segunda-feira, 17 de março de 2025

Quando a Edelbra trouxe o universal Jorge Amado


Jorge Amado, Zélia Gattai e Paulo Dias Fernandes no CER Atlântico há 45 anos.
Dezembro de 1979
foto: Arquivo

Muito embora os tempos verbais sejam três, o que se sabe ao certo – certo mesmo, diz respeito a dois tempos com seus modos, conjugações e flexões. O passado reportando ao que já aconteceu. O presente permitindo neste, exato agora, revisitas. O presente ainda traz à nossa permissão o terceiro tempo verbal: o futuro. Nele cabem planos, ambições e ousadias. Sonhos entendidos como se real fossem. Do presente ao passado, a lembrança. Do presente ao futuro, o “olhar para frente”. Ao contrário do passado, porém, o futuro, se aceita tudo – incerto é. Ele pode simplesmente não vir. Exagero ou não o que temos em mãos ou em mente, de concreto, é o que já fizemos, vimos ou ouvimos. O que vivemos. Mas, enfim, sejamos sensatos e, por que não, respeitosos com a temporalidade da vida. Se for para recordar, recordemos então. Neste agora.

Foi assim que há exatos 45 anos a cidade viveu um momento cultural histórico. Era a 3ª Feira do Livro. De 7 a 15 de dezembro de 1979. Por três dias tivemos a presença de um dos mais brilhantes escritores do Brasil: Era 13 de dezembro. Chegava aqui – o casal Jorge Amado e Zélia Gattai.

De lá para cá recebemos outros nomes de proa da literatura, como o patrono daquela feira, Sérgio da Costa Franco. Em 1980 – Carlos Nejar. Mas – consultando o passado no cenário autoral livreiro, ninguém mais destacado que Jorge Amado colocou os pés em solo erechinense até o presente.

E foi marcante não só por um autor universal, passeando pela Maurício, Praça da Bandeira, prefeitura, Tiradentes, Nelson Ehlers, Valentim Zambonato. Foi histórica a passagem do casal por Erechim, porque aqui ele lançou em primeira mão a sua obra “Farda, Fardão, Camisola de Dormir”. De mesma sorte, sua esposa Zélia Gattai, lançava a partir de Erechim para todo o país, “Anarquistas graças a Deus”.


Jorge Amado, Zélia Gattai e Paulo Dias Fenandes. 
Foto:Arquivo

Das folhas para as telas

“Farda, Fardão, Camisola de Dormir”, tem como cenário o Rio de Janeiro. Seus personagens transitam pelo mundo da Academia Brasileira de Letras (ABL) em pleno Estado Novo. Intrigas em torno de uma eleição a uma cadeira da ABL nos anos 1940 estão no centro da história. Foi escrito entre janeiro e junho de 1979, período onde o escritor sofria com a censura e a perseguição por sua filiação partidária. O romance traz dois pretendentes à ABL com visões opostas sobre o conflito da 2ª Guerra Mundial.

 “Anarquistas graças a Deus”, de Zélia Gattai revisita sua infância na primeira metade do século 20, como filha de imigrantes italianos em São Paulo. Cinco anos depois do lançamento em Erechim, Zélia veria “Anarquistas...” adaptada como minissérie da rede Globo de Televisão.

Autor maiúsculo, Jorge Amado tem uma obra de 49 livros, traduzidos em 80 países, afora escritos de outras ordens. Várias acabaram roteirizadas para o cinema ou viraram telenovelas visando alcançar um público pouco familiarizado com o deleite da leitura. Destaque para o inesquecível “Dona flor e seus dois maridos”, “Capitães da Areia”, “Tenda dos Milagres”, “Gabriela, Cravo e Canela” e “Tieta do Agreste”.

Em 6 de abril de 1961, já com 19 obras - Jorge Amado é eleito para a Academia Brasileira de Letras (ABL), sucedendo a Octávio Mangabeira na cadeira nº 23.

