quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

De timm.docartorio@ceu para joseadelar.ody@terra

 

Foto Caio Almeida/Arquivo pessoal

1

“Meu caro José Adelar (Ody). Deixe-me saudá-lo como sempre fazia quando nos encontrávamos à tarde no Mozart (Lago). A propósito dê um abraço nele, no seu Geórgio e demais amigos que apareciam pra bater papo. José Adelar! – ninguém deseja despedir-se daí, mas o fato é que “Aqui em Cima” temos centenas, milhares de amigos e conhecidos. Há dois meses deu um alvoroço aqui. Acabara de chegar o Maradona. Logo depois o Paolo Rossi. Tu vê – dois carrascos que tiraram o Brasil de duas Copas. A convicção que começo a formar, depois de quase 120 dias “Aqui Em Cima”, é que esse negócio de “Outro Lado” mereceria um estudo aprofundado “aí embaixo”. Quando comparo como são as coisas “Aqui”, não duvido mais: penso que o “outro lado pode ser aí” e o lado certo - “Aqui”.

2

Olha José Adelar, fui recepcionado pelo Serginho (Intkar), excelente músico dos Crazy Boys, nosso amigo em comum dos encontros na sala do Mozart. Serginho Intkar que ironicamente falecera em 22 de fevereiro de 2019. Ele me conduziu ao bairro Erechim, 99700000 onde hoje resido. Aliás, qual não foi minha surpresa ao abrir a porta um dia desses e deparar-me com meu pai! E depois com o Fritz (meu cachorro)! Estamos remontando a família – mas, por favor, não significa que se apressem. Antes de cada um cumprir sua missão aí, nada de “Subir”.

3

José Adelar. Que dia foi segunda-feira agora, essa que passou!? Isso. 22. Exatamente um ano daquele 22 de fevereiro lá na Brava. Um sol de rachar. Dez ou dez e meia da manhã – vou fazer nome até por que na vida são detalhezinhos que não passam disso, considerando nossa passagem passageira, fugaz, por aí. Além do mais tudo meio por acaso: tu e a Sonia, o Cláudio e a Cleo, o Cleber e a Odete, o Caio e a Tiani. A propósito... deixemos assim... Que tudo se resolva pelo melhor, é a minha torcida. Mas como fomos nos encontrar daquele jeito!? Penso que todos do Lions deviam estar naqueles dias, “esparramados” num canto de praia! O Gilmar e Leila – pelo que lembro andavam suando frio em dia de 37 graus, apreensivos com o retorno da filha que vinha do México, sim porque já se falava então, numa tal de pandemia. Mas – voltando ao “nosso” sábado de 2020. Era cerveja pra cá, aperol e água pra lá, amendoim, azeitona... e outros que tais, e nós todos sob três guarda-sóis e uma conversa sem rumo, sem compromisso e sem fim. Não via a hora do fim da tarde – porque naquela noite eu iria fazer o que sempre gostei: preparar o jantar.

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Antes, atente, quero fazer uma observação que poucos notaram: houve um momento em que alguém pertinho de nós falou sobre um vírus que já tinha saído da China e chegava à Europa. Quando adicionaram ao termo, pandemia, ouvi você comentar baixinho, mas eu peguei: “por mim já podíamos saltar direto pra 2021”. Fiquei pensando, mas logo tudo foi esquecido. Lá pelas cinco da tarde levantamos acampamento. Me botei na cozinha e fiz o melhor que pude. A geladeira ia aliviando e, quando ficaram sabendo que o Grêmio perdera o primeiro turno do Gauchão para o Caxias, aí é que  tu e o Cláudio levantaram mais ainda as taças. Chegaram a comprar na praia porta-lata pra cerveja só por que tinha a marca “Inter”. Eu lembro. Eu lembro bem! Pelo que comemos naquela noite - a massa com dois tipos de molho, o frango e a carne assada ficaram no capricho. A salada mista então – nem se fala!

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José Adelar! Que encontro inesquecível. E que conversa! Eu, até quebrei meu protocolo de ouvir mais que falar, e contei uma passagem (peço reservas), até porque já não importa mais. Antes que suspeitem sobre alguma quebra de ética no cartório, desistam. Era sobre minha vida pessoal e só. Mas, José Adelar - fiquei até certo ponto aliviado em dividir aquela passagem da minha juventude lá em Santo Ângelo e, hoje, posso confessar, que aquele sábado, 22 de fevereiro, até a despedida do pessoal de volta à Meia Praia, lá pelas duas da matina - foi um dos momentos alegres da minha vida. Não preciso fazer reservas. Já tenho idade e idoneidade para dizer que, eu e a Lenir, ficamos emocionados de alegria naquele dia/noite.

