sexta-feira, 29 de maio de 2020

O Sansão e as filhas na Federal



(Nomes e história fictícia. Aparentemente)
Depois do título em cima do time do Lambretinha, nos anos 1960, aquele tinha sido o último ano do Sansão no futebol amador de Erechim. Não dava mais.
Ele já estava com 44 anos e vinha chegando atrasado nas divididas. No seu íntimo, ficou muito penalizado pelo acontecido com o Lambretinha, que depois daquele “choque” contra o Sansão, ficou meio manco. Meio manco - para o resto da vida.
Além do mais a Saletona vinha mais que pedindo, vinha reclamando que o maridão devia dar mais atenção às cinco filhas e ao futuro delas, do que ao miolo da zaga do Acejá.
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O Sansão tinha ciência desta realidade e também tal pre­o­cupação. Às vezes acordava no meio da madrugada, suado e gritando. Nos seus pesadelos via uma ou outra filha em casas de má reputação, ou melhor, de má fama, e isto lhe fazia arder por demais a cicatriz que trazia desde a noite em que conheceu a Saletona, após receber um faconaço que lhe abriu uma brecha desde a testa até o queixo em um baile em Balisa. Ele desejava, ardentemente, uma vida no mínimo digna, para as suas filhas.
Depois de passar um tempo na fábrica de molas do Clari e de trocar manchão de pneu a muque no Posto do Seu Abílio, o Sansão teve outros serviços pesados como os aqui relatados em crônica neste blog, entre as quais, a de instalador de explosivos em tocas nas pedreiras de Itá e Machadinho.
Diante da sua não aprovação no concurso da BM, e vendo que já não dava mais para viver dos bichos com as vitórias do Acejá, decidiu aceitar um emprego que para ele não tinha nada de mais, e era como um outro qualquer, desde que lhe permitisse botar o pão sobre a mesa da sua esposa, Saletona, e as filhas do casal. O Sansão assumiu então a condição titular de lavador de morto no necrotério.
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As meninas que haviam feito o primário no Campos Sales e que terminaram o ginásio e o 2º grau – duas o Científico e três o Clássico -, no velho Mantovani, jamais conseguiram entrar numa faculdade. Tentaram a UFSM e as federais de Pelotas e Rio Grande, mas nunca tiveram retorno das notas. Nas particulares, tentaram, mas também se deram mal. Uma delas até foi chamada num listão de suplente na URI – mas, feitas as contas não entrou porque o Sansão não podia pagar. Ademais – bolsa do ProUni, não se sabe por que cargas d’água, também não tivera a chance de conquistar.
Mas uma luz luziu no fundo do túnel da vida do Sansão, quando “os movimentos sociais” de Campo Pequeno anunciaram para delírio da galera excluída, como a de Sansão por exemplo, que até que enfim, agora sim a cidade teria a sua Universidade Federal. Aquela notícia era a redenção para o futuro da família de Sansão; sim, porque num sábado já perdido no tempo, na Maurício Cardoso, excluídos da Via Campesina, do MAB, da Pastoral, excluídos do MST e dos “beira trilhos”, enfim, todos devidamente enfileirados e bem treinados, em silêncio, acenando bandeirinhas e sob bonés da exclusão, seguiam um carro de som embalado por discurso castro/chavista, e violão, gritando palavras de ordem de que agora sim estaria chegando a universidade dos pobres, dos marginalizados, dos esquecidos, dos, dos, dos... excluídos. Ao menos era isso que se entendia...
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No primeiro domingo seguinte à notícia que viera de Brasília onde o presidente Lula assinara a Universidade, o Sansão decidiu festejar, sim porque, conforme os líderes dos movimentos sociais alardeavam, agora haveria universidade para os excluídos, e então encomendou duas galinhas recheadas no Seco e foi buscar de bicicleta um garrafão de vinho, ele mesmo, na saída para Cotegipe lá no parreiral do Slongo. Metade o Sansão bebeu puro e o resto foi para fazer aquele suco que seria o antecessor do KSuco - vinho, água e açúcar. O que sobrou foi para o sagu.
