quinta-feira, 24 de março de 2022

A noite que dormi na Capela Mortuária

 

Melita Ody

Dia 5 de março de 2022. Sábado.

1

Decidimos - meus dois irmãos Gilberto e Vanderlei e eu - que não precisava mais reabrir o caixão para um último adeus à minha mãe Melita. Já nos despedíramos na capela. Estava sim – morta. Não havia o que reconferir. Era hora de irmos embora. Os pedreiros fecharam o que ainda supúnhamos – vida e fomos para casa.

O carro fúnebre já estava na porta do cemitério quando cheguei. Foi um deslocamento rápido do Pio XII até a Capela B do HC.

Na capela todos nos despedimos dela, familiares, parentes, vizinhos e muitos amigos. A tampa do caixão saiu do encosto da parede e encobriu a mãe com sua medalhinha e flores.

O diácono emérito da igreja São Pedro, Almeri Borneli, conduziu as preces e disse palavras simples, rápidas, importantes e reconfortantes. Sem firulas falou o essencial.

Antes das 10 horas a capela foi enchendo. Parentes vindos de cidades vizinhas chegavam. O irmão dela, Rainoldo, de 93 ou 94 anos veio de Aratiba, alquebrado pelo tempo e trazido pelas filhas. Outros vieram de Santa Catarina. Às 10 horas a capela B do HC ficou pequena. Às 9 horas começaram a chegar e chegar. Às 8 horas meu irmão Gilberto estava na Catedral para pegar um documento para o sepultamento. Meu irmão Vanderlei fora na São Pedro acertar a vinda do diácono.

2

Às 6 horas já havia quem corresse em volta do Parque Longines Malinowski. Mais mulheres que homens inspirando o perfume das árvores.

Abri a capela às 5h10min e tudo estava dormindo como a quietude do Mato da Comissão. Eram as quietudes de quase 90 anos: do mato e da mãe com seu modo de ser.

Às 5 horas levantei tirei uma manta com a qual me cobrira. E levantei do sofá da capela. Era mais cochilo do que sono.

Meu irmão Gilberto ainda tentou se remexer no outro sofá – mas logo decidiu também levantar.

Às 4 horas abri os olhos. Às 4h30min eu levantei. Dei um volta pela capela. Não havia calor nem frio. Só silêncio com suas mil perguntas.

Ali deitada quieta como fora em vida – minha mãe descansava no caixão emoldurado por flores, luz de vela à energia e o crucifixo atrás. No canto da capela o tampão esperava por seu papel.

Às 3 horas me acordei e com a cabeça recostada num travesseiro que meu irmão trouxera de casa, abria os olhos, vira o olhar à esquerda e via a primeira parte do caixão. Era o rosto da minha mãe. Mudo. Pálido. Sereno. Tal qual fora assim lá acomodado.

Olhava e olhava, fechava os olhos, tomado por um misto de sonho e realidade. Mas era esta é que era.

Pensei comigo: dormi em muitas camas, dormi na casa de parentes, amigos, dormi em bancos de rodoviária, em carros, em poltronas, até em casas de má fama, – mas nunca em uma capela mortuária.

Pouco antes das 3 horas, meu irmão Vanderlei e sua esposa Cecília foram para casa descansar. Todos os demais também já tinham também se retirado, afinal... Decidimos que Gilberto e eu ficaríamos à noite.

Fechados à chave na capela mortuária com minha mãe e seu sono eterno.

No dia 4, na noite anterior, sexta-feira, portanto, alguns vizinhos e conhecidos mais próximos apareceram. Surpresos com o falecimento da dona Melita – residente há 65 anos ali na Jerônimo Teixeira, defronte ao antigo portão do Mantovani. Antigo e primeiro.

3

Voltando ainda no tempo – às 21h30min o carro fúnebre chegou na capela para depositar o caixão. Minha mãe estava vestida com a roupa que pedira e discretamente maquiada.  Maquiada?

Antes disso saímos a providenciar questões burocráticas (porém necessárias): como qual funerária, o que forneciam, documentos para identificar quem partira, informar a imprensa, disparar mensagens pelo WhatsApp, definir horário do velório, fecharíamos ou não a capela, missa ou encomendação, horário de sepultamento, avisar parentes, vizinhos e amigos, etc. Essas coisas que a gente vai fazendo, passando por cima, superando uma a uma sem se dar contar. Não há tempo para pensar em nada. Só em ir fazendo.

 

Eram 17h10min daquela sexta-feira, 4, quando meu celular tocou com um número não identificado. Só me lembro que disse: “Ai!”. Era o Moacir – enfermeiro com uns 30 a 35 anos de HC. Figura afável. Estava agora lotado há tempos na UTI. Com voz pausada apenas disse: “Seu Ody... a dona Melita... a sua mãe... (fez uma pausa)... (não precisava dizer mais nada)... não conseguiu resistiu. Ela acabou de falecer”. Não posso definir o que senti. Agradeci. Liguei para meus irmãos.