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E o que dizer da maré em Meia Praia? “Gente... olha a água... shuááááááááá. Segurem as bolsas, as caixas, os chinelos, as mochilas de pano, os celulares, os prendedor de cabelo, os bonés. Peguem as latinhas, as latinhas de cerveja pelo amor de Deus”! Recuava e logo shuááááááááááááá. E nós cada vez mais pra trás e pra trás e pra trás. Chegou um momento onde eu estava sentado na cadeira e, a cadeira, atolada no fundo da areia. Já não sabia mais o que era cadeira ou areia. E era shuáááá e shuááááá. Que dia! E o jantar naquele restaurante! Eu e a Lenir de frente pra Sonia. O Cláudio, a Cleo, o Kleber, a Odete e a Tiani. Nas duas pontas da mesa – tu e o Caio. Depois retornamos, nos arrastando, de satisfeitos pela praia. E o Uber – “cadê o Uber!?”. Eu vi que tu percebeu. Fiquei meio impaciente com a demora do táxi ou do Uber. No fim – apareceu um Uber e fechamos mais um encontro.

7

Lembrança prazerosa. E o churrasco do Caio no dia seguinte então!? E aquele barzinho de degustação com marcas de chopp do mundo inteiro... Por mim, quero dizer, que foi uma experiência muito agradável. Sou grato pela oportunidade que tive de passar com vocês, por acaso; aqueles dias, que recordo hoje, fechando um ano.  Penso que ninguém discorda. Como esquecer as piadas limpinhas – uma mais limpa que a outra - do Kleber? Ahaahahahah. Como diria o poeta do Alegrete, Mario Quintana: “A amizade é um amor que nunca morre”.

8

José Adelar! Pede à Sonia abraçar todos os membros do Lions Erechim Cinquentenário, sem exceção – todos; pelos momentos que passamos, quer seja em tarefas de arrecadação nos mercados, no varal solidário, no preparo do frango assado, no baile da sobremesa e nas reuniões. Agradeça a todos os amigos ou até mesmo conhecidos, que pediram pela minha recuperação. Eu ouvia tudo o que a Lenir me levava no hospital: as mensagens de força e orações, enfim, e que pena que a tua analogia da pinguela sobre o rio Dourado, que tanto medo e pânico te causou na infância, não tenha resistido para mim como resistiu para você. Mas acredite, ajudou. Aqui de novo, reabilito a convicção que começo a formar: é muito provável que o caminho de cada um já tenha um destino, a despeito de alguns, não raras vezes, contribuírem de forma decisiva para antecipá-lo.

9

Eu... lutei com o que pude. Sou sempre grato à Lenir, que não só me confortou e aliviou a dor no hospital, como foi a companheira perfeita durante toda minha vida, como posso dizer, “aí do outro lado”. Também agradeço de coração a presença do Conrado e da Carol, a quem peço que levem adiante suas vidas e não esmoreçam diante dos desafios. Deixo ainda minha gratidão e um abraço fraternal aos dedicados funcionários do Cartório, aos queridos amigos de pescaria e aos membros da Igreja.

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“Aqui Em Cima” temos regras e liberdade, José Adelar. A consciência, que se faltou para alguns, foi restabelecida “Aqui”, de sorte que não há pendengas políticas, econômicas e sociais. Vivemos como irmãos. Todas as semanas temos jantares ou pescarias. Continuo com meu hábito de ler. Encontrei inúmeros amigos teus especialmente da área jornalística, como o Idylio, o Tramontini e, o inconfundível Geder, além de quase todos os Carraros. Quem te manda um abraço especial, é a dona Maria Amorim Smaniotto. Ela te tem como um filho.

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Meu caro José Adelar. Aliás, foi assim que te saudei na noite do teu aniversário, ano retrasado, quando fomos aí e te dei um vinho. Descobri – porque “Daqui De Cima” a gente vê tudo e nada nos escapa -, que a garrafa ainda está fechada. Isso não se faz. Chama o Cláudio e “mete o saca-rolha”. Enfim, os lamentos que ainda se dão aí, são de tradição histórica. São assim mesmo e por isso, naturais e, com o tempo... até aceitáveis, mesmo porque outra saída não há. Ninguém deseja partir e ninguém deseja perder alguém querido. Sei que tive meus equívocos. Nunca me arvorei perfeição. Mas também sei que cativei e cultivei uma imagem de uma pessoa boa, honesta, sensível e agradável e, isto, agora com a minha “troca de lado”, me enche mais ainda de alegria. Creia José Adelar - é um conforto pessoal.

