sexta-feira, 10 de abril de 2015

O frentista da Administração - Última Parte





Atendendo pedido de um amigo escrevo mais uma coluna, depois de cinco - a derradeira, sobre o Frentista da Administração. A historinha se passa em 1972 no Centro de Ensino Superior de Erechim (Cese). Era a primeira aula de Metodologia Científica. Girônimo Zanandréa, então padre, era o professor.

Pois, eu trabalhava no posto de combustíveis Atlantic, do senhor Abílio Machry. Fiz vestibular por insistência dos colegas e amigos do posto, e passei. Tinha então 19 anos. E não é que professor Girônimo mandou, na primeira aula, que um por um se apresentasse!

E assim foi que entre proprietários, empresários, gerentes e funcionários de órgãos públicos que na época desfrutavam de grande respeito no meio social, e tinham excelentes vencimentos, pois não é que no meio daquela gente, a maioria com bem mais idade, estava eu; mais novo e claro - exímio passador de ar, lavador de carro e abastecedor de carros. O que eu diria naquele hora?

Bem, o que eu diria? - eu disse na coluna de sexta-feira passada.

Vamos ver se rende mais uma.

Aquela experiência para mim foi de valia impagável.

Sim, porque ela me colocou no centro de um grupo que se não mandava na cidade – de certa forma, boa parte dele, passaria a ‘mandar’ cinco anos depois.

Tenho para mim por dedução óbvia, até por que eu era frentista – mas cego não.

Sim, foi lá naquele contexto que nasceu o político Eloi João Zanella.

Sim, foi lá naquele contexto que nasceu a Zebra (símbolo dos governos de Eloi Zanella que mudou os rumos de Erechim, levando a cidade a desenvolver seu setor industrial...).

Sim, foi lá naquele contexto que Jayme Lago bolou tudo (pai/mentor de Zanella gerente da Caixa Econômica Estadual e ser político).

Sim, foi lá naquele contexto que a Zebra se arquitetou, organizou e deu seus primeiros e decisivos passos.

Sim, foi naquele contexto que a fermentação do poder de Campo Pequeno trocou de mãos, de roupa, de cabeça, de gente, de pensamento, de linha, de idéias e de ações.

Eloi Zanella foi prefeito de 1977 a 1983.

De 1989 a 1992.

De 2001 a 2008.

Jayme Lago – de 1983 a 1988.

Só em dois mandatos, Zanella e Jayme ficaram 12 anos no poder.

No total são 24 anos.
Eram dois dos alunos daquela turma.


Foi lá naquele contexto que vi de perto a esquerda, como ela pensava, como se portava, o que almejava, o que queria para o Brasil.
Francamente, pelo que defendiam e pregavam, assim como em todas as esquerdas do mundo – me seduziu.

Tinha entre meus professores os mestres Nédio Piran e Ernesto Cassol –d esquerda é claro.

De quebra – na Matemática, João Dautartas, sempre um peemedebista.


Pois, não vou me dar ao trabalho de tentar saber onde cada um dos queridos colegas da época, anda hoje em dia, não por que não o mereça; mas por que esta já é uma tarefa muito grande e que me exigiria o tempo que neste momento não disponho.

Por isto – fixo em um ou outro, e no Linor Pedro Klien que está com a vida como o diabo gosta: sombra e água fresca. Eu sei que ele vai chiar – e já que vai – digo tudo: família encaminhada e sem problemas financeiros. Não chia Linor – relaxa e goza! Pobre Linor – volta e meia se vê no sacrifício de peregrinar Velho Mundo afora. Que sina. Que destino! – está tendo o primeiro presidente do Diretório Acadêmico do Cese!

Em tempo, observe-se, o Linor acabaria sendo mais tarde pró-reitor de Administração, cargo antes exercido por Eloi Zanella – na URI -, fruto definitivo daquele nem tão incipiente assim, alvorecer de ensino superior em Erechim.
Há outros que tenho visto volta e meia por aí e tudo mundo tranqüilo como o João Aldo Zanin, Heitor Detoni, o Juca – Jorge Augusto Muller, o Osvaldo Gorski, o Zulmiro Zucchi, o Adão Oliveira, se não me engano virou pastor – ou enfim, comanda uma igreja, o Adalberto Valentini – outro que está com o burro na sombra.
Enfim, há os que faleceram e tantos outros que nunca mais fiquei sabendo onde se meteram.
Mas, foi naquele contexto, então, que a meu juízo nasceria a Zebra, de direta é claro; candidatos em potencial, a esquerda bem delineada e até uma espécie de centro – com o João -, ou seja, havia para todos os gostos.

O professor Girônimo, então um sacerdote, acabaria tornando-se bispo coadjutor e mais tarde, bispo da diocese de Erechim e, hoje, bispo emérito.

Ficou no cargo ou no posto ou na condição de bispo – até esses dias, quando ao completar 75 anos, e obedecendo as leis que regem a igreja católica no mundo, apresentou seu pedido de renúncia.

Quer dizer – aquele meu professor que eu queria detestar pelo resto da vida por ter me colocado naquela condição, sem saber, foi de tudo.

Nesse meio tempo ainda foi reitor do Seminário de Fátima, vigário da catedral e em Aratiba, pároco da catedral, deu aulas em escolas públicas, no seminário e em 1994 assumiu a vaga de Dom João Aloísio Hoffmann. Ou seja, o professor foi bispo por 18 anos. De quebra – integrou o Conselho Universitário da URI – extensão daquele início com o Cese em 1972.

Então, naquele contexto havia futuros prefeitos, presidentes de partidos políticos, secretários, pensadores e ativistas da esquerda à direita. Um bispo e, claro, um frentista de posto de gasolina.
Foi lá naquele contexto que eu tive a certeza que a matemática, a contabilidade, as contas, enfim, não eram para mim.
Passava porque ajudavam – ou me empurravam, mas como seria depois, sozinho?