4

Fui ao hospital e à UTI. O enfermeiro Moacir e o Dr. Spada me receberam em silêncio. Nos dirigimos até o último leito da mãe. Descobri o lençol que a encobria. Estava sem ar. Sem batimentos. Sem sinais. Mais quieta de como sempre preferira em vida. A única coisa que eu conseguia ouvir era o silêncio da UTI. Beijei-lhe a testa. Nenhuma reação, como se fosse possível. Nem 40 minutos antes, meu irmão Vanderlei, na visita permitida à tarde, ainda a vira com vida – sustentada por medicamentos potentes e aparelhos. Eu e a cunhada Gelsa tínhamos estado com ela na visita do meio dia.

Antes de devolver o lençol sobre seu rosto – vi claramente que sim, ela estava sem vida. Era o fim de uma caminhada de 89 anos. O enfermeiro Moacir e o Dr. Spada, assim como a enfermeira Miriam – gentis, sentidos e sempre muito solícitos – quase não disseram nada, porque não havia o que dizer. Tratei de agradecer a delicadeza deles com que trataram e cuidaram da minha mãe desde a entrada na UTI – um dia e meio antes – na quarta-feira à noite, dia 2. Estava enfartada, de tal azar, que o cateterismo, tentado quinta, dia 3, tornou-se inviável de tão complexo era o quadro da dona Melita.

Como sempre pedia (nunca soube se por seriedade ou brincadeira) “só não me enterrem viva!”. Sim ela estava, definitivamente, morta.

5

18 de setembro de 1952.

Descida do cavalo e levada às pressas para dentro do Hospital do Dr. Pecoits em Aratiba, depois de 20 km e duas a três horas, eu vinha ao mundo. Deus e minha mãe deram-me a vida – claro com meu pai Alberto. Moravam em  Sede Dourado.

Uns dias no hospital, outros em Sede Dourado, hospital, Dourado, hospital... até que o médico decidiu: “ou deixa ele um tempo aqui ou um dia vão chegar tarde demais!”.

Fiquei uns dias. Noventa. Aos cuidados do Dr. Pecoits e da enfermeira Maria que nunca vim a conhecer. Até que enfim melhorei, estabilizei e me levaram pra casa em Dourado.

Dois anos depois fomos para São Miguel D’Oeste. Um ano depois para Erechim. Sentados na escada do Escritório Contábil do Lewis Caron, na Tiradentes (disso começo a lembrar) almoçamos: pão, banana e um pedaço de salame.

6

Moramos de aluguel na esquina da Pedro Álvares Cabral com a que sobe pra Praça Jayme Lago. Era um casarão de madeira pintado de preto. Meu pai abriu uma alfaiataria na Nelson Ehlers com o irmão Augusto. Guardando o que podia – acertou com Celeste Dal Prá a construção de uma casa de madeira na Jerônimo Teixeira, onde no caso da minha mãe, residiu por cerca de 65 anos. Tínhamos uma casa. Um sonho de minha mãe.

Minha paisagem passou a ser o descampado onde seria um tempo mais tarde o Mantovani. Era um lugar amplo que recebia ciganos, circo, estacionamento para os Atlangas, a casa da Alba Albarello na esquina do Mantovani com o Atlântico, o colégio em 1964, a Banda Marcial, os jogos no Atlântico, minha mãe na máquina de costura juntando os cortes feitos pelo pai com seu tesourão preto, as infindáveis visitas de parentes que vinham de ônibus desde Dourado e iam à alfaiataria e, depois, desciam pela Nelson Ehlers, convidados pelo pai para almoçarem lá em casa. Lembro de uma frase fantástica da mãe: “naqueles tempos, todo dia lá pelas 11:30, eu ia no portão para ver quantos chapéus vinham dobrando com o pai a Nelson Ehlers até a Jerônimo Teixeira. O número de chapéus mostrava a água que precisava emendar no feijão. Mas – reconheça-se sempre traziam ovos, mandioca, queijo, pão, salame, batatas, bergamotas... 

