(Nomes e história fictícia.
Aparentemente)
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Depois do título em cima do time do Lambretinha, nos anos 1960, aquele tinha sido o
último ano do Sansão no futebol amador de Erechim. Não dava mais.
Ele já estava com 44 anos e vinha
chegando atrasado nas divididas. No seu íntimo, ficou muito penalizado pelo
acontecido com o Lambretinha, que depois daquele “choque” contra o Sansão,
ficou meio manco. Meio manco - para o resto da vida.
Além do mais a Saletona vinha mais que pedindo,
vinha reclamando que o maridão devia dar mais atenção às cinco filhas e ao
futuro delas, do que ao miolo da zaga do Acejá.
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O Sansão tinha ciência desta realidade e também tal preocupação. Às vezes acordava
no meio da madrugada, suado e gritando. Nos seus pesadelos via uma ou outra
filha em casas de má reputação, ou melhor, de má fama, e isto lhe fazia arder
por demais a cicatriz que trazia desde a noite em que conheceu a Saletona, após
receber um faconaço que lhe abriu uma brecha desde a testa até o queixo em um
baile em Balisa. Ele desejava, ardentemente, uma vida no mínimo digna, para as
suas filhas.
Depois de passar um tempo na fábrica de
molas do Clari e de trocar manchão de pneu a muque no Posto do Seu Abílio, o
Sansão teve outros serviços pesados como os aqui relatados em crônica neste
blog, entre as quais, a de instalador de explosivos em tocas nas pedreiras de
Itá e Machadinho.
Diante da sua não aprovação no concurso
da BM, e vendo que já não dava mais para viver dos bichos com as vitórias do Acejá,
decidiu aceitar um emprego que para ele não tinha nada de mais, e era como um
outro qualquer, desde que lhe permitisse botar o pão sobre a mesa da sua
esposa, Saletona, e as filhas do casal. O Sansão assumiu então a condição
titular de lavador de morto no necrotério.
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As meninas que haviam feito o primário no Campos Sales e que terminaram o ginásio e o
2º grau – duas o Científico e três o Clássico -, no velho Mantovani, jamais
conseguiram entrar numa faculdade. Tentaram a UFSM e as federais de Pelotas e
Rio Grande, mas nunca tiveram retorno das notas. Nas particulares, tentaram,
mas também se deram mal. Uma delas até foi chamada num listão de suplente na
URI – mas, feitas as contas não entrou porque o Sansão não podia pagar. Ademais
– bolsa do ProUni, não se sabe por que cargas d’água, também não tivera a
chance de conquistar.
Mas uma luz luziu no fundo do túnel da vida do Sansão, quando “os movimentos
sociais” de Campo Pequeno anunciaram para delírio da galera excluída, como a de
Sansão por exemplo, que até que enfim, agora sim a cidade teria a sua
Universidade Federal. Aquela notícia era a redenção para o futuro da família de
Sansão; sim, porque num sábado já perdido no tempo, na Maurício Cardoso,
excluídos da Via Campesina, do MAB, da Pastoral, excluídos do MST e
dos “beira trilhos”, enfim, todos devidamente enfileirados e bem treinados, em
silêncio, acenando bandeirinhas e sob bonés da exclusão, seguiam um carro de
som embalado por discurso castro/chavista, e violão, gritando palavras de ordem
de que agora sim estaria chegando a universidade dos pobres, dos
marginalizados, dos esquecidos, dos, dos, dos... excluídos. Ao menos era isso que se entendia...
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No primeiro domingo seguinte à notícia que viera de Brasília onde o presidente Lula
assinara a Universidade, o Sansão decidiu festejar, sim porque, conforme os
líderes dos movimentos sociais alardeavam, agora haveria universidade para
os excluídos, e então encomendou duas galinhas recheadas no Seco e foi buscar
de bicicleta um garrafão de vinho, ele mesmo, na saída para Cotegipe lá no
parreiral do Slongo. Metade o Sansão bebeu puro e o resto foi para fazer aquele
suco que seria o antecessor do KSuco - vinho, água e açúcar. O que sobrou foi
para o sagu.
O Sansão até ligou para deputados que
juravam há anos conseguir alguma bolsa ou coisa e tal para as meninas, avisando
que se ocupassem de outros afazeres, por certo intensos e de suor aos ilustres
representantes do povo; pois, com a Federal em Erechim, a agonia da vida sem
universidade estava no fim. Graças a Deus e a essa gente dos movimentos sociais
sócio-socialistas - todos cheios de boa intenção -, os filhos dos excluídos de todos os governos, agora sim,
viam um futuro com futuro. Não ficariam só com o 2º grau e fazendo faxina.
Seriam advogados, agrônomos, engenheiros, médicos, cientistas...!
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Bota, antigo observador da cena erechinense de há muitos anos, e amigo fraterno da
família do Sansão, não obstante, liga-me com elevada preocupação no meio da
noite para confirmar uma informação que teria feito o Sansão bufar, como nos
tempos em que deixava a grande área para caçar o Lambretinha na ponta direita
colocando fim ao carnaval que o ponteirinho ensaiava aprontar.
Bota queria saber se era verdade o que começara
a ouvir: que a Federal não significava exatamente garantia de vaga. A vaga
ficaria sujeita ao desempenho no Enem. Ou seja: não bastaria ter fome para ter
acesso ao mocotó. Seria preciso apresentar credenciais de mérito e é aí que a
ficha do Sansão caiu e está rodeando até agora - não que suas filhas não tivessem. Mas era diferente do que entendera.