E foi pensando nesta certeza que eu via antes do tempo, a bem da administração, que decidi abandonar o curso depois de 1,5 ano. Não dava. Não daria. Não adiantaria insistir na coisa errada. No meu interior eu sabia – mas ficava quieto.
Mas, um dia, Jayme Lago, me disse o que eu não me dizia: que eu não servia para aquela coisa, que eu não tinha jeito de economista ou administrador, que o meu negócio era outro.
Depois de me alertar que daquela área eu não sabia nada, e devia manter distância, para meu bem, foi ele, Jayme Luiz Lago que observou pela vez primeira: ‘o negócio desse guri é escrever”.
E foi assim que por pedido com jeito de ordem, que o Jayme interpelou o amigo Gilson Carraro: ‘Ô Gilson, arruma um lugar pra esse guri lá no jornal. Diz pro Geder pegar ele. O negócio dele não é aqui, mas é escrever!’.
Os Carraro, para quem não sabe, detinham o jornal mais antigo da cidade - ‘A Voz da Serra’, de 1929, hoje, reanimado ainda em família como Voz.

E foi assim, que sem mais nem menos, fui parar na redação de A Voz da Serra.
 Trabalhava das 23h até clarear o dia, ao lado do Geder.
E deste ganhei outro presente: ‘ô guri! Se tu quer ganhar dinheiro pega uma pastinha e vai vender (comercial). Se quer passar fome, como eu, vai bater notícia!’, e deu sua apavorante gargalhada sob o bigode de fogo.
Evidente que fome ele não passava – mas o recado era claro e, rigorosamente, verdadeiro ao menos para jornalista que nunca confundiu os princípios de base, nem as alturas dos objetivos sagrados do jornalismo tal qual foi concebido, ao menos em tese.
E sabendo exatamente as razões, para mim cristalinas, que decidi seguir o conselho do Geder e não toquei, jamais, toquei numa pastinha de vendas.
Mais tarde haveria de deixar o jornalismo e tentar outras sortes em outras empresas da cidade – mas o vaticínio do Jayme Lago parecia ferver nas minhas veias até que um dia larguei tudo e fui embora.

Fui para uma escola de jornalismo de verdade da qual até hoje me orgulho do que dizem de quem pela Famecos passou: ‘então tu também és um filho da PUC!’. Sim – sou’. Entre os professores, Ana Amélia Lemos, Aníbal Bendatti e o extraordinário Antoninho Gonzales, e tantos outros nomes consagrados do jornalismo de escola e de redação - à época vivendo seus últimos anos do que se convencionou por jornalismo ‘romântico’.
Eram anos onde ser jornalista era uma honra, porquanto uma censura, mesmo que tímida, ainda teimava em mostrar suas unhas. Mas até mesmo aquela censura a gente respeitava, porque ela não tinha medo de se mostrar ou de se assumir.
Hoje em dia não sofremos mais deste mal, ao menos quando olhamos à direita: a 'censura' tem vida própria e nem fica vermelha quando dita a pauta do que pode ou não pode. Tudo em nome de qualquer coisa - menos do bom e sagrado jornalismo. Coisas de mercado - dir-se-á mundo afora. Ouço um barulho: deve ser o Geder mexendo os ossos e sussurrando: 'jornalismo de pastinha, Ódddyyyyyy - ahahahahahahah!'.

E foi esta a história daquela história.
Para muitos – nada.
Para outros – uma coisa de poucas conseqüências, com o que não concordo.
É só olhar para os atores principais, entre os quais, destacaria além dos colegas e professores, é óbvio – do professor de Metodologia Científica, também aquele guaipeca do frentista que no meio de pessoas já influentes na cidade, descortinou seu norte e do qual me orgulho muito, porquanto desde sempre exercido com a mais independente das independências.

Hoje, aquela sala de aula é nada mais, nada menos que a
Capela Santo Agostinho.
Inaugurada em 25 de setembro de 1992 - 20 anos depois.
Que os Santos da capelinha da URI - velem pelas almas daqueles primeiros, de bispo a prefeito, de presidente de partido a empresário, de mestre e doutor - a frentista. De frentista a jornalista.

terça-feira, 7 de abril de 2015

Quando me caiu a ficha do jornalismo - O frentista da Administração!

E por receber cumprimentos no dia do jornalista, que nem me lembrava, reproduzo aqui aquilo que pode ter sido o horizonte da profissão que escolhi e não pretendo, jamais, largar. Quem tiver paciência, que se atreva e leia. Obrigado. Ah, e cumprimentos a todos os colegas neste 7 de abril.
         
Foto: Marcos Aurélio Castro - José Adelar Ody saltando o Estreito do rio Uruguai    



            