7

Minha mãe com suas intermináveis dores de cabeça, com seus cuidados para andarmos bem arrumados, suas queixas com o filho que fez isso ou aquilo e não obedeceu, com seus medos de temporais, com seus quatro filhos que haveriam de nascer, com suas malas pra passarmos o fim de semana em Sede Dourado, com as atenções para nossos temas de casa; minha mãe com a pior dor que uma mãe pode passar – a perda da única filha aos 20 anos num estúpido acidente (?) ou crime de trânsito em um sábado à noite (maio de 1975) -, minha mãe com a preocupação dos filhos em arrumar um trabalho, com o rádio sempre, sempre ligado, com a Copa do Mundo de 70 vista na TV da vizinha dona Luiza Rodrigues. Minha mãe e os irmãos empurrando a Barata 1946 do pai que não pegava, ou patinava na saída da garagem. Minha mãe e a retirada da Legião (mais de 200 casinhas) e a implantação das casas do BNH como se dizia. Minha mãe e a neve de 1965. Minha mãe e o medo do fogo do Paraná. O incêndio do Colégio das Irmãs. Minha mãe e os programas de “completar as palavras”. Minha mãe e minhas alpargatas pra ir ao Grupo Escolar Campos Sales. Minha mãe me levando na Foto Tomazzoni para a foto da Primeira Comunhão – felizes, mas eu me soltara, e correndo sobre um amontoado de brita, caí e rasguei a calça. Saí na foto com cara de choro. Minha mãe e as missas das 8 aos domingos. Minha mãe e os 10 cruzeiros pro matiné e um sorvete ou um folhado da Sem Rival. Minha mãe e os boletins. Minha mãe e seus risotos imbatíveis, das cucas também imbatíveis. Das domingueiras com o J. Silvestre e o Flávio Cavalcanti. Depois o Silvio Santos. A mãe dos mates-doce, das pipocas e waffle em dia de chuva. A mãe da “salada de batatas com ovo e azeite” (nossa maionese). A mãe do Detefon e dos “boa-noite” queimando contra os mosquitos nos quartos. A mãe dos acolchoados grossos de pena a nos cobrir até as orelhas.  A formatura do 2º grau no Atlântico. Minha mãe e meus trabalhos no Posto Atlantic, Santa Terezinha, bar do Massaro, Sponchiado. Minha mãe e eu no CPOR. Minha mãe e a aprovação no vestibular de Economia em 1972 no Cese (Centro de Ensino Superior de Erechim) com os “gerentões” da cidade. Problema: chegou um dia e não podia mais pagar. Passei então a rodar pilhas e pilhas de provas no mimeógrafo da faculdade. Comecei uma biblioteca com estandes de escritório. Varria o pátio. Lustrava móveis. Passava pano nas classes e cadeiras. Varria as salas pra ficar livre da mensalidade. A mãe dos meus álbuns de figurinhas. A mãe na casa do meu irmão Gilberto (Nico) e de sua esposa Gelsa – com seus grostolis e bolachinhas. A mãe dos programas de fofocas de famosos na TV. A dona Melita e sua torcida para times em plena Champions League. Imagina só! Minha mãe dos 10 gritos pelo nome, me chamando das peladas no Atlântico para ir pra casa. Minha mãe e a Academia Erechinense de Letras. Minha mãe e o Brasil Urgente. A guerra na Ucrânia. Minha mãe e o amor pelas netos Cris e Ana; Eduardo, Elisa e Guilherme. A mãe com o bisneto Benjamin que ao lhe dar de presente 100 reais - o Ben reagiu que não queria um bilhete, mas um presente! A mãe e os almoços em família com a Sonia na cozinha. Mãe a filhos que empurravam Jeeps que de repente apagavam o motor na estradinha pra Dourado, mãe que brilhou os olhos quando o pai encostou um Fusca zero km em casa.  A mãe dos Kerbs de Dourado, do remédio para todos os males da barriga, a Olina; a mãe que me tirava os espinhos dos pés e dedos, com sua agulha - destreza de enfermeira ou de costureira! Ah - a mãe política de todas as eleições, dos candidatos, das pesquisas, das opiniões, dos palpites. A mãe pessimista, mas com torcida para vencer e, assim; degustar mais eventual vitória. A mãe que sabia de todos os relacionamentos, herdeiros e inquilinos. De todas as mortes. 

8

Um dia saltei da Filosofia da UFSM para o jornalismo da PUC em Porto Alegre. E eu na rádio Difusora, no Canal 10, na Assembleia Legislativa e finalmente na Caldas Júnior, o templo da imprensa nos anos 1970. Ligava para ela contando as novidades telefonando para a vizinha da esquina e amiga dela – dona Romilda Rambo. A mãe se orgulhava. A mãe e a grande amiga dela, dona Teodolinda Fachini, mãe do meu amigo João Cláudio Fachini. Quantas visitas. Quantas confidências. Quanto tempo...!