O Sansão até ligou para deputados que juravam há anos conseguir alguma bolsa ou coisa e tal para as meninas, avisando que se ocupassem de outros afazeres, por certo intensos e de suor aos ilustres representantes do povo; pois, com a Federal em Erechim, a agonia da vida sem universidade estava no fim. Graças a Deus e a essa gente dos movimentos sociais sócio-socialistas - todos cheios de boa intenção -, os filhos dos excluídos de todos os governos, agora sim, viam um futuro com futuro. Não ficariam só com o 2º grau e fazendo faxina. Seriam advogados, agrônomos, enge­nhei­ros, médicos, cientistas...!  
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Bota, antigo observador da cena erechinense de há muitos anos, e amigo fraterno da família do Sansão, não obstante, liga-me com elevada preocupação no meio da noite para confirmar uma informação que teria feito o Sansão bufar, como nos tempos em que deixava a grande área para caçar o Lambretinha na ponta direita colocando fim ao carnaval que o ponteirinho ensaiava aprontar.
Bota queria saber se era verdade o que começara a ouvir: que a Federal não significava exatamente garantia de vaga. A vaga ficaria sujeita ao desempenho no Enem. Ou seja: não bastaria ter fome para ter acesso ao mocotó. Seria preciso apresentar creden­ciais de mérito e é aí que a ficha do Sansão caiu e está rodeando até agora - não que suas filhas não tivessem. Mas era diferente do que entendera.
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P.q.p. – teria esbravejado o Sansão quando ouviu lá no Redenção no seu radião de pilhas o comentário de colegas da época, dando conta que entrar na Federal não seria bem como ele, a Saletona e as filhas tinham entendido: “má vai tê quê fazê enxame, então?”, gritou, perguntando - o Sansão que trabalhava na ampliação do poço negro da casinha que ganhava de tempos em tempos um puxadinho.
A Saletona, que também tinha ouvido na pia da cozinha a mesma informação, saiu porta afora ordenando a Sansão que ele tratasse de buscar mais informações sobre o assunto, pois se era assim como a rádio agora dizia, então, entrar na Federal de Erechim seria a mesma dificuldade que entrar na Federal de Santa Maria, de Pelotas, de Rio Grande, na Ufrgs... 
- Nego, ô nego, gritou a Saletona da soleira da varanda dos fundos. “Tá me ouvindo, amor?”. Metido num buraco de dois metros, o Sansão largou a picareta e respondeu. “o que foi ô Sále”, ele não gostava - não, não gostava é pouco; ele tinha ódio, tinha verdadeiro pavor da terminologia “tona”, à sua Salete de 84 quilos, e por isso decidiu abreviar para Sále. “Tão dizendo na rádio que tem que fazê enxame pra entrá na Federal”, gritou. “Tu sai já daí e vai vê se isso é assim mesmo ou se tamém tão dando na rádio - contra a Federal!”.
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Sansão largou o poço negro pela metade e, como o seu celular estivesse sem crédito, pegou um ônibus circular e se mandou para o centro da cidade. Mas isto já seria demais, para a frustração dos seus mais legítimos sonhos, arquitetava. Como as suas filhas, já em idade de curso superior, entrariam na Federal de Erechim se teriam de disputar as vagas com os “cola fina”, com os ricaço, com os mais bem preparados daqui, dali, de lá, de sabe Deus de onde essa gente que não entrara nas outras Federais... vão descer de avião aqui (não – de avião não – Erechim nem sabe o que é esse bicho!), ou chegar de carrão... “Como as guria vão se ombrear com essa gente que pode até ter feito cursinho...” – era o que o Sansão ia pensando a cada parada que o urbano fazia e mais e mais gente entrava no ônibus.
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Não. Aquilo não podia ser verdade. Será que depois de toda a mobilização daquela gente da Via, do MST, do MAB & Cia., gente como a gente, tão sem interesse que não o superior coletivo, será que a Federal que “tá vindo, que tâmo conquistando, também é pra ricaço estudá? Proque não faiz de veiz uma faculdade, de fato e de direito, pra gente que nem nóis!”, perguntava-se Sansaão. E lembrou-se:  “gente que nem aquele Ody, que tamém veio lá debaxo, e que pra estudá no antigo Cese (Centro de Ensino Superior de Erechim), virava as tarde passando prova e prova nos mimeógrafo pros professor, arrumava livro numa salinha pra fazê uma biblioteca (a primeira na vida da futura URI), recolhia folha, lixo e varria tudos os pátio do Cese...”, era o que fazia ferver a cabeça do Sansão.
