Quando as luzes se acenderam
colocando um ponto final no matinê daquele domingo, eu me levantei com outros
mais de cem que estavam no Cine Ideal. Estava feliz, porque os dois filmes
preencheram minhas expectativas alentadas pelos cartazes que vira ainda de
manhã depois da missa na São Pedro. Passo a passo ganhei o corredor para ir
descendo até a saída, onde senti uma flechada do sol que se recolhia por detrás
da banca do pai da Salete, se não equivoco “Seu Nilo” e, que, anos mais tarde, ela
mesma assumiria o negócio. Era aquela banca ali na frente do Café Grazziottin e
que está com suas portas abertas até hoje.
Pois, meio com os olhos
ardendo logo me refiz ao ambiente da rua, desci pela Maurício, dobrei pra
Nelson Ehlers, até a Padaria Sem Rival onde gastei o resto da polpuda mesada em
um “caro”, um doce muito mais doce que batata doce. Era a semente da diabetes -
creio. E me fui mordendo e me lambuzando com aquele “caro”. Havia silêncio
pelos lados da Baixada porque o Atlântico jogava fora de Erechim. E por isso
mesmo, sem a gritaria da torcida de dia de jogo, os eucaliptos embalados pelo
vento, aproveitaram e, se faziam dobrar levando o seu vrrrrrrrrrrrrrrrr com
mais força e presença contra as paredes do Mantovani. O vrrrrrrrrrrrr dos
eucaliptos, para quem não era acostumado, dava medo.
Assim que coloquei os pés em
casa, minha mãe perguntou: “E cadê a japona!?” Ai. Aiaiaiaiai. Cadê a japona! –
também me perguntei. Ih – será que deixei na Sem Rival? Será que me caiu da cintura?
Ou, ou... sim, claro, ela ficou na cadeira do cinema. Eu a tirara e colocara
atrás de mim, sobre a cadeira antes mesmo das luzes se apagarem. Estava quente.
Hipnotizado pelos dois filmes, quando as luzes se acenderam e todo mundo se
levantou, fiz o mesmo. E a japona ficou lá, sozinha, abandonada. Só pode ter
caído no vão daquelas cadeiras dobradiças.
- Tu vai lá no cinema e
volta com a japona. E ainda por cima é nova, vociferou com razão, minha mãe.
Voltei correndo até o Cine Ideal, mas que nada, já estava tudo fechado. E de
noite, na sessão das 19h15min lá estava eu de novo, agora com meu pai. E depois
de procurarem – nada. Ninguém viu nada de japona. Adeus japona. E era nova. Novinha.
À noite o mundo desabou sobre
mim. “Já fez os temas?”, inquiriu de novo minha mãe. Não. Eu deixara para fazer
à noite. “E aí, se não me engano, veio aquela discussão natural entre pai e
mãe, um cobrando do outro mais energia para com o filho que só queria jogar
bola no Atlântico, ir ao cinema, gastar o troco em porcarias (caro –
porcaria?), e deixar os temas para a última hora. E ainda por cima, um
descuidado capaz de sentar em cima da japona, nova, e esquecê-la dentro cinema.
Quando todos baixaram a voz
eu não sabia por onde começar a resolver aquelas contas e problemas de Matemática.
Não sei como fui fazendo, fazendo e sem saber se estavam certos. E o que
ninguém mais sabia, só eu, é que o velho ditado de que “quando as coisas estão
ruins - aí mesmo é que podem piorar”, era uma verdade no meu caso. Sim, porque
na segunda-feira, nos dois primeiros períodos haveria “sabatina” da Matemática.
Nossa Senhora de Fátima. E eu ainda com aquela dor do extravio da japona!
No dia seguinte todo mundo
se ajeitando nas classes e numa torcida desgraçada para o professor atrasar, ou
num golpe de sorte para lá de improvável – não vir. Não. Isso era impossível. O
professor João, o João Komosinski, nunca se atrasava e faltar à aula então era uma
loteria que aluno despreparado nenhum nunca haveria de tirar.
Na hora prevista o professor
João vinha vindo pelo corredor com suas calças de friso impecável e seus bolsos
compridos e fundos. A barra dupla da calça se jogava de um lado para outro por
sobre os sapatões grossos e, como me pareciam, não obstante - extremamente
confortáveis. Quando frio - ou estava de blusão grosso gola olímpica fechado até o pescoço ou, quando o sol saía, aliviava seus ossos e punha a blusa decote "V" sobre os ombros. Isto, sem falar no seu grosso casaco escuro, de pura lã para os frios mais intensos. Seus cabelos penteados de tal sorte, pareciam fios obedientes a se
perfilarem e sobreporem, desde o alto da testa até a nuca, e nem eles, ousavam desobedecer a
determinação do professor João. No bolsinho da camisa de manga curta, duas ou
às vezes, até três canetas. Era um molde perfeito de professor – perfeito.