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Se querem fazer mais por mim – peço que todos se acalmem. Mantenham suas rotinas. Quero ser apenas uma boa lembrança no coração e na memória dos meus familiares e dos meus amigos. Que o meu vizinho e amigão, Cláudio, não se esqueça da última mensagem que mandei pra ele. Citei ela há pouco. No mais, mando este e-mail, porque você estava por escrever, e estava e estava, mas, eu sei, eu via que não conseguias. Por isso tomei, eu mesmo, a iniciativa aproveitando aquela data de 22 de fevereiro de 2020.

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Por favor, não fiquem chateados e nem me critiquem por estar “mexendo na ferida da partida”. Que nada. O sentimento da “perda” sempre permanecerá. Só lamento a falta de oportunidade de me despedir. Mas - o tempo vai ajudar. O tempo é o segredo de tudo. Porém, eu precisava, entendam, por favor... eu precisava dar um “Auf Wiedersehen”, um “adeus” no sentido de um “até logo” em português. Me sinto melhor assim. Sigam com suas vidas por aí. Fiquem juntos. E riam mais do que se lamentem. Um dia, estaremos todos aqui, ao que me parece, do “Lado Certo”. E eu estarei à espera de cada um com a discrição e a alegria de sempre.

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Por fim – confesso com voz bem baixinha: eu sei, tenho certeza, que estou bem pertinho de cada um de vocês. No coração de cada um de vocês. Fechem os olhos e pensem em mim. É como se estivéssemos, neste momento, apenas em lugares diferentes. Mantenham suas ações de Lions, seus encontros festivos e brindem à vida. Espiritualmente estamos juntos como sempre estivemos e, isto, ninguém poderá desfazer. E se alguma coisa pode confortá-los, creiam, tive uma vida boa e vocês fazem parte dela. Ser útil e feliz. Fazer outros felizes. E isto, com a humildade e a discrição que sempre me caracterizaram - sei que consegui ser e fazer. Reitero o que já pedi acima: não fiquem tristes por eu relembrar um pedacinho da minha vida “aí embaixo”. Este contato me faz bem. Sinto-me ainda mais próximo de vocês. ‘Bis eines Tages’ – (Até um dia).

Abraços.

Saudades Eternas,

Timm (Valdir Airton)”.

 

 

 

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Um pedaço do paraíso (2ª Parte)

 



 

1

Blén, blén, blén, blén, blén.

Cinco horas.

Hora de levantar.

Mas antes já ouvira um arrastar de chinelos

prá cá, prá lá – sim era o meu avô que já estava de pé 

desde às 4 horas, caminhando com seu terço na mão. 

Mas às 5 horas

– os outros também pulavam da cama.

Quando eu saía, já mais tarde, e ia até área dos fundos,

lá vinha vindo minha tia com mais um balde

de leite recém tirado.

A cozinha já estava quentinha.

No fogão a lenha estalava. 

E a imensa mesa

de madeira de lei já começava a ser

posta. Escovando os dentes e lavando

o rosto na torneirinha dos fundos,

ao erguer o olhar dava para a horta cercada. 

Eram cabeças de repolho,

folhas de radicce, cebolinha, salsa,

morangas, morangos, alface e, sei eu mais lá

o quê! Na ponta de uma haste de radicce

que resolveu crescer, um pintassilgo se embalava 

e entoava seu canto, iluminado

pelos primeiros raios de sol e embebendo-se da brisa. 

Conheceria ele o dia seguinte com

tantos boques?

2

Era sábado.

Depois do café as tarefas mais caseiras,

como cortar lenha, fazer algumas limpezas

de semana – mas nada de roça. 

A mais longa

saída era para cortar cana, pastagens,

arrancar umas mandiocas e colher algumas abóboras 

para os animais. 

Também era um bom dia para aumentar o 

estoque de quirela

e lavar roupas. 

Os inços que quisessem voltar

a crescer que o fizessem no fim de semana, 

enquanto que as jararacas que também 

desejassem menos verde e mais calor,

que deixassem o mato e se deleitassem

sob as pedras quentes no meio do milharal 

durante o fim de semana.

Segunda-feira nos reencontraríamos!?

Queira Deus que nunca mais.   

