introduzir no Inter (e talvez no futebol brasileiro) o comando da linha de impedimento. Além disso, Marinho Peres por ter dupla cidadania teria de prestar serviço militar na Espanha e isso ele não queria, porquanto poderia atrapalhar sua carreira. Li hoje que ele então teria feito contato com o técnico do Inter dizendo que ouvira que o Inter teria interesse em contratá-lo. E foi o que aconteceu.

O resto da história todo mundo sabe. Foi um sucesso.

 A “espinha dorsal” do Inter tinha então Manga, Figueroa, Marinho Peres, Caçapava (depois Batista), Falcão, Paulo César (Carpegiani) e Flávio (depois Dario).

Às 10 da noite quando peguei o Caldre Fião no Morro Santo Antonio e fui descendo em direção ao centro, pensei comigo mesmo – o Inter é quase uma seleção. E o tempo confirmou. Era mesmo.

Esta semana Marinho Peres faleceu aos 76 anos.

Deixou uma história de exemplos, inovações em sua posição (comandava a linha de impedimento, quase não fazia faltas e era muito inteligente), além de muitas conquistas. Foi um dos grandes zagueiros da história do Inter, do Barcelona e do futebol brasileiro. Esteve com o erechinense Paulo César (Carpegiani), ambos do maior Inter de todos os tempos na seleção de 74.

Importante observar ainda que, mais tarde, na condição de técnico de futebol, Marinho Peres emprestou sua inteligência e ensinamentos a várias equipes do futebol brasileiro e a clubes de pelo menos três países. 

São lembranças que contrapondo aos tempos de hoje - sinto muita saudade, como jornalista, apreciador do futebol e torcedor do Internacional.

terça-feira, 5 de setembro de 2023

De incêndios e solidariedade

 

 

Reprodução do Livro dos Atlangas/Fonte: A Voz da Serra/divulgação

    @ Aonde você estava há exatos 60 anos? 


- I -

 

   Quando gritaram que havia um incêndio no centro da cidade, todos correram para as janelas.

 

   Estava eu no 8º andar na Assembleia Legislativa. Se não me engano era 1976?!

 

   Talvez entre uma e duas horas da tarde.

 

   Da janela, o pavor; que se via lá pelos lados do mercado público ou mais à direita?!

 

   - Está queimando a Renner, alguém gritou.

 

   Rádios ligados na Guaíba e já transmitiam.

 

   Teria eu lá meus 23, 24 anos!

 

   Aquilo me lembrou o ‘fogo do Paraná!’.

 

   Aliás, sempre que se falava ou presenciava um incêndio, eu lembrava do ‘fogo do Paraná!’.

 

 - II -

 

   Em 1963 – houve um grande incêndio no Paraná.

 

   A televisão brasileira ainda engatinhava e o que as rádios noticiavam é que o fogo se fazia fora de controle e a cada dia o medo dentro da gente ia crescendo.

 

   Por aqui se comentava, não sei se para brincar ou amedrontar, ou apavorar; que as forças civis já não tinham mais como controlar o fogo que engolia matas, lavouras, localidades e todo mundo estava fugindo.

 

 - III -

 

   Tinha eu meus 10 anos e poucas vezes me lembro nesta vida, de ver meus medos cederem lugar ao pânico.

 

   Era questão de dias: o fogo comeria o Paraná e já estaria batendo em Santa Catarina que era mais estreito – olhem, só no mapa -, e daí seríamos nós. Seria a nossa vez.

 

   Correr para onde – depois de nós, o Uruguai (país) – mas e depois! Olhem, só no mapa!

 

   Ninguém, absolutamente ninguém escaparia do ‘fogo do Paraná’!

 

 - IV -

 

   O Uruguai, sim, talvez ele, o velho e bom rio Uruguai, que era quase um ‘mar’ de tão largo aos meus olhos infantis, talvez ele pudesse, só ele, ali em Marcelino Ramos, deter o ‘fogo do Paraná’ e nos salvar.