Eu trabalhava das 8 às 12, das 13h30min às 18 horas no Posto Atlantic do seu Abílio – até pouco tempo o Nota 10. Já estava com o 2º grau concluído e haveria vestibular para Administração de Empresas, o primeiro, no CESE – Centro de Ensino Superior de Erechim -, hoje URI.
Meus colegas e grandes amigos do posto insistiam: - “Má tu tem que fazê o vestibular. Vaaaai... que tu vai passá”. No último dia da inscrição me levaram de macacão preto com graxa e tudo. Contra a vontade tive de me inscrever. Administração? De quê? Com base em que? Era a pressão que eu mesmo me determinava.
Fiz. No dia do resultado parecia um fim de campeonato: mais de 15 funcionários do Posto em roda do rádio. Quando chegou no 26º - José Adelar Ody ! Nossa Senhora de Fátima – que emoção!
De noite saiu um churrascão, uma baciada de salada de tomate com cebola, pão e um barril de chope, tudo na lavagem lá nos fundos do posto. Depois cantamos e fomos quase cem por cento para o meretrício. Era hábito de pobre naqueles anos. Hoje, o meretrício eliminou as classes sociais.  Socializou-se e está disseminado. Mora no centro e nos bairros. 
Mas, quando vieram as aulas, eu me vi no meu lugar. Já na largada olhava as coisas de baixo para cima. Me descobri peixe mais pequeno do que era, também por que o meu salário era exatamente do tamanho de um salário – mínimo. Numa paulada só, a matrícula, nem 30 dias de serviço deram conta.
Só me safei pela intervenção do seu Alberto Mathias Ody , meu extraordinário pai, meu socorro de sempre. Por onde tem andado pós morte? Sinto-o sempre por perto!
Logo vi que ir e entender as aulas e passar nos exames, isto seria um problema menor do que outro: como pagar? Mesmo assim – dei início.
E, por que a vida é assim mesmo, quando a gente tem certa idade a coisa até pode parecer feia, mas encara-se o bicho véio, balancei mas fui. Nada que nos faça repensar e desistir. E que fosse o que Deus quisesse.
No primeiro dia de aula lá estava eu perdido, absolutamente perdido, que nem candidato pelado a vereador em tempos de dez cadeiras no meio de um mundaréu de gente – todos eles... amigos do meu patrão. Tinham intimidades que só os patrões têm entre si: se falavam sem licenças, se chamavam de apelidos, jogavam, jantavam e bebiam como irmãos dados desde sempre. Conclusão: os meus colegas de sala de aula eram todos, patrões.
Eu? Bem eu não contava. De vez em quando um ou outro me olhava com a esquina dos olhos se perguntando: ‘quem será aquele piá ali!?’.
Entrei na sala, onde hoje é a capela Santo Agostinho, como um guaipeca que leva um pontapé numa das ancas e sai se arrastando com o rabo no meio das pernas, pisando curto, mas ligeiro e em plumas para não ser notado. Quieto para não despertar mais ira e levar outro coice ou ser atropelado de vez a pedradas e chiiiiiiiiaaaaaaaaaa – sai daí ôôôôôô.... viralata.  Nem oi me disseram!
Sentei na última cadeira da última fila do último canto, no lado esquerdo do professor. Era o canto do canto. Dava contra a parede pelas costas e pelo lado direito. Mais para trás não tinha como. Mais que aquilo eu não poderia me esconder. Quem quisesse me ver teria de se virar, olhar à traseira e me procurar. Era ali que eu queria ficar. Ali era o meu lugar. Longe e só. Esquecido – deslembrado!
Os meus colegas nem pareciam meus colegas. Eram todos independentes, grandões, gente de mais idade, se vestiam de outro jeito, auto-suficientes, superiores. Fumavam sem licença do pai. Falavam de negócios e de dinheiros que nunca ouvira falar. Meu limite, meu máximo, meu teto era ele, o salário mínimo.
Lá no pátio interno onde freqüentemente hoje em dia se estendem lonas para eventos, ali descansavam os automóveis dos meus colegas – os patrões. Meu Deus – como seus jeitos eram jeitos de poderosos. Não só tinham mais tudo do que eu, mas até mais do que os professores. Eles chegavam pelos fundos do prédio, iam de carro até quase dentro da sala. Sinceramente – parecia que o lugar era deles. Até hoje penso naquilo ou seria nisso! E não era deles?!
Eu? – nem ônibus pegava porque naquele tempo nem tinha. Hoje – reclamam dos micros que pegam a galera na porta da casa, na porta da porta, na porta da escola. Se atrasa... aiaiaiai!
E foi assim que sem saber que já fazia bem para a saúde naqueles tempos, que eu caminhava como só os pobres e os remediados sabem como. Pobre e remediado não risca um compromisso, não bota na agenda e nem calça tênis da moda, a melhor malha, o celularzinho no cinto de algodão, o walkman nos ouvidos e sai de óculos escuros a passear pela Sete. Não! Pobre e remediado chega do serviço correndo, lava a cara, engole um pão com café, pega os cadernos e sai correndo em outra direção. Para pobre e remediado nada é perto e nem prazeroso. Tudo é longe e obrigatório. Longe? Nem tanto. A distância certa, de pobre. A necessária. A que é!
E era como pobre, estranho e remediado diante daquela insólita situação que eu me assistia, quieto que nem cusco que finge dormir num canto com a cabeça deitada sobre as patas, e as orelhas sobre as vistas, que eu me protegia dos olhares.
Quando eu chegava para a aula de Administração, esbaforido e com os bofes pendurados e só seguros pelos anos da juventude – meus colegas sisudos, já meio gordinhos, fumantes e exalando perfumes, estacionavam seus flamantes carrões da época um ao lado do outro e saiam com dificuldade dos fofos assentos de seus Corcéis, trazendo à tira colo – pastas executivas, volumosos e pesados chaveiros e cobiçadas capangas. Eu disse capangas e não - camangas.
Cada um dos meus colegas tinha o seu carro. Cada dia, uns vinham com outro carro. Cada sempre eu ia como sempre: a pé e com pressa, fugindo das minhas próprias pegadas que ameaçavam me alcançar. Fugidias de mim mesmo.
Quando o professor de Metodologia Científica entrou na sala trazendo uma enorme pasta preta, eu vi com os meus olhos, definitivamente, que não estava mais no 2º grau.
- Boaaa nooooiiiiite padre Girônimo, diziam os ‘donos da sala’, levantando-se em sintonia assim como os estádios se erguem quando se iniciam os acordes do hino nacional, ou quando o time da casa pega a bola e enceta um ataque.
Eu que não mandava nada, e nem ninguém tinha vindo falar comigo, se é que haviam me notado, só pensava em desaparecer dali. A minha praia era o chão do posto pintado de diesel com cheiro de gasolina no ar e os amigos lá do bar Arthur. Com certeza aquela não era a minha casa. Eu sabia que não iria durar naquele ambiente e então, por que eu ainda insistiria?! Que pegasse os caderninhos e saísse costeando o escurinho que dá para o Seminário de Fátima e adeus tia Chica! Nem notariam e se notassem até dariam graças a Deus: ‘íííí... se foi o quieto, o guaipeca que nem se nota a sua falta’! Mas não. Não sei por que – ficava.