Minha mãe do Atlântico de campo, depois do futsal. Do Inter e do Ypiranga. Minha mãe das novelas. Das “provas” para ajustes das costuras. Do “vai buscar lenha no porão e trás gravetos”. Minha mãe do rádio: das notícias, do carnê social da Erechim, do Clube Infantil, do Assim Canta o Rio Grande com Gildinho e Chiquito, do imperdível Jornal Falado, da Hora da Ave Maria, do Mensageiro Gaúcho da Difusão, e mais notícias e noticiais. Nunca soube por que quis me tornar jornalista – mas desconfio que achei a resposta: minha mãe com o 4º livro sabia mais do que eu sobre meu futuro. As mães podem ser mais falantes ou caladas, mas geralmente sabem mais sobre seus filhos do que eles. Lhes iluminam por onde seguir. Minha mãe e meu casamento. Meus filhos. Meu neto. Minha mãe com cara fechada – quieta. Emburrada. Mas – à bem da verdade, quando a conversa engrenava, ela ia longe. Sem alarde, era bem informada sobre as coisas da vida. Minha mãe e seu sonho de adolescente de ser professora – mas as condições, a cultura e as necessidades familiares substituíram-lhe o lápis pelo cabo da enxada. Minha mãe da roça e da cidade. 

9

Minha mãe com vitórias e derrotas, alegrias e decepções, teimosias, vitimismos (enfim não somos iguais...). Pensando bem (se é possível imaginar); que diabo que há de se condenar uma mãe que vê sua única filha sair para um aniversário aos 20 anos e voltar em um caixão!? Quem se atreve a fazer esse julgamento? Passados quase 47 anos da partida da sua filha Maria Ceci – perguntei como ela conseguira continuar vivendo na casa onde velara a filha: “mas não tem outro jeito”, disse como que fazendo uma resposta curta e completa. Teve apoios. Rezou, chorou, etc... mas... isso é demais! Minha mãe com um marido alto, forte, bonito e de caráter – que menos de um ano após o episódio com minha irmã, viu-se amarrado pelo Mal de Parkinson com 57 anos e, aos poucos, ir “definhando” até a morte lhe abreviar o sofrimento aos 73 anos. Afora as decepções comigo, por exemplo, enfim, minha mãe com quedas e reerguimentos – viveu como lhe foi possível viver. Minha mãe da Rede Vida. Dos rosários. Da fé. Da eterna preocupação com os seus. Mãe – aquele porto seguro e socorrista de todas as horas e problemas. Qualquer coisa e “vou chamar a mãe”, “vou contar pra mãe”, “tu vai vê quando a mãe sabê...!”. Mães - (Melita e dona Ilda minha ex-sogra) que garantiram a casa. A mãe que na última hora salvou a casa onde moro quando estava para ser executada na justiça. A mãe das madrugadas geladas que vinha conferir se estava bem coberto. A mãe que me arrumava para a escola. Que me penteava quando tinha cabelos. Quanto tempo - mãe! A mãe Melita que sabia de todos os temporais na redondeza, que não perdia um Jovino (Alves Martins) e nem um Chôco (Difusão) abrindo as rádios às 5 da manhã. A mãe que sabia da transferência de todos os padres e se orgulhava de ver a filha descendo a Maurício pela Banda Escocesa do JB.

10

Minha mãe que só deitou em uma cama de hospital (afora os partos), para uma cirurgia de fratura de fêmur, aos 87 anos. Minha mãe que queria ir para o céu, mas não almejava a morte. Minha mãe que brincava ou falava sério! – “só não me enterrem viva!” e então – abria um leve sorriso. Minha mãe e suas pantufas, seus casacões de inverno, suas caixas de bom-bons a cada Natal. Minha mãe que jamais se cansou de economizar – para amanhã não faltar. Para uma emergência. Minha mãe Melita – que sofreu um enfarte às 20 horas do dia 2, uma quarta-feira, estava morta às 17 horas de sexta-feira, dia 5. Foi tudo muito inesperado e rápido. Às 19 horas tomou café. Às 20 horas foi deitar. Dez minutos depois chamou pelo Gilberto e, sentada na cama, disse: “nunca me senti tão mal na vida como agora. E vomitou”. Minutos depois estava na emergência. Exames de sangue, eletro, etc... Da emergência à UTI. Minha mãe de 89 anos de sacrifícios, temores e receios (justificados) e, por que não, de alegrias, finalmente livrara-se de seu último medo o “de ser enterrada viva”. Eu a vi na UTI. O atestado de óbito confirmava. E depois na capela mortuária. Não havia mais, nesta vida de carne e osso, temer o que quer que fosse. Estava morta. Fisicamente. A fé em Cristo neste tempo de quase Páscoa, sonhar que a dona Melita, finalmente reencontrou-se com seu marido Alberto e com sua filha Maria Ceci – recomeçando uma outra vida, uma nova vida, a vida eterna, mais que um consolo é um alento. A esperança que nos dá forças e impulsiona a seguir em frente.