 

   ‘Mas não adianta: o fogo era tão grande, as explosões jogavam brasas a muitos metros de distância e é quase certo que nem o rio Uruguai iria segurar o fogo. E ainda mais que tinha a ponte... e havia o estreito. Por um ponto do Uruguai mais estreito, ah, o estreito, ali o fogo do Paraná iria me encontrar. Aiaiaiaiaiaiai – Minha Mãezinha do céu!

 

 - V -

 

   Nossa Senhora de Fátima – quantos rosários deveríamos devorar para impedir que aquela tragédia se consumasse! Será que a vida acabaria assim – tão sem alternativa?

 

   E Erechim, Santo Deus, ainda se Erechim tivesse bombeiros!

 

   Lá em casa, na frente do Mantovani, conferia todas as noites onde estava a magueira e torneira, e se havia água.

 

   Era na escola, era na mesa do almoço de casa, era com os amigos à tarde, era na igreja, era na Baixada Rubra – e sempre o ‘fogo do Paraná’ estava na conversa.

 

   Quantos pais jogavam as culpas nas crianças pelas suas artes, e por isto ou aquilo, é que o ‘fogo do Paraná’ saíra de controle e vinha agora, castigar a todos sem distinção, queimar tudo e a todos, independente de quem era bom ou desobediente, rico ou pobre.

 

   O fogo do Paraná não queria nem saber quem era do Atlântico ou do Ypiranga.

 

   Da Escocesa ou da Marcial.

 

   Do PTB ou da UDN.

 

   Do Comércio, do Atlântico ou do Caixeiral.

 

 - VI -

 

   Não se dormia sem dobrar o joelho ao lado da cama e sem antes rezar com o fervor que ferve no centro de todos os incêndios – para que o ‘fogo do Paraná’ não viesse para Erechim – primeira vizinha de Santa Catarina.

 

   Na madrugada do dia 5 de setembro de 1963 - hoje, 60 anos -, escapei da morte abatido por susto: ‘Olha o fooooooooogo!’ – gritou meu pai da soleira da porta dos fundos da nossa casa ali perto do Mantovani, às 6 horas da manhã.

 

   Todos pularam das suas camas ao mesmo tempo e quando vi que o clarão ruborizado no céu eu acreditei pela primeira na vida, que a vida tinha fim, e que a morte vinha vindo ali por detrás do Hospital de Caridade.

 

 - VII -

 

   ‘Santa Mãe do Céu – é o fogo do Paraná!’, acho que fui eu que gritei, ou gritamos todos.

 

   E era.

 

   Não havia como considerar que podia ser mentira.

 

   Não tinha como desacreditar do que se podia ver.

 

   Não. Não, ninguém estava sonhando nada. Era pura verdade: estouros e labaredas, o horizonte pintado de clarão e fogo. As chamas estavam vindo – comendo tudo pela frente.

 

   Era o fogo do Paraná, que incrivelmente, chegara.

 

   Sim, ele tinha transposto o velho e bom rio Uruguai, fizera a volta pelo sul e agora vinha vindo de volta para nos pegar ali perto do Atlântico.

 

   Certamente do aeroporto, para o São Cristóvão, para a avenida Sete, para o Caridade e agora nos pegaria ali no Mantovani, no Atlântico... e depois queimaria Três Arroios, Sede Dourado... meus avós, tios... tudo!

 

   Era o fim do mundo e dos tempos chegando em fogo, como certa feita, veio travestido de dilúvio.

 

 - VIII -

 

   As Ave-Marias e o Pai-Nossos se misturavam e não se concluíam em reza alguma.

 

   Nada se concatenava, nada era organizado.

 

   Gritos de incredulidade e o pânico eram nós mesmos em carne e osso, e em cada um. O fogo estava ali, gigantesco, e vinha engolindo casa por casa!