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Tenso e quase explodindo, ao passar pela roleta, uma moe­dinha de dez centavos lhe caiu da mão quando ia pagar a passagem. Ao abaixar-se para apanhá-la, sentiu que a sua calça apertada tinha sofrido um creeeeeeeeeeeccccccccccc e rasgara. Quase não se notava, principalmente se não se olhasse, e sem pensar duas vezes evitou a Maurício Cardoso. Sempre com uma das mãos atrás como se estivesse mexendo num bolso ou arrumando a calça, desceu pela Argentina ao lado do Posto do Pituco e entrou pela Aratiba. Precisava chegar o mais depressa possível por causa da calça rasgada no rego e, por primeiro, para desfazer a dúvida com alguém do Sutraf, que tanto se empenhora pela Universidade Federal em Erechim.
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Mas, e se fosse mesmo como tinham dito na rádio, bem daí, a Federal que o Sansão sonhava e saudava, não era bem aquela Federal para a qual imaginava que as suas filhas podiam estar habilitadas. Ele queria desfazer essa  dúvida que lhe assaltava aquele dia e a própria vida, porque, de assalto em assalto, dividia-a em preocupações noite adentro, deitado ao lado da sua Sale(tona) na cama de segunda mão - que comprara do cunhado.
E numa noite daquelas, enquanto o casal falava sobre a vida de ambos preocupados com o futuro das filhas, um clarão rasgou por dentre uma das frestas do quarto, onde o rejunte não havia sido colocado, e Sansão teve a certeza de que se fazia sim uma luz, não era ainda a do sol que ele tanto esperava, mas apenas, um rasgo da lua que lutava contra nuvens impacientes no céu.
 - Então vão fazê mesmo um enxame pra vê quem pode entrá! E pensei que era só ir lá e mostrá que não tinha condição de pagá – lamentou, Sansão. “É, nego, pobre quando ganha entrada pro circo, pode contá que a lona vai pegá fogo! Que nada nego, o lado bão da escola é o de fora!”, ajuntou a Salen(tona). E juntos adormeceram e sonharam o mesmo sonho: “nem tudo que inclui você, quer dizer que você está incluído”. E sobre isso passaram dias e anos pensando. Sim, porque, grande parte dos ricos da cidade não passaram por uma Federal?

terça-feira, 19 de maio de 2020

URI – esperança materializada sem mágica!

Glenio Renan Cabral, Mara Regina Rösler e Cleo Joaquim Ortigara - o Grupo Tarefa - Crédito: Arquivo Pessoal


URI – esperança materializada sem mágica!



19 de maio. Aniversário da URI. 28 anos. Parabéns.
Qual foi o prefeito que mais contribuiu para o desenvolvimento do Alto Uruguai, do Médio Alto Uruguai, das Missões e de um pedaço da região Central do Estado?
Na região de Erechim, por exemplo, nos queixamos de não contarmos há muitos anos com um deputado federal. Mas, quando os tivemos, que substanciais conquistas nos foram legadas para melhoria da vida aqui pelo chapéu do Rio Grande!?
Não, não será na área política que iremos encontrar a alavanca fundamental que deu vida nova, ou quem sabe, que sinalizou com esperança de dias melhores, a quem se cansara de debater-se em queixas generalizadas contra o esquecimento do Estado.
A pobreza econômica e social, especialmente esta, indicava que algo estava gravemente em dissintonia, porquanto raízes étnicas bem fundas e, de boa espécie, acalentavam em caldo de uma miscigenação muito plural - bem acima do que se poderia supor -, por dias melhores a cada uma das suas principais cidades, como Erechim, Frederico Westphalen, Santo Ângelo e, mais tarde, incluindo-se Santiago, Cerro Largo e São Luiz Gonzaga.