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P.q.p. – teria esbravejado o Sansão quando ouviu lá no Redenção no seu radião de
pilhas o comentário de colegas da época, dando conta que entrar na Federal não
seria bem como ele, a Saletona e as filhas tinham entendido: “má vai tê quê
fazê enxame, então?”, gritou, perguntando - o Sansão que trabalhava na
ampliação do poço negro da casinha que ganhava de tempos em tempos um
puxadinho.
A Saletona, que também tinha ouvido na
pia da cozinha a mesma informação, saiu porta afora ordenando a Sansão que ele
tratasse de buscar mais informações sobre o assunto, pois se era assim como a
rádio agora dizia, então, entrar na Federal de Erechim seria a mesma
dificuldade que entrar na Federal de Santa Maria, de Pelotas, de Rio Grande, na
Ufrgs...
- Nego, ô nego, gritou a Saletona da soleira
da varanda dos fundos. “Tá me ouvindo, amor?”. Metido num buraco de dois
metros, o Sansão largou a picareta e respondeu. “o que foi ô Sále”, ele não
gostava - não, não gostava é pouco; ele tinha ódio, tinha verdadeiro pavor da
terminologia “tona”, à sua Salete de 84 quilos, e por isso decidiu abreviar
para Sále. “Tão dizendo na rádio que tem que fazê enxame pra entrá na Federal”,
gritou. “Tu sai já daí e vai vê se isso é assim mesmo ou se tamém tão dando na
rádio - contra a Federal!”.
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Sansão largou o poço negro pela metade e, como o seu celular estivesse sem crédito, pegou
um ônibus circular e se mandou para o centro da cidade. Mas isto já seria
demais, para a frustração dos seus mais legítimos sonhos, arquitetava. Como as
suas filhas, já em idade de curso superior, entrariam na Federal de Erechim se teriam
de disputar as vagas com os “cola fina”, com os ricaço, com os mais bem
preparados daqui, dali, de lá, de sabe Deus de onde essa gente que não entrara
nas outras Federais... vão descer de avião aqui (não – de avião não – Erechim
nem sabe o que é esse bicho!), ou chegar de carrão... “Como as guria vão se ombrear
com essa gente que pode até ter feito cursinho...” – era o que o Sansão ia
pensando a cada parada que o urbano fazia e mais e mais gente entrava no
ônibus.
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Não. Aquilo não podia ser verdade. Será
que depois de toda a mobilização daquela gente da Via, do MST, do MAB &
Cia., gente como a gente, tão sem interesse que não o superior coletivo, será
que a Federal que “tá vindo, que tâmo conquistando, também é pra ricaço estudá?
Proque não faiz de veiz uma faculdade, de fato e de direito, pra gente que nem
nóis!”, perguntava-se Sansaão. E lembrou-se:
“gente que nem aquele Ody, que tamém veio lá debaxo, e que pra estudá no
antigo Cese (Centro de Ensino Superior de Erechim), virava as tarde passando
prova e prova nos mimeógrafo pros professor, arrumava livro numa salinha pra
fazê uma biblioteca (a primeira na vida da futura URI), recolhia folha, lixo e
varria tudos os pátio do Cese...”, era o que fazia ferver a cabeça do Sansão.
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Tenso e quase explodindo, ao passar pela
roleta, uma moedinha de dez centavos lhe caiu da mão quando ia pagar a
passagem. Ao abaixar-se para apanhá-la, sentiu que a sua calça apertada tinha
sofrido um creeeeeeeeeeeccccccccccc e rasgara. Quase não se notava,
principalmente se não se olhasse, e sem pensar duas vezes evitou a Maurício
Cardoso. Sempre com uma das mãos atrás como se estivesse mexendo num bolso ou
arrumando a calça, desceu pela Argentina ao lado do Posto do Pituco e entrou
pela Aratiba. Precisava chegar o mais depressa possível por causa da calça
rasgada no rego e, por primeiro, para desfazer a dúvida com alguém do Sutraf,
que tanto se empenhora pela Universidade Federal em Erechim.
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Mas, e se fosse mesmo como tinham dito
na rádio, bem daí, a Federal que o Sansão sonhava e saudava, não era bem aquela
Federal para a qual imaginava que as suas filhas podiam estar habilitadas. Ele
queria desfazer essa dúvida que lhe assaltava aquele dia e a própria
vida, porque, de assalto em assalto, dividia-a em preocupações noite adentro,
deitado ao lado da sua Sale(tona) na cama de segunda mão - que comprara do
cunhado.
E numa noite daquelas, enquanto o casal
falava sobre a vida de ambos preocupados com o futuro das filhas, um clarão
rasgou por dentre uma das frestas do quarto, onde o rejunte não havia sido
colocado, e Sansão teve a certeza de que se fazia sim uma luz, não era ainda a
do sol que ele tanto esperava, mas apenas, um rasgo da lua que lutava contra
nuvens impacientes no céu.
- Então vão fazê mesmo um enxame
pra vê quem pode entrá! E pensei que era só ir lá e mostrá que não tinha condição de pagá – lamentou, Sansão. “É, nego, pobre quando ganha
entrada pro circo, pode contá que a lona vai pegá fogo! Que nada nego, o lado
bão da escola é o de fora!”, ajuntou a Salen(tona). E juntos adormeceram e
sonharam o mesmo sonho: “nem tudo que inclui você, quer dizer que você está
incluído”. E sobre isso passaram dias e anos pensando. Sim, porque, grande parte dos ricos da cidade não passaram por uma Federal?