Crédito: Padre Antonio Valentini Neto/Diocese de Erechim
(Personagens e diálogos fictícios de uma romaria de Fátima, quando ninguém nem sonhava ter de esconder a cara na frente da Santa numa festa destas).
Domingo. 8 horas. Estou saindo de casa, perto do Santuário. Incrivelmente, não chove depois de uma semana e de todas as previsões que falavam em muita chuva neste domingo. Até está com cara de que o dia vai ficar nublado – mas sem chuva. Mas faz calor. É quase um milagre. Ganho a rua, dobro à esquerda que leva ao Santuário.
- Tá pom assim.
Tá pom.
- Vem, vem...
Pode vir mais um poquinhno. Isto, aí tá pom. Abaga as luz e enchaveia pem.
São Fuscas brancos e verdinhos,
Brasílias amareladas, vermelhas - muitas Brasílias, Gols, Corsas e Unos que vão
procurando um lugar. Deixam homens queimados do sol e que carregam grossos
chaveiros. Mulheres precavidas que vão se desfazendo das blusas e sombrinhas.
Adolescentes que saem do fundo dos carros com os olhos esbugalhados. Estão na
cidade! Num deles o homem precisa abrir de novo o Fusca. Esqueceram uma
mamadeira. São carros com a ‘saia’ embarrada que vem de Áurea, Sertão, São
Valentim, Três Arroios, Viadutos, Mariano Moro, Campinas do Sul, Itatiba do
Sul... Já se ouve o som do alto-falante.
- A procissão
nem saiu ainda lá da catedral e aqui no santuário já são milhares os
romeiros...
Entro na Sete. Os táxis do ponto em
frente ao Master foram colocados alguns metros à frente.
- Que horas
vocês saíram!?
- Tiramos
leide das vacas, tratamos a criação... mais ou menos 6 e meia nóis saímo! Mas
tá boa a estrada. Eu pensava que com tánta chuva...
O Guarda Municipal apita e faz sinal
mandando que os carros parem para mais um grupo atravessar as duas vias da
Sete pela faixa de segurança até o portão do santuário. Vou junto.
Meninas colam o emblema verde claro no peito dos que chegam. Não me viram e
segui ‘sem identificação’ pela reta que leva à esplanada.
- Pedimos às
pessoas que não deixem a carteira à vista porque no meio da multidão que vamos
ter hoje aqui, sempre tem um...
- Tec, tec,
tec... senhor romeiro... uma ixmolinha po pobre... uma ixmolinha...
- A procissão
começa a se deslocar lá no centro da cidade. Vamos cantar: Muito obrigado,
Mãe/Mãe do Menino Deus/nascido em Belém/há dois mil anos!/
- Aonde a gente
compra a ficha pro churrasco!?
- Não por
aí... a grama tá toda molhada. Olha o baaarro – pai!
- Será que lá
também tem pão, cerveja, refrigente, cuca...!
- O povo em
romaria, de carro ou a pé,/ vem te pedir, Maria:/ “Aumenta a nossa fé!”
- Atenção
romeiros: A coordenação da romaria avisa que apenas os objetos religiosos que
são vendidos dentro do santuário é que são autorizados pelos organizadores. O
que é vendido fora do santuário não é da nossa responsabilidade e não ajuda a
igreja...
- Olha a
medalhinha da Santinha. Olha a fitinha... Um Realzinho!!.
De repente uma garotinha de 9 ou 10 anos
me gruda um emblema da festa de Fátima no lado esquerda do peito.
- Agora, a procissão já caminha duas quadras da catedral.
- Nesta segunda dezena do terço, vamos... Pai Nosso que Estais no Céu...
Junto à
imagem de Nossa Senhora de Fátima, toda engalanada de lindíssimas rosas e
flores mis o chão arde. As velas derretem e se acendem queimando sobre a grama
embarrada. bouquês são depositados. Terços desfiados. Gente de joelhos
engolinndo rezas. Um homem fita o infinito por trás dos eucaliptos lá pra baixo
donde se dá a fronteira do seminário com a URI. Um abre com ...‘Pai Nosso que
Estais no Céu’ e o outro ao lado já vai no... ‘O Pão nosso de cada dia...’.