- Boa noite a todos os senhores... É uma alegria estar aqui com os senhores na abertura deste ano letivo. É uma alegria poder conviver com esta primeira turma do curso de Administração de Empresas, foi dizendo o meticuloso professor Girônimo Zanandréa, com uma fala aveludada que saía dentre suas bochechas róseas.
Cada vez que ele movia os olhos para o meu lado, eu me encolhia, deslizava, me afundava e desviava os olhos. ‘Que Deus não permita que ele me veja’ era só o que eu pensava e pedia em segredo.
- Muito bem. Senhores e distintas senhoras. E para melhor podermos nos relacionar ao longo do ano, que tal nos apresentarmos! Jesus quando veio ao mundo também foi apresentado aos três magos. Eu sei que quase todos aqui já se conhecem pelas relações comerciais e sociais, mas estamos num ambiente novo e acho oportuno a gente se re-apresentar ou, de repente, tem alguém que não conhecemos, disse o professor Girônimo erguendo e olhando para o meu lado, afundando-me ainda mais atrás da carteira.
‘Aiaiaiaiaiaiai, por que é que eu não fui embora antes de entrarmos para sala! Nossa Senhora de Fátima e agora? Eu vou ter de falar! Mas como? – gago do jeito que sou, como é que e-e-e-e-e-euuuuu vô fa-fa-faaaaa-a-a-lar?!
- Muito beeeemmm. Vamos começar aqui pela direita – disse o professor Girônimo Zanandréa. Isto, pela direita! Quem sabe... cada um diz o seu nome e o que faz. Está bem assim?! Então vamos dar início: o seu noommme... o senhor... aqui da direiiiiita!
- Eu sou... Eloi João Zanella. Sou gerente da Caixa Econômica Estadual... da avenida Maurício Cardoso...!
- Vamos então saber quem é o segundo da fila – aqui ó -, sempre da direita... (esse da direita também até hoje me cutuca os ouvidos... mas agora eu entendo...). O seeenhor é...!
- Eu me chamo Jayme Luiz Lago. Eu tenho uma empresa, a Comac, que fica ali na rua Valentim Zambonatto.
- Muuuiiito bem, disse o professor Girônimo... sufocado por palmas.
- Vamos  para o próximo, disse o professor. O senhor ééé´!
- Eu sou João Picoli e sou agricultor,  e palmas e palmas.
- Muuuuuiiito bem, comemorou o professor. Vamos fazer o seguinte: para que eu não precise ficar anunciando e para ganharmos tempo... quando um termina de se apresentar, o seguinte já se levanta e diz o nome e a profissão... está bem assim?! ... ordenou. ‘Então vamos prosseguir. O seeenhoorr ééééé...?’.
- Meu nome é Ary Francisco Madalozzo e sou proprietário da Indústria Madalozzo (palmas...); eu me chamo Paris Bordignon e sou funcionário do Banco do Brasil há muitos anos... mais palmas; meu nome é Zeferino Detoni e sou contabilista.... meu nome é Ademir Lourenço Pilotto e trabalho na Construtora Viero... palmas e palmas!
Santa Mãe de Deus – Nossa Senhora de Fátima, só dá gerente, diretor, bancário, produtor rural, proprietário disse e daquilo – nem professor essa gente é... É muito mais. Se fossem professores ao menos haveria alguém como eu, de brincoringa... mas que nada. Só dava calça de friso e gravata de nó grosso e americano no gogó. E eu – o que diria eu que trabalhava no Posto Atlantic a eles que nem tinham me notado, nem sabiam que existia, nem acreditavam que até eu, um nada,  com eles lá estava!
Os colegas (?) se mexiam, se remexiam e iam se ajeitando nas cadeiras quando se aproximava a vez de cada um. Uns ajeitavam o nó da gravata, outros alinhavam algum fio de cabelo, outros limpavam a garganta para falar claro, bem e bonito, alguns ainda davam um toquezinho na grande pasta que descansava no chão, e outros remexiam os enormes chaveiros com chaves da firma, da casa, do carro, do banco, da garagem, do prédio – só faltava a chave da faculdade – cruzes!
- Vamos continuando. Viu como é bonito a gente ir se conhecendo, dizia o professor Girônimo Zanandréa, metido no seu inconfundível blusão azul e de gola redonda. ‘O próximo...!
- Meu nome é Cecílio Viega Soares e sou Oficial da Brigada Militar... palmas... muitas palmas....; eu sou Walkirio de Oliveira e trabalho na Menno... mais palmas; eu me chamo Dilson Sérgio Spinatto e trabalho no Banco do Brasil, mais palmas ainda; sou Alberto Luiz Zuanazzi e trabalho na Secretaria da Fazenda do estado... muitas palmas; meu nome é Ademir Luiz Mossi e trabalho na Samrig... palmas; me chamo Alzira Mara Santolin e trabalho no Banco do Brasil... plá, plá, plá...; sou Dilio de Oliveira Chaves e sou gerente do Banco do Estado do Rio Grande do Sul em Getúlio Vargas... plá, plá, plá.... eu também sou proprietário da Indústria Madalozzo e meu chamo Euclides Antônio Madalozzo, muitas palmas. No meu canto no fim da sala eu queria furar a parede e correr como Forrest Gump – atravessar o país e que nunca mais me achassem.
E seu eu pedisse licença para ir ao banheiro? – mas pensando bem por que o professor Girônimo Zanandréa daria licença, deixaria um fedelho inotado naquele ambiente, levantar-se, parar com todas as apresentações daqueles ilustres senhores da sociedade erechinense para responder se eu podia ou não podia ir ao banheiro? Quem era eu na ordem do dia para interromper tal solenidade para saber se eu podia sair dali, atravessar toda a sala e ir ao banheiro! Não. Nem falar. Seria muito melhor que eu nem me mexesse no meu canto... quem sabe até batesse o sinal antes de chegar a minha vez e aí eu ficaria para a próxima aula – que com a mais absoluta das certezas deste mundo de terra -, para mim nunca mais haveria a tal de próxima aula.
E aaiaiaiaiaiaiaiaiai, a fila ia andando. Já estava quase no meio da sala. E se de repente o professor Girônimo Zanandréa parasse tudo e mandasse começar do fim?! Meu Deus – quase que desmaio. E se ele fizesse aquilo, desse um pega-ratão só para segurar todo mundo bem atilado.
Não... ele não faria uma injustiça daquelas comigo. Já não bastava o meu sofrimento assim a conta-gotas, um por um, vindo, vindo, vindo... e ainda deveria cogitar que de repente o professor pulasse para... e ‘vamos agora recomeçar, agora lá do fim. Quem é aquele... aquele.... aquele..... menino, aquele, gurizinho, aquele guaipeca lá do fundo.Também é aluno, imaginava. Eu suava como só se suava no desmonte de um pneu de caminhão no alto do verão, segurando as espátulas com os músculos que querem saltar fora dos braços como fazia á no posto de gasolina - no meu trabalho.
Meus dias de gagueira pareciam que estavam perto do fim, pois naquela noite das apresentações, naquele ambiente insólito e totalmente hostil para a minha realidade de empregado de salário mínimo, mais tímido que o vereador Ronsoni em noite de discursos na Colenda. Se... se tivesse de falar seria o fim da gagueira; sim, pois eu morreria. Com certeza – eu cairia morto... mas, graças a deus eu morreria no meu canto. Dali eu não arredaria pé e de preferência eu cairia de costas para que nem me conhecessem.
Quando as apresentações mais ou menos chegaram à metade, alguém teve a feliz idéia de propor um pequeno intervalo para que pudessem satisfazer seus vícios de tabaco lá fora – mas tudo aquilo não passou de cogitação e os tais intervalinhos ficariam para outras ocasiões, depois da apresentação da turma da Administração. Ai – que azar. Isso só pode ser coisa de pobre. Tu já viu pobre, miserável e remediado ter sorte um dia na vida?