E foi na seara da educação - através de uma espécie de “grito de independência”, que a barragem que insistia em segurar no mais completo esquecimento a região quase  abandonada, sob o guarda-chuva DGE – 38, que ela própria reagiu e começou a mostrar que não dava mais para segurar tanta “água” (problemas) represada.
Os anos 1990 ainda não haviam chegado, quando a semente de união do tripé Erechim (Fapes), Frederico Westphalen (Fesau) e Santo Ângelo (Fundames), foi deitada no solo dessas três comunidades com o fito de constituir uma só Instituição de Ensino Superior (IES), uma Universidade.
Quem conhece o mundo das negociações, das interações sócio-culturais e dos relacionamentos humanos, onde brotam especificidades pessoais de todas as sortes e de todos os azares; pode fazer uma vaga ideia do que acontece num período aproximado de cinco anos para que um sonho – vire realidade.
Este processo de nascença de uma instituição como a que se desenvolvia no coração e mentes de alguns visionários, que reuniu lideranças das mais diferentes áreas, de cidades distantes e de IES que já tinham até ali sua própria história – transformou-se (ou melhor seria – foi transformado) numa esperança pensada, projetada, plantada, amplamente debatida e conquistada, por um punhado bem grande de lideranças políticas, econômicas, religiosas, sociais e, em especial, educacionais.
É de se imaginar o desafio que tiveram aqueles que costuraram a construção de um projeto sólido, único e de caráter insuspeito, sem ruídos ou com tiras soltas, para assim, levá-lo e apresentá-lo em Brasília. Era o primeiro grande passo: a Carta Consulta.
Pense numa reunião de condôminos.
Pense numa reunião de qualquer partido político.
Pense numa reunião de partidos políticos para formar um bloco.
Pense numa reunião familiar com vistas a decidir sobre quem vai cuidar do pai ou da mãe.
Pense na mesma reunião familiar com vistas à herança? 
Olha só o que se discute sobre o Covid 19 – isolamento vertical ou horizontal?
Distanciamento social?
Cloroquina ou...?
Vamos liberar partes, setores, áreas ou tudo antes que a economia nos afunde no pântano da desgraça?
Pense agora em Fapes, Fesau e Fundames, tendo de abrir mão de seus patrimônios, de uma história, de uma garantia (não se sabe até onde iria, mas enfim), para fazer surgir uma outra, uma nova Fundação!
Seria um exagero comparar a missão que os “costureiros” que lideraram o processo de confecção real da FuRI e URI (Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões) com os 12 trabalhos de Hércules.
No entanto, considerando que uma está no campo da mitologia e a outra no mundo de carne e osso, é possível, e até com boa dose de razoabilidade, admitir que os trabalhos reservados a quem atuou na linha de frente, foram algo sim, como os 12 destinados à Hércules.
Quem tem dúvida – coloque aí na sua análise de avaliação, a consideração do que a mente humana é capaz. Ou seja – boa parte do que se projetava e se movimentava na vanguarda com vistas à criação de uma única IES, nem sempre era peça aplaudida e reverenciada.
Lembro aqui do dia em que a picareta fez o primeiro buraco para erguer o Polo de Cultura. Um sonho do visionário Jaci José De Lazzari. No entanto, às minhas costas, um reduzido grupinho de observadores não se segurava: “esse Jaci é mesmo louco. Quando bota uma idéia na cabeça...”. Anos mais tarde, vi muitos dos críticos da inovação – discursando no palco do terceiro andar do Polo de Cultura, hoje incorporado ao Patrimônio Histórico e Cultural do Estado.
O projeto de Universidade que a região projetara por meio de algumas cabeças, e que acabaria sendo referendada, fugia aos modelos tradicionais, porquanto trazia na sua testa e no seu ventre um compromisso inarredável com as comunidades que lhe emprestaram suas Fundações Educacionais.
Ademais, o ensino, a pesquisa e a extensão, patrocinados pela nova instituição, teriam como endereço central o interesse comunitário, os desafios comunitários e as vivências comunitárias – buscando minimizar suas mazelas e potencializar suas virtudes.