 

   Meu pai ligou o rádio e a voz mais grave do Tramontini logo anunciou: ‘pavoroso incêndio irrompeu há instantes no Colégio São José... está fora de controle. O sinistro começou pela parte de madeira... Um caminhão de uma empresa particular está puxando água. Centenas de erechinenses estão ajudando com mangueiras e até com baldes. As chamas erguem-se a dezenas de metros. O sinistro é dos mais pavorosos...’ acho que foi mais ou menos isto...!

 

 - IX -

 

   Nossa Senhora de Fátima, Rogai por Nós. Nossa Senhora de Fátima, Ro... ro... Nosssssa Senhora de Fáááátimmma... Tende Piiieeedaaadeeeee de Nóóóssssss – Para que todas as Promessas de Cristo...!

 

   Não, não era o ‘fogo do Paraná’ – mas era o Colégio São José – a parte de madeira que estava queimando... ‘e o sinistro só não se alastrou porque foi impedido por uma parede de alvenaria...’, diria mais tarde o jornal A Voz da Serra. ‘Graças e Louvores se deem a todo o momento/Ao Santíssimo e Diviníssimo Sacramento. Graças e Louvores se deem a todo...’!

 

 - X -

 

   Ninguém teve aulas naquele dia.

 

   À tarde, nunca descobrirei como, eu fazia parte de uma ‘comissão’ que buscava livros que foram salvos lá no São José e levava tudo de camionete, ou de Vemaguete, ou nos braços mesmo, até as salas que abriram espaço no Mantovani, quase concluído. Tudo ia para uma pilha e outros iam separando.

 

   As aulas das 1.200 alunas do Colégio das Irmãs foram dadas por semanas, meses... até 1964, lá no Mantovani, no Medianeira e no Industrial.

 

   O padre Tarcísio Utzig era o presidente da Comissão Central – formada na cidade -, para reconstruir um novo ‘Colégio das Freiras’ – um novo São José. Oscar Abal era o vice.

 

   Havia quase uma dezena de comissões pró-reconstrução.

 

   O prefeito José Mandelli Filho comunicou ao governador. Ildo Meneghetti mandou disponibilizar as escolas públicas.

 

   A Voz da Serra vociferou com seu papel de imprensa: ‘... e onde estão os bombeiros de Erechim? A população que paga a taxa....’.

 

 - XI -

 

   Poucas vez vi nestes meus anos, e só hoje me dou conta disso, poucas vezes vi e senti tamanha solidariedade. Era como se a cidade tivesse pegado fogo e perdera um pedaço de si.

 

   E não era?!

 

   Nunca mais ouviria falar no ‘fogo do Paraná!’.

 

   Será que ele existiu mesmo?!

 

   O que consumiu a parte de madeira do São José existiu. O meu pânico foi inesquecível naquela longínqua aurora de 5 de setembro de 1963.

 

   A solidariedade nasceu e fortificou-se para mim, diante dos meus olhos, também naquele dia e nos dias sequenciais.

 

   Como é bom descobrir que podemos ajudar, e como é gratificante nutrir um sentimento de que, no fundo de tudo, estamos todos no mesmo barco, navegamos sobre o mesmo mar e sonhamos com um porto seguro mais ou menos parecido.

 

 - XII -

 

   Todas as vaidades se desmancham e evaporam um dia, pois no centro de todas as razões somos todos por ventos favoráveis, e também todos, nos regozijamos quando a terra firme se permite à nossa vista.

 

   Os sinistros, as tragédias também têm este poder.

 

   Quase sempre, para nos devolver às nossas limitações, à nossa pequenês e finitude, enfim, à nossa igual origem, e igual fim, às vezes nos é cobrado um bem precioso.

 

       5 de setembro de 1963. 

      60 anos do incêndio do Colégio das freiras. 

      60 anos – do fim do ‘fogo do Paraná’ no meu arquivo de pânicos.