- Vamos prosseguir então, meus queridos alunos e diletas senhoras... disse o professor Girônimo Zanandréa. O sssennhoorrrrrrr ééééééé´...!
- Eu me chamo Linor Pedro Klein... e também sou funcionário do Banco do Brasil... agência de Erechim...!
Minha Mãe – outro do Banco do Brasil. Naquele tempo era o paraíso no céu e o BB na terra! A única coisa que eu tinha de proximidade com o Banco do Brasil era a vizinhança com o posto de gasolina. O banco e o posto onde eu enxugava carro ficavam (como ainda ficam) lado a lado. Este era o nosso 'parentesco'. No mais... eles tinham os carros e eu os panos e as canelas; eles mandavam encher o tanque e eu enchia; eles pagavam e eu recebia...  recebia e entregava para o patrão.
Eles patrão – eu empregado. Eles e eu ali, juntos? Eu no meio deles?! Que ousadia... que afronta... que discriminação deixarem um miúdo, um desconsiderado, um nada; entrar, sentar e ficar entre aqueles boludos – era como eu me via.
Por que é que esse... esse... esse professor – perdão mas eu não sabia que o professor Girônimo Zanandréa era um padre, nem sonhava que viria a ser bispo... nem suspeitava que ele era um ministro de Deus (até Ele tem ministro? - e depois ainda falam do companheiro Lula, da Dilma...), mas por que não fazia que nem o João Dautartas, professor de Matemática, que entrou na sala e nem chamada fez?
Por debaixo do seu bigode cor de fogo só saiu um ‘boa noite!!’, direto, seco e ardido como uma labareda... e se pôs a encher o quadro negro de contas e mais contas. Por que ele não fazia como o pessoal da esquerda – o Nédio Piran, o Ernesto Cassol... – professores de primeira grandeza. Estes sim que pareciam professores de faculdade! Iam direto. Pau nos governos, nas injustiças dos governos e sem esse negócio ginasial. Eu não compreendia os desígnios do ministro de Deus. Só ouvia a minha rebeldia interna e a minha capitulação externa. Eu era um cubo ao quadrado nas contas quilométricas, astronômicas, seguidas de minhocões sem cabeça que iam da parte debaixo do quadro em seta para a continuidade do mostrengo da exposição matemática do João. Aquilo só podia ser coisa do diabo – contas absolutamente pecaminosas. Um acinte a quem se acostumara a ver a vida com os brilhos da simplicidade – mas era a faculdade e não o primário.
Mas eu juro pelo meu emprego que mantinha com unhas e dentes – de frentista do Posto Atlantic, eu juro que preferia mil vezes, não – mil vezes é pouco -, um milhão de vezes eu preferia copiar aquelas contas enviadas por satanás, do que ouvir meus colegas se apresentando... proprietário, sócio, gerente, dono, administrador, Banco do Estado do Rio Grande do Sul, Banco do Brasil, Secretaria da Fazenda, agropecuarista...! E o professor de Metodologia que parecia ter baixado direto do céu em cima do estrado esfregava candidamente as mãos enquanto um enorme crucifixo lhe pendia e balançava no peito. Lá do canto do canto, do último canto do meu canto da sala eu ju, eu jjjj... eu ju-ju...e,e,e, jjjjjjjjuuuuuro que parecia que tinham descido Ele do crucifixo e me levavam de arrastado para ocupar Seu lugar. ‘É hoooojee que tu vai ser crucificado’, era o que eu ouvia dentro da minha cabeça!
- Muuuuuitto bem, prosseguiu o professor. Vamos ao próximo aluno?! O seeenhooor ééééé?
Eu sou João Aldo Zanin. Sou corretor de imóveis. Tenho meu escritório ali no Condomínio Erechim e estamos à disposição dos amigos!
Aiaiaiaiai – e-e-e-euuuu, eeuuuu preciso de um imóvel?... pensava lá no meu canto com a cara pegando fogo e enfiada entre as pernas. Eu que não tenho nem onde cair morto e o colega se colocando à disposição de quem quisesse um imóvel. Mas ele estava na dele... e eu... bem eu estava na minha, não... na minha não... estava no meu... azar de ter sido aprovado.
- O próximo, disse o professor com os dedos entrelaçados como só os tranqüilos titulares ocupantes do Ministério de Deus podem se colocar.
Sou Dorvalino Ceconello, da Cooperativa de Getúlio Vargas; me chamo Eugênio Miroslau Kluch do Banco do Estado; eu sou Heitor Detoni... trabalho como contabilista; sou Henrique Ângelo Salomoni, sou granjeiro; me chamo Idione Enderle e trabalho no INPS; meu nome é Ilário Strada e sou do Daer; José Vedana, vendedor de veículos; José Thorsetenberg, Banco do Brasil; Ademir Basso, da Ascar de Concórdia, plá, plá, plá...; Jorge Augusto Muller, do Banco Nacional do Comércio; Rui Oliveira Rigoni, Intecnial... plá, plá, plá... Luiz Álvaro Prataviera, Lurdes Pedron... Caixa Econômica Estadual; Osvaldo Gorski... Banco do Brasil, plá, plá, plá, e plá e plá...!
Chega Meu Deus – chega! Eu não acredito que... que... que tô aqui no meio dessa gente que... que... isso sim é que é geeennte e não um desencaixado como eu. Todo mundo é alguma coisa de importante e eu... um... um o quê? Aonde é que eu andava com a cabeça quando aceitei fazer vestibular? Tanta gente que rodou e eu aqui? – eu pagaria, sim, se eu pudesse eu pagaria para ficar no lugar de um rodado no vestibular – mas não, agora eu estava no brete que nem boi no frigorífico da Cotrel, ou melhor, da Aurora.
- Mas olha só minha gente... que bonito néééé´. Todos já maduros, pais de família, certamente cristãos... e agora aqui – dispostos a um novo desafio... ensinava o ministro de Deus, o professor de Metodologia, Girônimo Zanandréa a quem só faltava um púlpito para comandar o espetáculo... o espetáculo que culminaria com a minha execução na apresentação. E cada vez que seu crucifixo balançava – mais eu me via pendurado na cruz!
Aiaiai – se, se... seeerá que eu co-co-co-me-cocome-cocomeeeço por Adelar, ou por José... ou José Adelar... e o, o, o Ooddyyy – será que eu digo?! Quem é gago sabe que começar com A parece que empaca Não a-a-a-a-av-av-aaavannnça! Que desgraça eu ter passado! E continuava: ‘Me chamo Renault Tedesco e sou da Emater de Gaurama; Claudete Cantelle; Ivone Maier, Benenoy Fish, trabalho um Curtume de Passo Fundo, Adalberto Valentini, engenheiro de Erechim; Vinícius Mário Cesne; Adão de Oliveira Smelindro - Banco do Estado; Abigail Weimann, Secretaria da Fazenda; Zulmiro Zucchi, comerciante; Sérgio Alves Trindade, Caixa Econômica Federal e era só plá, plá, plá, e mais plá, plá, plá...; Sadi Provenzi, Banco do Estado; Sérgio Antonio Vial, Banco do Brasil; Gilson Edy Carraro – diretor do jornal a Voz da Serra... plá, plá, plá, pluuum!
- Olha só que lindo... todos muuuuito bem já encaminhados nesta vida dada por nosso Senhor Jesus Cristo - Senhor Pai que tanto nos ama a todos... pessoas distintas da sociedade local e regional e que estão vindo em busca de mais conhecimentos, demonstrando sua ânsia pelo saber e de se tornarem pessoas mais capacitadas, afinal, a educação está na origem das pessoas e das sociedades de bem e, blá e blá, e mais blá – era mais ou menos o que os meus ouvidos teriam apanhado naquela noite de inesquecível memória. Eu queria saber que horas eram e como mister Bean me esgueirava com o pescoço, com a cabeça, com as orelhas, com os olhos, com o tronco... com o que pudesse tentando ver quanto faltava para bater – mas o meu colega da esquerda não parava de se remexer e o da frente tinha seu relógio de ouro escondido sob as mangas do casaco.