Sim – ele parecia, além de
um professor daqueles que muito dificilmente há de se encontrar hoje em dia nas
salas de aula -, um homem aparentemente turrão, que entremeava um português com
um forte sotaque polonês, um sujeito, enfim, de poucas palavras, de pouca
diplomacia. Ademais era um polaco de corpanzil e aparência forte, que pelo
observar, não se haveria de querer tê-lo como inimigo, porquanto como já disse,
falava pouco. Especialmente sobre as coisas triviais da vida. Nada de filosofia.
Nada de direitos. Tudo era dever. Nada de greve. Nada de supérfluo. Nada de
escola com ou sem partido. Nada de governos ou que tais. Seu tempo tinha um
único propósito dentro da sala de aula: dar aula. Ministrar aula. Ensinar.
Pedir se tinham dúvidas. Encher o quadro-negro. Apagá-lo e reescrever - com a mais bonita letra que vi na escola - tudo de
novo até que não restasse uma única alma em sala de aula que ousasse ir para
casa sem ter entendido a matéria do dia.
Na verdade foram dois ou
três anos de Científico com o João dando Matemática. Até eu que não gostava da
matéria, porque tinha dificuldades, era fã das suas aulas. Ele sabia como
prender a atenção. Admirava seu jeito e insistência e, de amor, que saltava aos
olhos, quando a hora era de ensinar. Por trás daquele polaco que parecia
colocar medo, residia um homem sério, de coração bom, um justo, um ser calmo, um
preocupado com seus alunos, um dedicado e competente professor. Quem passava de
ano com o João, podia ter certeza que saia da escola sabendo Matemática. Não
precisava ser gênio. Mas ignorante na matéria, não seria. Hoje em dia não me
lembro mais nada de Matemática, mas do professor João (do Mantovani) jamais
esqueci, porque foi sobretudo um ser que amava o que fazia.
Na última sexta-feira, no
alvorecer do ano novo, dia 3, o professor João Komosinski, o polonês de
aparência inquebrantável, dobrou-se de madrugada em seu apartamento, abatido
por um infarto, depois de 84 anos de vida e de uma vida dedicada ao magistério.
João Marciano Komosinski,
nasceu em Getúlio
Vargas, em 5 de junho de 1935. Sua formação reúne
Licenciatura em Pedagogia e Matemática pela UPF e, Mestre e Educação pela PUCRS.
Foi funcionário da VARIG. Foi professor de Matemática durante 25 anos no Colégio
Mantovani e professor de Matemática, Estatística e Desenho na URI. Casado com
Lionira Giacomuzzi Komosinski e pai de três filhos: Leandro José Komosinski – professor
da UFSC; Luciano Komosinski – Analista de Sistemas do Governo Federal e João
Luís Komosinski – Professor do IFRS.
Para quem acha que
Matemática e Língua Portuguesa são como água e óleo, inacreditavelmente, o
sonho primeiro do professor João era ensinar Língua Portuguesa. Mas enquanto as
vagas nessa área eram escassas, e havia necessidade de professor de Matemática
– João Komosinski, foi por este caminho no qual, ensinou “quase meia cidade”
considerando aqueles tempos e a faixa de quem hoje ronda os 50 a 70 anos. De acordo com
sua esposa, também professora e doutora em Literatura,
“o João lia muito, guardava livros e até jornais. Compilou muitas obras de português
e de polonês em casa.
Sempre gostou”. E tanto isso é verdade que somente depois do
seu falecimento é que vim a saber, que o meu professor de Matemática, o João
Komosinski, “meu e de meia cidade” como disse, também exerceu outra profissão: foi
jornalista (redator/revisor) no jornal “O Debate”em Erechim. Ou seja –
acabamos colegas de profissão!
Pois é. A vida é mesmo curta
ou é o desgraçado do tempo que passa voando e, implacável, ano após ano, vai
substituindo as pessoas. Em cidades de médio a pequeno porte como a nossa, a
gente percebe e sente muito mais. Ao longo do tempo devem ter surgido outros
professores competentes em todas as áreas, como na Matemática, onde o João
deixou marca por sua discrição, competência e devoção ao ofício de ensinar. Mas
para mim e todos aqueles quase incontáveis, que passaram pelo Mantovani de 1964 ao início dos anos
1990, este sujeito foi referência e está na memória de todos. Ao longo da minha
vida, tive inúmeras japonas (jaquetas), mas aquela que perdi na cadeira do Cine
Ideal me parecia única e, de fato, era. Assim como aquele professor de
Matemática, o João Komosinski!?