No altar os padres animadores não param
de se agitar. Microfones são testados. Violão, guitarras, violino, um pequeno
coro, botões da mesa de som... “baixa,
baixa... levanta, levanta um ponto... Aí, aí tá bom... Nossa Senhora, Mãe dos
peregrinos,/Vem conosco caminhar!/Eis aqui o teu povo, Maria de Nazaré!/
Encostados num Gol sujo de barro –
adolescentes de calça de brim sobrando por cima dos grossos tênis brancos,
acendem cigarros alheios à concentração das preces e falam da matiné
dançante marcada para o fim do mês na comunidade... Avanço até onde dá pelo
asfalto, mas tenho que enveredar pela grama barrenta que nem a serragem
resolve. Entro no santuário. Todos os bancos estão tomados, a maioria – pessoas
de idade. Nas imagens espalhadas pela igreja, grupamentos de pessoas que não param
de rezar. Pais se abaixam para que os filhos de colo toquem com as mãozinhas a
imagem. Os adultos não saem sem também tocar a Santa. Mais flores depositadas.
Outros escolhem lembracinhas em fitas coloridas e abençoadas. Saio da igreja e
vou para os fundos do seminário. Mais gente. Filas num corredor. Alguém
pergunta pelo banheiro.
- Senhor,
senhor – quer confessar? Entre naquela fila.
Retorno, atravesso a igreja, saio com
pressa, mas agora sim, muita gente. Volto até o pórtico. A aglomeração de
pessoas aumentou muito. O trânsito está fechado. Na frente do (antigo) Daer vem
avançando a procissão. São cabeças e cabeças.
- Em
procissão, em romaria/ romeiro ruma para a casa de Maria./ Em procissão, feliz
da vida,/ romeiro vem buscar a paz da Mãe querida – cantam e rezam.
- Para trás,
para trás, por favor – vamos deixar a procissão passar, gesticulam alguns
organizadores. Policiais militares também ajudam. Um câmera de uma TV sobe no
pórtico.
A procissão troca a Sete pela reta de
acesso à esplanada, fazendo uma curva em boa velocidade.
- Quinze mil.
Não tem mais que isso, comenta um brigadiano, sem saber que a procissão ainda
se arrastava lá pela sorveteria Massoka.
- Olha –
daqui da entrada até lá na frente tem quase
- Fora os que
tão debaixo dos eucalipto, ajunta rapidamente um rapazola – daqueles curiosos e
atentos sempre prontos a meter-se numa conversa.
- É... tem
uns 50 mil... Quem teve no ano passado... Hoje tem mais, muito mais.
- E pensa no
que choveu e parô logo hoje! Só pode sê milagre de Nossa Senhora, acrescenta o
curioso atilado.
A imagem da Santa vem sendo carregada
nos ombros de quatro ou seis homens. Ela anda depressa pelos pés deles. Balança
e balança de um lado para outro, parece que vai cair, mas mesmo que
despencasse, nunca chegaria ao chão. São milhares os romeiros que a circundam.
- Viva Nossa
Senhora de Fátima, grita uma mulher, puxando uma perna e em lágrimas –atrás de
mim. Uns viram, cheios daquela vergonha dos tímidos e, “viva!”.
- Um carro de
som abre passagem, afugentando o grupo que se espreme no portão para ver a
Santa de pertinho.
- Lá no altar
– o animador também invoca e grita: - Já
estamos vendo! Sim... Lá vem chegando Nossa Senhora. A Nossa Mãe já
está entrando no Santuário neste momento – o som se descontrola
um pouco, mas logo volta. “Nossa
Senhora está entrando na Sua Casa. Vamos saudá-la com nossos lenços brancos”,
grita o animador e logo milhares de lenços brancos se agitam.
- Nossa
Senhora, Mãe dos peregrinos/vem conosco caminhar!/: eis aqui o teu povo...”.
Lágrimas se confundem com orações. Olhos
procuram o melhor ângulo. A multidão caminha até onde dá e depois se esparrama
sob as árvores, pisando o barro que se esconde o gramado molhado. São 10 horas
e já há quem saia com dois espetos na mão, abrindo caminho por quem acabara de
chegar. Lá no canto, em cima de pelegos, uma família se acomoda. A mãe dá de
mamar ao bebê. A imagem de Fátima é depositada no altar.