A fila estava terminando. As apresentações da primeira turma do curso de Administração de Empresas do Cese em 1972 estavam chegando ao seu fim e a minha vez, a minha hora; sim, aquela seria definitivamente a minha hora, estava também chegando. Os últimos falavam depressa e a minha vez vinha contra mim como um tsunami. Tu vê e não pode fazer nada. E abrir os braços e esperar o estouro contra o peito, a cara...
Meu coração não batia. Pulava. Eu suava nas mãos e a água me corria pelas pernas. Eu queria rezar – mas não achava o começo. Já ia direto para a ‘...seja feita a Vossa vontade assim na terra... mas livrai-nos do mal amém... amém e amém!’.
Eu queria me ofender – mas nem achava as palavras. Até os palavrões contra mim eu tinha perdido. Minha brincoringa tremia sobre as canelas inundadas e geladas. Eu procurava um papelzinho que não existia no chão, eu fechava, abria e fechava os botões da camisa de casemira que minha mãe fizera, eu arrumava e desarrumava algum fio dos meus cabelos encaixados. Tossia alto, parecia que me afogaria no seco do meu canto de tanto nervosismo. Minha testa e as bochechas eram a faísca de todos os vulcões. Eu estava para morrer, à beira de um colapso e ninguém via nada, ninguém fazia nada. Só podia, pensava... eles queriam que eu morresse ali mesmo e pensando bem, do jeito que eu me via, melhor lugar não havia. Seria ali... lá... aqui no canto do canto do meu canto da sala. A primeira e única morte num canto de sala de aula – abatido, vitimado por uma hecatombe nervosa. De que mais eu morreria? – talvez de nada! E de que mais poderia morrer um nada senão do nada? – era o que todos os meus sinais vitais e espelhos me diziam. Um nada – aqui no meio de tanto. Então – que faleça de um tiro só e acabe de uma vez com esse sofrimento, essa agonia que igual só pode estar na cabeça dos pobres sequestrados do Iraque... enquanto tem cabeça!
- Muuuuuito beeeeeeem... disse o bispo, digo, disse o padre, o Ministro de Deus, o professor Girônimo Zanandréa. E agora – vamos ao último, isso mesmo... nunca, mas nunca alguém fora tão feliz para me definir. Vamos ao último. Lá na última carteira. Quem é aquele menino, aquele rapazote lá? – ao mesmo tempo em que todas cabeças da sala, todos os olhos de Erechim... toda aquela multidão de vencedores se viraram e me acenderam um milhão de lâmpadas e me focaram – me olhando, me mirando, me flechando, me fuzilando com tiros e raios de olhos certeiros e mortíferos como os tomahawk, seria ali e não mais em outro lugar. Minhas orelhas queimavam, a testa tisnava, o suor escorria gelado. Eram todos os contrastes de uma vez só: o gelo se derretendo sobre meu corpo em ardência. Era eu... um nada – numa sala onde todo mundo era muito.
Eu me levantei – sim, eu me lembro, eu consegui me levantar e... e...
disse! Sssiiimmmmm eeeeeeeuuuuuuu diissssssssssseeeeeeeeeeeeeeee!
- Vamos menino, disse o ‘ministro de Deus Girônimo’, enquanto seu crucifixo balançava sobre seu peito e eu juro, eu juro... eu me via crucificado nele.
Pois foi naquela hora que eu senti ser verdadeiro o dito popular que tem certas coisas que a gente parece não suportar, e é justamente nestas horas que nos superamos e tiramos forças sabe-se lá de onde. Só pode ser de Lá... de Cima. Foi nesse trecho da praia da minha vida que eu perdi as pegadas – mas atravessei o pedaço - com certeza, levado nos braços, no colo... Dele.
- Fale menino, diga quem é você, rapaz, inquiriu o professor!
Eu me levantei de onde me julgava pregado. Não sei como – me ergui e até hoje não descobri como, falei. Sim, eu falei.
- Meu nome é José Adelar Ody ... Ôôôdy. Euuuu não sou gerente de nada, não tenho terras, não sou agropecuarista e nem proprietário de nenhuma empresa. Não sou sócio. Não tenho afinidades com patrões. Só tenho o meu serviço... (eu falava sem gaguejar... Seria eu mesmo que falava?) e prossegui: eu trabalho lá no Posto Atlantic do seu Abílio, o seu Abílio Machry... fica ali perto dos trilhos na frente da antiga CEEE.
Maaasssss – eu não trabalho lá nos fundos onde fica o gerente. É mais à frente... mas também não é no escritório... é mais à frente. Mas, também não é no caixa e nem no balcão... nããããããooooo. Eu trabalho de manhã, de tarde, sábado, domingo e feriado, no carnaval, na Páscoa, no Natal e no Ano Novo lá na frente do posto, debaixo de chuva, de sol, de neve. Eu sou especialista em encher tanque de gasolina, ver o óleo, a água da bateria, o óleo do freio, a água do radiador... o aperto da correia! Na cidade ninguém me bate em limpar pára-brisa, posso ensinar como se enxuga um carro (depois de lavado tem que enxugar com pano úmido senão mancha... e depois é só lustrar). Nas horas de folga limpo as mangueiras das bombas com álcool, varro o pátio. Nunca me sento, ajudo a trocar, a desmontar, a consertar e recolocar pneu pequeno ou de caminhão. Tem gente que só calibra comigo. Acho que é questão de confiança. Eu não sou dono de nenhuma empresa, nem sócio ou gerente. Não sou administrador de nada. Lá no posto do seu Abílio eu estou à disposição dos senhores, de todos..., e quem não quiser abastecer ou trocar o óleo ou comprar algum pneu ou mandar lavar o carro... quem não quiser gastar nada... pode passar lá igual que eu passo o melhor ar da cidade no carro, de graça, e no fim fica limpo como se tivesse sido lavado. Sou o melhor passador de ar em carro de Erechim.      Terei o maior prazer em receber todos os senhores lá no meu local de trabalho, porque afinal, ... ‘quem não é o maior, tem que ser o melhor!’ - (este era o mote de referência dos postos Atlantic!).
Quando parei de falar... ou teria sido Ele que falou por mim porque não gaguejei nenhuma vez... a sala explodiu em palmas. Quando me sentei, aí mesmo é que as palmas se levantaram! Até o ministro de Deus, digo, o padre, o professor Girônimo Zanandréa batia palmas... enquanto seu crucifixo de peito até que enfim tinha sossegado e levava outra vez Ele dependurado no maderio de metal (?).
O nada, o último, o pelado, o rapazote, o guaipeca conseguira enfim se apresentar e ainda assim continuava nesta vida. Não tinha sido abatido por nenhum mal súbito como eu vinha prevendo. E nem deu tempo de mais nada para abrir cadernos ou coisa do gênero porque o sinal bateu. Vários daqueles gerentes, donos, sócios, já administradores autodidatas que buscavam a titulação porque já tinham vencido na vida – vieram então falar comigo. Apertei mãos limpas e macias com as minhas cheias de craca de óleo, poeira e diesel...!