O objetivo, enfim, era injetar sangue novo, doses de ânimo numa auto-estima depressiva e revigorar a vida no seio de regiões aparentemente divorciadas geográfica e culturalmente – permitindo, como disse; o nascer de um novo porvir em meio a um torrão gaúcho abandonado no seu todo pelo Estado. Talvez se salvasse aí a produção primária, mas mesmo assim, a iniciativa primeira era localista.
Sugiro um exercício fácil e prazeroso.
Pense em como era Erechim antes e depois da URI.
O que eram Frederico Westphalen, Santo Ângelo e, mais tarde, incorporada a “terra dos poetas”, Santiago, e, mais tarde ainda, Cerro Largo e São Luiz Gonzaga.
O que era e o que é o setor imobiliário!
O setor de serviços!
O próprio comércio e a indústria!
Vivemos tempos de crise, sim, vivemos
– mas abstraia o câmpus da URI nas cidades onde eles estão e repense estes tempos de tribulações, de agruras, de colapso...
O que seria dessas pobres, esquecidas e até então – quase desconhecidas terras!
Por estas bandas faziam filhos para a escola pública, que depois pegavam suas malinhas de pau ou pano e rumavam para Santa Maria ou Porto Alegre e – quantos voltaram para repassar o que aprenderam? E sejamos honestos: tudo às custas do pai e família que na roça iam tirar o sustento do filho em grande centro.
Com a URI – se constata que os ganhos não são apenas os formandos que cursaram o ensino superior perto de seus familiares.
Não é apenas um naco bem representativo desse número – que uma vez formado, em sua cidade ou região ficou para fazer sua vida profissional e contribuir para o desenvolvimento de onde se criou.
Não é apenas o campo de trabalho que se abriu para milhares de professores e funcionários.
Não é só a multiplicação da pesquisa, das ações de extensão sem custo às populações mais carentes ou a elevação do nível educacional, profissional e cultural neste pedaço de chão gaúcho ignorado pelo Estado por décadas.
Junto com a Universidade, veio e desenvolveu-se, o senso de que era, e é sim possível, dar vida própria ao desenvolvimento regional sustentável; bem do jeito como todos aqueles que deram sua parcela positiva de construção da URI, no modelo comunitário, o fizeram, e olha - bem antes de 1992.
E sob este aspecto, como é absolutamente impossível nominar a todos com suas contribuições, mas até em reconhecimento a esses todos – entendo que se tudo pudesse ser sintetizado, reunido ou representado em algumas pessoas, destacaria o Grupo Tarefa que comandou todo o processo, levando à criação da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, a URI.
Cleo Joaquim Ortigara (Frederico Westphalen - a tenacidade), Mara Regina Rösler (in memoriam - Santo Ângelo - a doçura) e Glenio Renan Cabral (Erechim - o equilíbrio), são sim, uma espécie de pais da URI, pela singela razão de que ninguém mais do que eles, dedicou tanto tempo, denodo, inteligência e esforço pessoal na construção desta obra que por isto mesmo, não é filha de um esforço ilusionista, nem do acaso e muito menos de um lance oportunista ou de sorte. Importa ainda observar que Cleo Ortigara e Mara Regina chegaram a ocupar o cargo de reitor da Universidade. Glenio Cabral, sempre o solícito chefe de gabinete. Tenho para mim, que só não foi reitor porque nunca cogitou dessa possibilidade. Mas com sua visão de bom senso e equilibro pavimentou uma relação de muito bom trânsito em todos os câmpus. 
Estas três pessoas, em primeiro plano, conviveram de perto com disposições proativas de muitos e nem tanto de outros, ao mesmo tempo em que devotaram-se ao convencimento, sem espaço para respostas negativas, junto a receosos ou descrentes diante da novidade do desconhecido. Era preciso compreender realidades distintas para promover a conciliação, sem ferir suscetibilidades e, ademais, sem perder pedaços do projetado pelo caminho. E isto exigia uma enorme capacidade de entendimento do outro, uma hercúlea determinação e uma inteligência acima da média – onde às vezes ceder um passo para ali adiante caminhar dois -, era um desafio que só podia ser entendido e assimilado na sua integralidade por quem tinha tudo na cabeça. Por quem compreendia com discernimento pleno por onde, em que velocidade e como se devia, e podia caminhar, como disse – sem perder peças da essência no percurso. E percebam - em um tempo ainda não apresentado ao mundo das novas tecnologias que viriam a seguir, o que, obviamente, cortaria caminho e aliviaria por demais do esforço de cada um e coletivo.