3

Quieto, eu brigava com meu 

demônio interior da semana. 

Amanhã, domingo,

iríamos a pé até a vila para a missa das 9.

E isso representava que teríamos de

atravessar a terrível pinguela sobre o rio Dourado. 

Anos depois comparo que nem mesmo 

Indiana Jones sofreu tanto - sim porque

os desafios e calafrios dele era e são fictícios. 

O meu não. A minha pinguela era real.

me parecia até que ela começava a se embalar,

sozinha, assim que me via.

Velha, com tábuas meio soltas, com um

fio de arame embaixo, outro em cima

para se segurar e outro no meio. 

Tudo amarrado a cepos dos dois

lados do rio, fincados ali,

sabe-se há quantos anos.

Me pareciam ainda mais apodrecidos 

do que realmente eram.

Eram pinguelas daquelas,

isso mesmo, daquelas que você está imaginando, 

construídas no puro instinto

que sempre alguém dirá – mais confiáveis

que as de hoje. 

A verdade é que nem

de perto se comparam ao que se vê hoje

em áreas verdes onde se faz trilhas, onde

se atravessa, sanga,  lago, etc. Nos anos

1960 eram quase armadilhas que balançavam 

sempre no contra-pé, 

pra baixo, pra cima, e para os lados então

 – minha nossa, nem quero lembrar.

E lá embaixo, lááááááá a uns três ou quatro

andares de altura, comparando com

um prédio, o velho e pouco valorizado rio Dourado, 

que em tempos de calmaria,

corria manso, desviando das pedras,

dos troncos e dos entraves que ele mesmo,

em tempos de revolta – um dia trouxera sabe-se lá de 

onde, para atravancá-los

bem aí de onde dificilmente sairiam.

A menos que viesse nova enxurrada,

ainda mais embrabecida - rompendo e levando 

o que houvesse pela frente.

A pinguela - vap e vup, vap e vup - nhennc, nhennccc, 

vap e vup, vap e vup

me apresentara antes a Gabriel Marques Garcia com

sua "Crônica de uma morte anunciada".

Era só trocar a "morte anunciada" por uma 

"queda anunciada" - mas no fim daria no mesmo.

Cair lá de cima e no rio cheio de pedras, galhos,

troncos - era dar adeus à tia Chica.

4

Eu passava a semana carpindo, almoçando

ou dormindo com a pinguela e

seu balanço ameaçador, não, 

ameaçador é pouco, quase nada 

- seu balanço aterrorizante, 

me corroendo, o estômago, 

as tripas, a alma. 

Era pior, bem pior, muito pior  

do que saber com

uma semana de antecedência,

que segunda-feira teria que ir ao dentista 

arrancar um dente ou fazer vacina

no Mantovani – nos anos 1960,

quando as agulhas e até seringas eram fervidas.  

5

Tudo o mais lá na roça era muito gratificante. 

Aquelas paisagens. 

Aquelas uvas.

Aqueles pêssegos. 

Aqueles caquis.

Aqueles figos. 

Aquelas melancias que roncavam "broooook" 

ao serem abertas.

Aqueles melões adocicados a desmanchar

na boca. 

Aqueles banhos de rio.

Aquelas saídas de carroça. 

Aqueles - amanhecer e entardecer.

Aqueles silêncios noturnos.

Aquelas noites que pareciam também 

em sono - recolhidas em si mesmas. 

Não havia vizinhos próximos

- e luz só olhando para o céu com seu

manto estrelado cercando 

um estranho no ninho, ou estranha

- a lua. Cheia e servindo de farol aonde

quer que se olhasse.

Quanto valeria aquilo tudo?

Nunca pedi.

Nunca me cobraram.

Nem sei de quem era.

Mas – quando a imagem da pinguela

aflorava mais forte dentro de mim -,

parecia que tudo perdia o sentido.

Eu vivia um pânico que era único e só meu.

E o pânico se divertia. 

Dava risada.

A semana inteira e quando eu conseguia

dar o último passado saindo dela, 

tremendo mais que a própria 

- colocando o pé em chão firme; 

ela me cutucava: “eheheheheh 

– olha que tem a volta hein!”.

6

Na vila, no largo da Paróquia São Pedro,

a comunidade se via, se encontrava,

se reunia, se falava, e eram tios e tias

a perder de vista. 