Daquela inesquecível noite em diante fui meio que ‘adotado’ pelo restante da turma que me dava carona, falava comigo, me ajudava em contabilidade. Eles que já eram bem resolvidos profissional e economicamente – mas nunca se furtaram em me ajudar e muito. Tenho para com aquela turma e professores uma das gratidões de difícil resgate nesta vida. No ano seguinte, como eu tinha ficado para trás em matemática financeira, acabei tendo aulas com outros amigos, entre eles o Julio Brondani, com quem até debutamos no rádio apresentando um programa na Erechim. Mais tarde, até trabalhei no campus, porque não podia pagar. Passei provas e provas em mimeógrafo, ajudei a montar a biblioteca onde hoje é a assessoria de imprensa, varria a sala, o corredor, o pátio. E foi, para mim, nas dificuldades da Administração, que Jayme Lago, indicou-me para o jornalismo em A Voz da Serra,  de onde parti para a profissão da minha vida.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

O Décimo Homem



1

Existe um filme denominado em português como ‘O décimo homem’ com o grande ator Anthony Hopkins que ilustra com maestria duas idiossincrasias naturais do homem. Refiro-me ao nobre e ao patético. E antes que façam qualquer suposta alusão ao que quer que seja, recomendo desde logo que desarmem os espíritos. Trata-se de valores que podem ser encontrados em qualquer um – basta a circunstância dar as caras.

2

Pois, durante a ocupação de Paris pelos nazistas, um afamado e rico advogado, Louis Chavel, caminha cedinho para seu escritório (Hopkins é claro) quando é, aleatoriamente, apanhado por uma patrulha nazista que saíra às ruas com esse objetivo: prender um punhado de franceses suficiente para encher um caminhão. Tudo por que, se a memória da história não me trai, na noite anterior alguém da resistência matara um nazista. A cada soldado morto – três franceses pereceriam, conforme a obra de Graham Greene.

3

Pois, enquanto tenta argumentar que era um cidadão comum e que não queria nenhum envolvimento com o conflito, (sequer era da resistência e muito menos sabia o que tinha acontecido), o advogado leva uma coronhada na face que o desfigura. Cambaleando é jogado no caminhão junto ao grupo. Todos são levados para uma prisão.