Não descarto que a orquestração de um projeto tão amplo e complexo, não tenha por vezes, lambido a linha divisória do abandono de tudo – considerando-se as particulares humanas, sempre tão imprevisíveis e suscetíveis às surpresas, especialmente quando sob o patrocínio da desculpa do risco de trocar o certo pelo duvidoso. Nestes casos, quase sempre, a motivação tem por pai a ignorância.
Por isso mesmo, ninguém mais do que eles, merecem quase na beira de três décadas desta construção, um reconhecimento mais efetivo e concreto de quem hoje tem a responsabilidade de levar adiante o sonho de muitos, a ação de outros tantos e a experimentação, ou até mesmo a redenção, de mais de cem municípios do Rio Grande do Sul – com a implantação de uma Universidade em área onde já ouvi, como por aqui, “lá nas grotas”.
Se esta ausência de homenagem já se alonga no tempo e, ainda não foi percebida por quem devia ter tal gesto de grandeza, em elevação à simples liturgia que o cargo lhe outorga, por que não; tal uma iniciativa não brotar em algum poder público das comunidades aonde a URI já pulsou e panoramas alterou!? 
Por isso desejo reforçar: não, nenhum político, nenhum homem público, nenhuma personalidade, nenhuma instituição esportiva ou social, nenhuma indústria, nenhum segmento econômico – ressalte-se em tempo, isoladamente – contribuiu mais que a URI nestes últimos 28 anos para o desenvolvimento de regiões até então – relegadas a terceiro plano. Nos meus 21 anos de URI, certa feita, encontrei 117 municípios que eram diretamente atendidos pela Universidade.
Reconheço que a instituição não é um brinco ou um diamante. Diria mais – hoje em dia, longe disso. Quem observa, sabe que a Universidade já foi mais do que é, considerando a conjuntura externa e, por que não, observando-a a partir das próprias entranhas.
Mas para uma área geográfica que em meio às próprias dificuldades sempre acalentou potencialidades que ainda estavam a ser melhor exploradas,  a esperança materializada através de uma Universidade, foi uma obra e tanto – para não dizer a maior de todas em seu próprio seio. Sim, porque pelo próprio objetivo da instituição, outras obras se fizeram, e como uma cadeia de serviços, a multiplicação do desenvolvimento se tornou mais factível. 
Se a reposta que hoje a Universidade dá às suas comunidades está à altura das necessidades das mesmas, ou do que se sonhou e projetou, difícil confirmar sem equívoco. Na minha honesta observação, fruto de quem ouve de forma insuspeita e independente como sempre o fiz – não.
O certo é que se um navio ou um avião não pode desconsiderar a necessidade de uma eventual correção de rota, por razão imprevisível, circunstancial ou nem tanto assim; os novos ventos que renovam e refrescam o mundo – devem ser aproveitados para remover eventuais teias de aranha que insistem em agarrar-se a empreendimentos que não podem deixar de se renovar sob pena de colocar navios à deriva, ou aviões a planar até encontrarem seu fim. E isto ninguém de ontem, de hoje ou de amanhã merece, sem deseja, nas comunidades, que para se fazer em vida, respirando – teve de contornar montanhas, as mais altas, íngremes, escarpadas e, por vezes; encobertas por lisas rochas de soberba e de vaidade.