 

Interações comerciais e culturais

 O Jorge Amado traduzido para 80 países, vendo seus feitos no cinema, na televisão, no teatro, narrado em rádio, levado para histórias em quadrinhos, em Braille ou gravadas em fitas vídeo cassete para pessoas com necessidades especiais, o Jorge da ABL, ora em Salvador, ora isolado em Ilhéus, em São Paulo, no Rio ou Paris, pois; contar com um homem desta estatura cultural numa cidade do interior, no Alto Uruguai gaúcho, em Erechim, tem um valor histórico e, por certo, um custo.

Pois foi aí que despontou no mundo comercial das letras e editoras, em nível nacional, a figura de um jovem então já há alguns anos abrindo seu próprio caminho. Depois de colocar o “Livro dos livros” peregrinando de porta em porta pela escolhida Erechim e cidades da região, Jaci, como era mais mencionado, encheu-se de brios e foi ao encontro de quem tinha à época os direitos editorais de Jorge Amado. (Atualmente os direitos de suas obras pertencem a outra empresa).

A essa altura, com seu nome completo e estendido para um carregado sotaque italiano “De Lazzari”, como acabaria se firmando no mundo editorial brasileiro, aos 27 anos Jaci José De Lazzari com sua Editora Edelbra foi recebido pelo “staf’ da Record no Rio de Janeiro. Mais que um feito – era um sonho contemplado. Depois de explanar seus objetivos, esteve pela primeira vez frente a frente com Alfredo Machado, diretor-presidente da Editora Record.

Como quase sempre se dá com nomes de proa nas diferentes esferas – a linguagem direta, clara e objetiva, precipitou o encontro para a intenção de De Lazzari: ‘proporcionar via Record a presença do emérito escritor baiano em Erechim’. Os detalhes pertencem a ambos dirigentes das editoras, mas podem ser resumidas assim: A Edelbra comprava junto à Record 5 mil coleções de Jorge Amado (26 livros cada uma), com direito de revendê-las e, Alfredo Machado, colocaria o escritor em Erechim.

No dia 13 de dezembro de 1979 dois homens do governo Zanella (Elídio Scaranto e Luiz Felipe de Marchi) receberam no aeroporto de Curitiba o casal Amado – Jorge e Zélia. Presentes ainda os enviados especiais das rádios Erechim (Euclides Tramontini) e Difusão (Dary Ivo Schaeffer) que seguiram em carro particular.

Com a cobertura das emissoras e, especialmente do Correio do Povo, o que já se prenunciava um evento grandioso, cresceu na consciência cultural da cidade e na expectativa da população – consequência plenamente compreensível.

 

Amado “hospede oficial” de Erechim


Prefeito Eloi Zanella recepciona hóspede oficial - Jorge Amado.
Foto: Arquivo

Na cidade Jorge Amado e sua esposa foram recebidos pelo prefeito Eloi João Zanella que assinou decreto declarando Jorge Amado – “hóspede oficial” do município. No dia seguinte, 14, após visitar a Feira do Livro o casal foi recepcionado com um coquetel na então sede social do Ypiranga FC (antigo Boliche). No local o prefeito entregou uma placa de prata em agradecimento ao escritor baiano, enquanto Linir Zanella recepcionava Zélia Gattai com flores.

Linir Zanella entrega flores a Zélia Gattai
Foto: Arquivo

À noite na sede social do CER Atlântico, Jorge Amado, Zélia Gattai e Paulo Dias Fernandes participaram daquela que seria uma das maiores noites de autógrafos do afamado escritor. Ele, alcançando mais de 800 autógrafos, Zélia com cerca de 300 autógrafos e o conterrâneo Paulo Dias Fernandes com cerca de 500 exemplares do seu “Monarcas do Pampa”.  Na manhã de sábado, 15 de dezembro de 1979, o casal Jorge e Zélia despediu-se de Erechim. No domingo, 15, encerrou-se a 3ª Feira do Livro.

