sexta-feira, 3 de abril de 2015

O Décimo Homem



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Existe um filme denominado em português como ‘O décimo homem’ com o grande ator Anthony Hopkins que ilustra com maestria duas idiossincrasias naturais do homem. Refiro-me ao nobre e ao patético. E antes que façam qualquer suposta alusão ao que quer que seja, recomendo desde logo que desarmem os espíritos. Trata-se de valores que podem ser encontrados em qualquer um – basta a circunstância dar as caras.

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Pois, durante a ocupação de Paris pelos nazistas, um afamado e rico advogado, Louis Chavel, caminha cedinho para seu escritório (Hopkins é claro) quando é, aleatoriamente, apanhado por uma patrulha nazista que saíra às ruas com esse objetivo: prender um punhado de franceses suficiente para encher um caminhão. Tudo por que, se a memória da história não me trai, na noite anterior alguém da resistência matara um nazista. A cada soldado morto – três franceses pereceriam, conforme a obra de Graham Greene.

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Pois, enquanto tenta argumentar que era um cidadão comum e que não queria nenhum envolvimento com o conflito, (sequer era da resistência e muito menos sabia o que tinha acontecido), o advogado leva uma coronhada na face que o desfigura. Cambaleando é jogado no caminhão junto ao grupo. Todos são levados para uma prisão.

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Lá, ele ainda tenta argumentar que ocorrera um engano, pois em momento algum ele resistira como outros contra os nazistas – mas tudo em vão. Seus argumentos não importam mais.

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A surpresa vem quando cada um dos presos recebe um bilhete com um número, se não me engano, e três deles seriam ‘premiados’ com fuzilamento na alvorada do dia seguinte para vingar o nazista morto.

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Imagine a cena cada um abrindo seu bilhetinho, da vida ou da morte iminente. E eis que a história então relata que o advogado, apavorado, abre e constata que ele fora um dos ‘premiados’ com o bilhete da morte.

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É aí que entra a nobreza, e antes é claro, o patético. Inconformado, apavorado, totalmente em pânico, ele começa a chorar, gritar e não acredita no que aquela prisão tão arbitrária e fora de cogitação (por sua postura de vida diante do conflito) lhe reservara. Logo ele um homem culto, trabalhador, avesso à qualquer violência.

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De uma das janelinhas da prisão era possível observar o local das execuções, o que lhe causava não calafrios, mas pânico. E então ele começa a se mostrar, como alguém pode se comportar, numa situação daquelas. Apanhando quase por engano, ao léu, para preencher um número de dez. Ele fora o décimo.

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Descontrolado, pateticamente, ele começa a oferecer o bilhetinho para outro preso, tentando fazer a troca. Ou seja: ele pegaria o bilhete da salvação de outro qualquer e daria o da “morte’ como retribuição a quem topasse a troca. Ora – um absurdo inverossímil. Quem faria um negócio daqueles? E assim ele vai apelando um a um que daria tudo que tinha lá fora da prisão a quem aceitasse a troca. E dizia o que tinha: uma mansão, bens e muito dinheiro. Daria tudo para quem aceitasse trocar a vida pela morte. Sem dúvida – uma cena patética. Era só olhar o semblante dos demais presos.

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E eis que entra em ação a nobreza (ou seria a verdadeira identidade do patético), quando num canto, deitado sobre as palhas, tossindo muito, um jovem de talvez uns 23 a 25 anos chama o apavorado advogado com seu bilhete de fuzilamento tremendo entre os dedos.

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O jovem pede então sobre o que o advogado tem mesmo a lhe oferecer. Este logo ele começa a enumerar tudo, absolutamente tudo que tinha deixado lá fora. Estava disposto a entregar tudo para não ser fuzilado a quem aceitasse o seu bilhete.

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O jovem então relata o seu lado. Diz que está com uma doença grave, provavelmente terminal, e que se sente arrependido por demais por não ter feito quase nada por sua mãe e irmã. E então lhe ocorrera a incrédula cogitação de redimir-se com ambas. Ele ficaria com o bilhete do fuzilamento que o advogado tirara no ‘sorteio’, mas herdaria os bens.

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O trato é feito e a pedido do jovem, um documento é rabiscado onde o advogado passa todos os seus bens ao jovem que os repassa automaticamente, tão logo constatado morto, à sua mãe e sua irmã. E isto seria respeitado, pois nada constava contra as duas mulheres.

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O negócio é fechado.
De manhã autoridades da prisão vêm buscar os portadores dos bilhetes. O rapaz se levanta com dificuldades, entrega o papelzinho e segue para o pátio de onde, logo em seguida, só de ouvem os tiros. Ninguém quis ver a cena.
O advogado chora outra vez, por alivio e remorso – mas mantém sua vida e em poucos dias ou semanas são todos liberados.

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Livre daquele pesadelo, ele perambula como um excluído para sua mansão, onde já moram a mãe e a irmã do jovem que aceitara morrer por aquilo, no lugar do advogado.

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Ainda maltratado pela prisão, pelo pesadelo enfim, ele bate à porta, mas não tem coragem de dizer quem é. Jurara que jamais faria isso. Duas mulheres o recebem e contam que ganharam a casa do filho a quem não cansam de elogiar – sem saber das circunstâncias em que tudo aquilo acontecera.

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Percebendo que o pobre homem estava com fome o convidam para entrar e jantar. O advogado observa o ambiente interno da sua mansão, os móveis finos, os tapetes, a prataria, o piano, enfim, tudo que fora seu até o acaso e a vida falarem mais alto.

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Encurtando a história, o pobre homem, em todos os sentidos, acaba sendo contratado pelas mulheres para ser uma espécie de zelador da casa, fazendo principalmente serviços de jardinagem e rachando lenha para o rigor do inverno. Limpando, cuidando, preservando às duas mulheres tudo que um dia lhe pertencera, mas que por um ato nobre de um jovem (e bota nobre nisso) e uma postura patética de sua parte (querendo trocar um bilhete de fuzilamento pela vida), dera destinos quase inverossímeis à pelo menos quatro personagens.

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E assim, há casos em que na vida de alguns, surgem situações que se não são presenciadas ou vividas, são simples e naturalmente impossíveis de serem acreditadas como verdade. E tanto o aparente nobre pode transformar-se num personagem de atitudes patéticas, como o patético pode assumir a condição de grandeza.

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Despedida

Quero aproveitar para despedir-me e agradecer a todos os que me honraram com suas leituras nestes últimos meses. Estou de saída dos veículos de comunicação desta casa – Fundação Ceas (jornal Boa Vista e rádio Cultura). Agradeço a todos os colegas pelo profissionalismo honesto e transparente com os quais pude dividir momentos de intenso trabalho, e também, pela generosidade e prazer da amizade com a qual me premiaram. Conforme argumentação do presidente da Fundação Ceas, a necessidade urgente de cortar custos, entre duas opções – eu fui o 'premiado' e recebi o ‘bilhete’. Compreendendo desde há muito para onde nos encaminhávamos (circunstâncias econômicas do país) e acatando civilizadamente a extensão das fragilidades humanas (sob todos os aspectos), não busquei passar adiante ‘meu bilhete’. Não sou Louis Javel e sairei também desta. A todos minha sincera gratidão, onde a nobreza e a pateticidade também se fazem presentes.