De qualquer sorte, quem tem por fim moldar massas encefálicas supõe-se dela não sentir falta. Por isso mesmo é de saudar mais um aniversário da URI, até com uma pitada de otimismo. Por respeito à inteligência - reverenciar aqueles que a sonharam e a tornaram realidade. E desejar boa sorte a quem hoje tem a responsabilidade de conduzi-la. A URI foi concebida não só para ter vida longa. Mas que a vida longa se dê com qualidade de vida. E em sendo assim, elevem-se todos, às exigências com altivez, entrega, inteligência e humildade, como o fizeram aqueles que abriram o caminho desta instituição que mudou o cenário educacional, econômico e social em diferentes regiões do Estado – unindo-as com um sentimento de regionalização, entidade única – mas multicampi – e comunitária. Que este tripé produza novas lideranças nas suas comunidades. Que é o seu seio. E, preferencialmente, sem rompantes espetaculosos de magia – mas com a humildade e a determinação dos primeiros e com os pés firmemente agarrados às suas origens por mais plurais que sejam. Parabéns e boa sorte a todos.  


domingo, 3 de maio de 2020

Me senti meio Cardoso

Noronha, Paulinho, Maneco, Garcia, Tiassa e Fossatti; Moacyr, Índio, Tomasi, Zé Carlos e Cardoso (Atlântico/1962)










1
Quando o Atlântico era mais um clube de futebol e menos uma  marca de marketing, lá pelos anos 1960, no ataque infernal havia um que se chamava Cardoso. Para perfumar a memória – Tomasi, Índio, Cardoso e Carioca.
Pois, o Cardoso fazia lá seus golzinhos, mas era um jogador meio acomodado em campo. Corria pouco, combatia quase nada. Nos treinos então – era a preguiça em carne e osso. Ele e o Índio. Sei, porque acompanhei 10 anos da vida diária do Atlântico no gramado. Não perdia coletivo, nem “dia de física”.
Se não me engano naquele inesquecível Atlântico 6, Lajeadense 5 – o Cardoso cansou de bater pênaltis. Tinha a seu favor, a sua cara e o seu jeito de gozador. O grupo amava o Cardoso – grande carteador nas concentrações, era o que se dizia. Sempre tinha uma saída hilária para uma situação. Enfim – gente boa.
2
Quando o time andava mal e não fazia gols – a torcida pedia a saída de um e, geralmente, sobrava para ele, o Cardoso, pois afinal, ponta esquerda só tinha um, o Carioca; o Tomasi corria por ele, pelo Cardoso e por meio time, e o Índio, bem, o Índio era lento, também não marcava ninguém; mas era o Índio – o Romário do Atlântico. Se pudessem trocar dez – que trocassem, menos o Índio.
Pois, então sobrava para o Cardoso. Ele meio que se arrastava para sair e se deixar cair como um saco de batatas sobre o banco de reservas. Dali só sairia com alguém ajudando.
Curiosamente, porém, sem ele o time parecia (e não só parecia como era verdade) render ainda menos.
3
Os gols só não saiam – como as chances diminuíam e, não durava muito, lá brotava na social verde-rubra: “Bota o Cardoso – ô treinador burro. Ele não corre, mas sempre tá no lugar certo. Segura a zaga. Não adianta o Tomasi cruzá e só tem o Índio lá dentro. Ô trenero burro, animal, boi de bota... bota o Cardoso aí..p.q.p.”!
O Cardoso só dava uma olhadinha  para trás e com o seu cabelo a “la Burt Lancaster” – parecia com uma risadinha - mais malandro do que nunca. “Haaaaa... me botaram no banco? - me vaiaram... e agora gritam por mim... Que maravilha. Querem ´o véio!’.”
4
O Cardoso era um daqueles casos onde ele mais notado, se tornava ainda mais importante quando não estava no time, do que quando era escalado. Podia ser melhor com eles, sim;  mas era – péssimo sem ele. Sentiam sua importância quando botavam outro no seu lugar. Quando ele estava na reserva.
Sem o Cardoso, lento e quase parando, o Atlântico não era o mesmo. Até o Índio, assim parecia, jogava menos. E jogava menos mesmo.
Mas ele tinha virtudes: sabia se colocar. Sabia bater na bola parada e, principalmente, em movimento. Tinha senso de colocação e tempo de bola. E isso fez dele um atacante que coube, sim, na linha de frente do grande time do Atlântico do início dos anos 1960.
Pois, nesse tempo que fiquei sem escrever – me senti meio Cardoso!