 

Jorge Amado autografando seu lançamento "Farda, Fardão, Camisola de Dormir".
foto: Arquivo

Político, títulos, carnaval, amigos e selo

Esta figura única da literatura brasileira com suas palavras nas Américas e além mar, inclusive na China; representante autêntico do Modernismo Regionalista, especialmente baiano, voltado à crítica sociopolítica acabaria em 1946 sendo eleito deputado constituinte por São Paulo.

Foi autor da Emenda Constitucional que garantiu a liberdade de culto no Brasil. Igualmente viu incluída na mesma Constituição, sua proposição que veda o lançamento de tributos sobre o papel destinado exclusivamente à impressão de jornais, periódicos e livros. Essa imunidade foi estendida aos livros, jornais e periódicos pela Constituição Brasileira de 1967, reproduzida quase integralmente na Emenda Constitucional de 1969 e ratificada em 1988, no que se convenciona por alguns, como “imunidade cultural” ou “imunidade de imprensa”.

Jorge Amado acumulou nos seus 88 anos de vida, 17 prêmios nacionais e 15 internacionais. Recebeu 30 títulos de condecoração. Entre seus amigos estavam José Saramago, Pablo Neruda, Sidney Scheldon, Pablo Picasso, Federico Fellini, Oscar Neimeyer, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Mário Vargas Llosa.

Nascido em 1912, no interior baiano em Itabuna, Jorge Amado foi tema da Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense (Rio) no centenário com o enredo “Jorge, Amado, Jorge”. No mesmo ano foi tema da Mocidade Alegre, campeã do carnaval paulista daquele ano, tendo como pano de fundo a obra “Tenda dos Milagres”. Antes, em 1989 a Império Serrano entrou na avenida cantando “Jorge Amado, axé, Brasi!”. Ainda em 2012 saiu o selo “Jorge Amado – 100 anos” pelos Correios do Brasil, reconhecendo a celebridade que abrilhantou a distante Feira do Livro de Erechim em 1979.

 

Do presente – a outros dois horizontes

Se aquele evento do qual recordamos 45 anos de passado, representou em Jorge Amado mais uma obra desta celebridade – não constitui exagero afirmar que outras duas personalidades do seleto mundo das letras e editoras, foram seus engenheiros: Alfredo Machado (Editora Record) e Jaci José De Lazzari (Editora Edelbra).

General Moreira (Diretor Comercial Nacional da Record), Bertoletti (Diretor Comercial SP/Sul),
casal Maltesi, Jaci De Lazzari, Aldredo Machado (Fundador/Editor da Record),
Jorge Amado, Zélia Gattai e Ada De Lazzari.
Foto: Arquivo

E em assim sendo, retornemos à alma inicial deste texto: o presente – dele vislumbramos dois horizontes. Um acontecido. Outro por vir. Não obstante – como observado, o futuro pode não acontecer. Mas o simples levantar dos olhos, e imaginá-lo com esperança, exige objetivo, plano e ousadia.  

Zélia Gattai com Alessandra, filha de Ada e Jaci De Lazzari.
Hoje, Alessandra, é diretoria/administradora da empresa.
Foto: Arquivo.
Quanto ao passado, o direito a revisitá-lo ou quase revivê-lo, nos leva a uma única e intocável certeza: ele não pode ser negado, nem apagado. A razão é tão lógica quanto singela porquanto vive na memória, no nosso agora, desde sua consolidação.



No caso de Jorge Amado em Erechim há 45 anos – trata-se de um lembrar justo. Em tempos de crescentes beligerâncias, que o passado retorne ao presente, e mesmo que fugaz como aqui; remeta a um futuro de menos “farda” e mais “fardão”. Um ótimo exemplo dessa aparente trama semântica, aqui deitada, está em “quando a Edelbra trouxe o universal Jorge Amado”.


Saudação escrita de Jorge Amado a Ada e Jaci De Lazzari
quando da da presença do ilustre escritor Jorge Amado
 a Erechim em 1979.
foto Arquivo