domingo, 18 de setembro de 2022

Triste e vazio

 

 




Jair da Cruz, o Miúdo.. Crédito: Arquivo de Família

A Maurício Cardoso está mais triste. E mais vazia. Não sei se notaram. Sim, porque, ali no banco do canteiro central , bem em frente ao condomínio Erechim, falta alguém. 
Por anos e anos as folhas dos ligustros despencaram das copas e, algumas, se aninhavam no colo, no boné e ao lado do Jair da Cruz, o popular Miúdo como tornou-se conhecido de forma carinhosa.

Conheci o Miúdo através dos jogos de loteria que fazia e nos bares da vida. 


Mas o Miúdo se destacava por outras virtudes. Sempre com alto astral, sempre com brincadeiras, sempre colocando o “Seu Grêmio” como um farol de entretenimento e paixão, sempre com elogios ao “Canário” como gostava de se referir ao Ypiranga. Apaixonado por rádio, fazia dele um homem muito bem informado sobre a realidade - especialmente no mundo futebol - mas não só sobre o mundo da bola. Política era outro prato preferido, além das cenas e notícias importantes e curiosas.


"Miúdo", em casa e mais magro, com a camisa do seu "Canário".
Crédito: Arquivo de Família

O Miúdo era um sujeito que fazia das suas brincadeiras, da sua simpatia, da sua boa companhia e das suas gargalhadas, um contraponto ao seu biotipo de corpanzil alto, gordo e forte – aos seus bem mais de 100 quilos e, segundo alguns, de pé 48. Ninguém em sã consciência queria briga com ele, embora provavelmente não encontrasse nele um inimigo, talvez, quanto muito, um adversário se a tanto fosse levado.

Desde minha adolescência eu guardo a escalação de um time que existia só na minha cabeça. Eram nomes curiosos e, quando escalados por um técnico também meio gago, fazia a gente rir. E a tal da escalação o Miúdo adotou como uma saudação quando me via. E lá vinha ele com o time, imitando o técnico, como disse, também existente só na ficção: “O meuuuu time vai jogáá com Oooberdã; Paaataclã, Saaarará, Domingues e Caieira; Diabinho e Bem Feio; Marmelo, Elo, Pinguelo e Martelo”, e aí o Miúdio dava uma gargalhada que fazia farfalhar as folhas dos ligustros (hoje não mais existentes na Maurício).

Foi uma pena perder uma figura, um personagem, um cidadão perfeitamente incorporado à cena erechinense. Nunca vi ninguém falar mal dele. Nunca ouvi uma discussão dele com alguém. Perfeito não era porquanto tratava-se de um ser humano. Mas que ser humano. Que cara legal. Que amigo que se foi sem mesmo se despedir dos amigos. Um dia sumiu do centro da cidade para cuidar da saúde em casa. Mas jamais deixou de lado o rádio.


"Miúdo" ligado no "Tocando a bola" da 
Difusão. Crédito: Arquivo de Família
O Miúdo foi tão relevante no mundo das relações humanas de erechinenses de todos os naipes sociais – que -, francamente merecia uma homenagem da Câmara de Vereadores. Sim, porque uma cidade deve reverenciar os que ajudaram na economia, no esporte, na sociedade clubística, na religião, na imprensa, nas letras, no comércio, na indústria, na prestação de serviço. Deve ir além. Deve lembrar os profissionais liberais, as autoridades políticas e das demais áreas como Erechim produziu e produz, reverenciar as figuras que marcam. Mas uma cidade também se alimenta, se mantém, se identifica, respira e vive através de seus personagens das ruas, pessoas comuns e conhecidas de quase todos e por quase todos respeitada e, mais que isso, admirada. E o Miúdo foi um sujeito assim.

Atribui-se ao dr. Sigmund Freud que o “o luto deixa o mundo mais triste e vazio”. E com a saída de cena, da cena da Maurício, da cena dos bancos dos canteiros centrais, com o desaparecimento do boné, do colo, dos ombros, do corpanzil que as folhas dos ligustros procuravam para não beijar o chão, fazendo-se repousar em sintonia com aquela figura de corpo bem grande, de coração que acompanhava seu biotipo, aquela figura que gargalhava fácil e sem economia e que, por vezes, mostrava-se observadoramente silente, amistosa e admirada, pode-se garantir que a Maurício Cardoso, a cidade, enfim, não é mais a mesma que a marcou por décadas.  

Que pena o Miúdo ter nos deixado tão cedo, mesmo aos 72 anos. Por que não sentei mais vezes nos bancos ao seu lado para acalmar a alma com suas tiradas e gargalhadas? As folhas de ligustros não caem mais porque foram arrancadas com troncos e tudo – há tempos. Árvores floridas tomaram seus lugares, mas elas tiveram pouco tempo para descansar no colo e no boné do grande amigo e personagem no qual se transformou o Miúdo.

Mas, quando passo pelo canteiro central em frente ao Condomínio Erechim, ao lançar o olhar para o banco vazio, me vem a lembrança e ainda ouço: “Oooberdã; Paaataclã, Saarará, Domingues e Caieira...., ahahahahahahahah”.

Sim – Freud tinha razão: “o luto deixa o mundo mais triste e vazio”. No caso específico do Miúdo podia, muito modestamente,  "emendar" ao pensamento do genial psicólogo: mais triste e vazio - "do primeiro ao quinto".