Pequenas rodas se faziam e no mais puro alemão

trocavam informações sobre como estava

o milho, o preço do porco,

as perspectivas quanto ao leite, 

quem iria para Erechim naquela semana, 

se alguém estava de cama adoentado,

trocavam "receitas de chás 

e outros 

que tais de experimentos" que deram resultado, 

se alguém sofrera um acidentes na roça ou

fora mordido por um bicho; enfim

– era o JN de Sede Dourado com sua

edição semanal. 

Se falava de festa na gruta,

do carteado à tarde, 

do temporal e dos estragos da semana 

ou da estiagem

que ameaçava se instalar, de perdas

na produção em geral e, sempre saía

uma piada em alguma rodinha, como disse,

no mais legítimo alemão naqueles

cafundós que para mim eram 

um pedaço do paraíso.

Ah – e os Kerbs, vão sair ou não?

Claro que sim – afinal nada se sonhava,

muito menos se projetava - abrir mão da

tradicional festa.

Era evento certo no calendário

- sem consideração a ganhos, perdas ou danos.

7

Ainda preso à volta pela pinguela,

especulava com um ou outro se não teria

uma carona em um daqueles fuscas brancos

ou azuis, marrons ou amarelos. 

Todos, invariavelmente empoeirados

até os dentes das correias.

Aceitaria até no bagageiro de qualquer Rural 

– mas quase nunca aparecia. 

Sim, porque os carros

já chegavam lotados de tantos

alemães, desses que calçam 44, 46

com bíceps e ancas de boi de arado.

Tudo para fugir do vap e vup, vap e vup, nheeennnnnc.


Superado o pânico semanal da pinguela

e ouvindo dela uma gargalhada e

um "até a semana que vem",

o quilômetro de morro no potreiro, 

era uma faceirice para mim.

Nem da jararaca que podia estar me esperando,

eu me lembrava.

8

Ao meio dia em ponto – todos vivos e salvos

– com pinguela e tudo, a galinhada ganhava  

a mesa. Eram legítimos risotos

ou galinhadas domingueiras. Tudo

naquela culinária ou naquele prato,

acompanhado de massa, carnes assadas

e saladas recém colhidas afora os vidrões

de outros legumes em conserva

- pepinos, cebolas, rabantes, repolhos

brancos e roxos;

nos remetia a algo que chamam 

há muito tempo de

banquete sem saber bem o que é.

Muitos ficam na teoria da significância,

na luxúria do conceito 

– mas poucos o conhecem de verdade. 

E antes que todos se sentassem ou

levantassem 

– sempre as preces de

gratidão comandadas

pelo meu avô. Principalmente

na entrada, porque depois do “Amém”

– era um passa prá cá, me alcança,

deixa... eu vou pegar só mais um pouquinho, 

quando o prato já se fazia meio alto.

10

Pobres galináceos, nunca haveriam de se queixar 

em cacarejos que já não tinham mais. 

Se quisessem cacarejar, agora que

o fizessem dentro dos comilões que

faziam ranger o velho banco de

madeira maciça socado no chão da cozinha,

toda vez que se mexiam e remexiam espichando

um braço para de novo encher o prato.

11

À tarde, lá pelas 4, uma nova mesa se fazia

sob os cinamomos. 

E aí era hora do café da tarde. 

Quem viveu o café da tarde

– pode dizer que a vida não é e nem

será em vão. 

Aqueles, com tal privilégio;

tem autoridade para atestar o que de fato é

um banquete.

Hoje as famílias encolheram.

As mesas desapareceram. 

Os hábitos mudaram. 

No lugar das conversas

de pessoa com pessoa,

tudo se foi. 

A televisão

nos fala o que ouvir. 

Aonde a internet pega então 

– o mundo, aquele mundo,

foi apagado e trocado por outro.

Simples assim.

12

Mas, voltando àqueles dias e lembranças

ainda falta uma: proibidos de pescar

no rio Dourado, especialmente

no Poço Grande porque até hoje

ninguém sabe de fato quantos metros

de profundidade tem, de anzóis aos ombros

e minhocas numa latinha, íamos até

uma sanga ou riacho, 

ou riozinho que desembocava no Dourado.

Lá, com laterais descampadas

e gramadas, jogávamos os anzóis

na água quase sempre corrente com ou

outro pocinho – manso. 

Não demorava

e a linha começava a tremer. 

Estavam beliscando as iscas e, sem demora,

os lambaris voavam na ponta da linha

por sobre nossas cabeças. 

De repente,

as nuvens que já ameaçavam desde o meio

da manhã, se juntavam e, 

sem aviso despejavam uma chuva que logo fazia

a água trocar de cor. 