4

Lá, ele ainda tenta argumentar que ocorrera um engano, pois em momento algum ele resistira como outros contra os nazistas – mas tudo em vão. Seus argumentos não importam mais.

5

A surpresa vem quando cada um dos presos recebe um bilhete com um número, se não me engano, e três deles seriam ‘premiados’ com fuzilamento na alvorada do dia seguinte para vingar o nazista morto.

6

Imagine a cena cada um abrindo seu bilhetinho, da vida ou da morte iminente. E eis que a história então relata que o advogado, apavorado, abre e constata que ele fora um dos ‘premiados’ com o bilhete da morte.

7

É aí que entra a nobreza, e antes é claro, o patético. Inconformado, apavorado, totalmente em pânico, ele começa a chorar, gritar e não acredita no que aquela prisão tão arbitrária e fora de cogitação (por sua postura de vida diante do conflito) lhe reservara. Logo ele um homem culto, trabalhador, avesso à qualquer violência.

8

De uma das janelinhas da prisão era possível observar o local das execuções, o que lhe causava não calafrios, mas pânico. E então ele começa a se mostrar, como alguém pode se comportar, numa situação daquelas. Apanhando quase por engano, ao léu, para preencher um número de dez. Ele fora o décimo.

9

Descontrolado, pateticamente, ele começa a oferecer o bilhetinho para outro preso, tentando fazer a troca. Ou seja: ele pegaria o bilhete da salvação de outro qualquer e daria o da “morte’ como retribuição a quem topasse a troca. Ora – um absurdo inverossímil. Quem faria um negócio daqueles? E assim ele vai apelando um a um que daria tudo que tinha lá fora da prisão a quem aceitasse a troca. E dizia o que tinha: uma mansão, bens e muito dinheiro. Daria tudo para quem aceitasse trocar a vida pela morte. Sem dúvida – uma cena patética. Era só olhar o semblante dos demais presos.

10

E eis que entra em ação a nobreza (ou seria a verdadeira identidade do patético), quando num canto, deitado sobre as palhas, tossindo muito, um jovem de talvez uns 23 a 25 anos chama o apavorado advogado com seu bilhete de fuzilamento tremendo entre os dedos.

11

O jovem pede então sobre o que o advogado tem mesmo a lhe oferecer. Este logo ele começa a enumerar tudo, absolutamente tudo que tinha deixado lá fora. Estava disposto a entregar tudo para não ser fuzilado a quem aceitasse o seu bilhete.

12

O jovem então relata o seu lado. Diz que está com uma doença grave, provavelmente terminal, e que se sente arrependido por demais por não ter feito quase nada por sua mãe e irmã. E então lhe ocorrera a incrédula cogitação de redimir-se com ambas. Ele ficaria com o bilhete do fuzilamento que o advogado tirara no ‘sorteio’, mas herdaria os bens.

13

O trato é feito e a pedido do jovem, um documento é rabiscado onde o advogado passa todos os seus bens ao jovem que os repassa automaticamente, tão logo constatado morto, à sua mãe e sua irmã. E isto seria respeitado, pois nada constava contra as duas mulheres.

14

O negócio é fechado.
De manhã autoridades da prisão vêm buscar os portadores dos bilhetes. O rapaz se levanta com dificuldades, entrega o papelzinho e segue para o pátio de onde, logo em seguida, só de ouvem os tiros. Ninguém quis ver a cena.
O advogado chora outra vez, por alivio e remorso – mas mantém sua vida e em poucos dias ou semanas são todos liberados.

15

Livre daquele pesadelo, ele perambula como um excluído para sua mansão, onde já moram a mãe e a irmã do jovem que aceitara morrer por aquilo, no lugar do advogado.

16

Ainda maltratado pela prisão, pelo pesadelo enfim, ele bate à porta, mas não tem coragem de dizer quem é. Jurara que jamais faria isso. Duas mulheres o recebem e contam que ganharam a casa do filho a quem não cansam de elogiar – sem saber das circunstâncias em que tudo aquilo acontecera.

17

Percebendo que o pobre homem estava com fome o convidam para entrar e jantar. O advogado observa o ambiente interno da sua mansão, os móveis finos, os tapetes, a prataria, o piano, enfim, tudo que fora seu até o acaso e a vida falarem mais alto.

18

Encurtando a história, o pobre homem, em todos os sentidos, acaba sendo contratado pelas mulheres para ser uma espécie de zelador da casa, fazendo principalmente serviços de jardinagem e rachando lenha para o rigor do inverno. Limpando, cuidando, preservando às duas mulheres tudo que um dia lhe pertencera, mas que por um ato nobre de um jovem (e bota nobre nisso) e uma postura patética de sua parte (querendo trocar um bilhete de fuzilamento pela vida), dera destinos quase inverossímeis à pelo menos quatro personagens.

19

E assim, há casos em que na vida de alguns, surgem situações que se não são presenciadas ou vividas, são simples e naturalmente impossíveis de serem acreditadas como verdade. E tanto o aparente nobre pode transformar-se num personagem de atitudes patéticas, como o patético pode assumir a condição de grandeza.

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Despedida

Quero aproveitar para despedir-me e agradecer a todos os que me honraram com suas leituras nestes últimos meses. Estou de saída dos veículos de comunicação desta casa – Fundação Ceas (jornal Boa Vista e rádio Cultura). Agradeço a todos os colegas pelo profissionalismo honesto e transparente com os quais pude dividir momentos de intenso trabalho, e também, pela generosidade e prazer da amizade com a qual me premiaram. Conforme argumentação do presidente da Fundação Ceas, a necessidade urgente de cortar custos, entre duas opções – eu fui o 'premiado' e recebi o ‘bilhete’. Compreendendo desde há muito para onde nos encaminhávamos (circunstâncias econômicas do país) e acatando civilizadamente a extensão das fragilidades humanas (sob todos os aspectos), não busquei passar adiante ‘meu bilhete’. Não sou Louis Javel e sairei também desta. A todos minha sincera gratidão, onde a nobreza e a pateticidade também se fazem presentes.