- Com minha Mãe
estarei/Na Santa Casa um dia/Ao lado de Maria...
Dom Girônimo (hoje já falecido) é
anunciado. Inicia a missa. Mais acima dele – fotógrafos e policiais com
binóculos têm a visão do largo de Fátima. Conferem sensação de segurança.
Pobres e ricos, brancos e pretos, gentes da cidade e da colônia, batedores de
carteira, pagadores de promessa, festeiros, idosos, criancinhas, indigentes,
freiras, vendedores de chapéu, brigadianos carregando mulher desmaiada, casais
de namorados – tudo se agita, e se mexe, e se ajeita e se acomoda do jeito que
pode, que precisa, ou que dá.
Me reencosto numa árvore para ouvir D.
Girônimo:
- Queridos romeiros...
Atrás de mim, alheios à homilia dois rapazotes
coxixam. Tu viu o estoro que deu na cidade?(Até hoje não descobri de onde eram
– provavelmente de outro estado).
- Se for
verdade... será que chega no fim?
- Este ano Jubilar é para a glória ao Pai, ao
Filho e ao Espírito Santo...
- Tão dizendo
que vai dá cadeia.
- Maria,
saúde e dignidade para todos...
- Tu acha que
isso vai se revolvê até quando?
- Um novo
milênio de justiça, solidariedade e paz... Queridos romeiros, me lembro que ano
passado quando encerrava a 48ª romaria eu falava do Ano Jubilar, recordava Dom
Girônimo.
Eu queria me virar e olhar, mas... minha
discrição optou pela imagem da Santa. E continuavam...
- Tu te
lembra do que um cara falava...
- Tende
piedade, tende piedade, tende piedade de nós, ó Senhor!/ Vosso povo é santo,
mas também é pecador.
- Aí tem
muita sujera...
- Cantemos alegres a uma só voz: “Francisco e Jacinta,
rogai por nós!”.
- E aquele juiz desgraçado do grenal...
- ... e perdoai as nossas ofensas....
- Diz que o Lula
vai de novo...
- Santo,
Santo, Santo é o Senhor!/Glórias, hosana e louvor.
- Éééé´... não sei se não vai mesmo...
- E Livrai-nos do mal amém!
- Oi, senhor romeiro... uma exmolinha pro alejado...
- Ôôôôô... passa aqui! Fica perto desse teu pai infeliz!
- Santa Maria, rogai por nós...
- Ô negra... fica cás criança que vô se ainda arrumo ficha pro churrasco.
- Vê se não vai tê perdê já na cachaça. Demônho!
- Segura na Mão de Deus/Segura não mão de Deus....
Saí dali e voltei para o interior da
igreja. Dezenas de “ministros” da igreja foram buscar a Eucaristia. Eram mais
de 35 mil hóstias. Me espremi o que deu – mas não consegui comungar.
- Quem não
comungou, pode dirigir-se depois para o interior do santuário... anunciava um
padre.
Era quase meio dia. Fui almoçar em casa.
À tarde voltei para benção da saúde. De novo, a multidão em pé, atenta, cheia
de fé. A benção da saúde é um dos pontos altos da romaria. Se a fé cura – muita
gente vai ficar bem pelo que vi. Logo em seguida, o último passeio da imagem de
Fátima por entre a multidão que arrancou as flores e pequenos
galhos de cipreste eram disputados quase ferozmente. Fitas eram recortadas em
pedacinhos para quem quisesse levar consigo de lembrança. Sob as árvores,
homens bebiam e jogavam. Um deles tinha dois garrafões de vinho aos pés e
tentava um terceiro. Brrrrrrrrrrr – girava a roleta. “Olha os últimos números”.
“Me dá dois, não me dá a cartela toda!”. Bebês dormiam sacudidos. Fiz o sinal
da cruz, beijei minha medalhinha que comprei de manhã e decidi ir embora.
Faltam 15 pras 5.
Às 9 da noite – quando todas as
Brasílias, Fuscas, Gols, Unos, ônibus, Vanz, Kombis e Corsas descansavam em
suas garagens, depois de um dia de espera em dia abafado, a chuva da semana
inteira, recomeçou serena. Serena como o semblante de Nossa Senhora de Fátima.