Aí era a hora dos

jundiás saírem das tocas que à noite

enchiam as frigideiras – fechando um

domingo longe dos estresses das cidades,

dos assaltos, dos acidentes, dos incidentes,

das discussões banais, do trânsito que

por si só não tem culpa de nada,

da violência desmedida e fora de controle,

da violência de eras pretéritas do homem, 

das TVs com mil canais,

dos Youtubes, 

das séries,

enfim;

dos silêncios dos sós.

O silêncio do... um.

13

À noite, naqueles tempos;

depois da chuva

– ainda com o cheiro dela,

meu tio ligava um rádio à bateria

pra saber pela Aratiba se algum

conhecido havia morrido,

ou como o Inter tinha ido naquele domingo.

Com a cadeira apoiada em “duas pernas”,

e encostada na parede da varanda,

meu tio Guido puxava um palheiro e

falava então de seu otimismo, 

ensinando que

aquela chuva daria novo ânimo ao milho,

às culturas, ao potreiro.

Haveria mais leite, mais queijo, mais carne,

mais milho, mais frutas 

Mas quando a chuva 

trazia a tiracolo um temporal 

com suas malvadezas, 

ou quando a seca fazia

o chão arder a sola dos pés, 

só sim se falava,

de fato, sobre economia. 

Haveria perdas em dinheiro

no fim das contas mais adiante.


O inapagável daqueles cafundós

da Linha Poço Grande, em Sede Dourado,

o que importava era a certeza

– nunca dita, nem tangível - mas vivida 

em intensidade que a gente só hoje se dá conta -, 

é que que , lá - ali

se estava num

pedacinho do paraíso.

Algo que hoje em dia,

as gentes da cidade andam buscando,

quase loucamente, em anúncios de internet

e bem dispostas e quase, em alguns casos;

entregar os olhos da cara em troca.

Vale?

Se for como eu vi e vivi - não tem preço.

Adão e Eva eram felizes e não sabiam.

Queriam conhecer - num exagero proposital meu -

queriam conhecer os edifícios, o trânsito,

os ranços, as discordâncias, as futilidades,

as tragédias estúpidas, a ganância.

Acabaram por criar ao menos uma coisa:

"Lançaram uma vida de trás para o início".

Por que hoje - não são poucos os que

desejam fugir das cidades e

sonham em balançar-se numa pinguela,

esquentar a água na chapa de um fogão,

jogar o anzol numa sanga,

observar atento ao silêncio,

encher as narinas com o perfume das flores

do campo, 

e depois, dormir num colchão de palha 

frestiando o manto do céu tecido à estrelas e lua. 

 


 



  

sábado, 13 de fevereiro de 2021

Um pedaço do paraíso

 



                     


1

Naqueles dois meses e um pouco mais de férias de verão do Mantovani, eu passava em Sede Dourado na casa do tio Guido. Lá eu me sentia fora de casa e em casa. Além do casal de tios, tinha ainda meus avós, e uma penca de primos. Nunca tive problemas de me entrosar com a vida deles que começava lá pelas 5 horas quando iam tirar leite e depois tratar os porcos, etc. Na hora do café numa daquelas mesas que cabem umas 20 pessoas, ninguém tocava em nada antes do meu avô Mathias iniciar as rezas – em alemão. Dali em diante era pão de milho com melado. Mas havia ainda outras “ximias”, de laranja, de figo, de cana, nata e mel... Queijo e salame. Não gostava de leite, então ia de café preto. Açúcar branco – nem pensar. Mascavo. E claro, rosca de polvilho (chamada em alemão de roski).

2

Da mesa para o pátio onde a sombra dos cinamomos eram os guarda-sóis de galhos e folhas. Logo acima, uns 30 metros, uma parreira, bergamoteiras, laranjas do céu, pereira e pessegueiro. Também por ali, lenhas à espera de serem rachadas e uma moenda de cana tocada por junta de bois. Anos, muito antes, meu tio Guido perdera um dedo que entrou na moenda. Imagino – mas não quero nem pensar. Você já tomou suco de cana com limão gelado, espremidos na hora!?

3

No paiol onde havia montanhas de milho e feijão, a gente se atirava nelas como se fossem areia. O friozinho dos grãos era fluoxetina, Amitriptilina, eram os ISRSs – moderníssimos dos anos 1960. Os grãos de milho nos limpavam a cabeça e massageavam as costas, as pernas, o corpo. Era só cuidar para não inalar um grão pelo nariz – aviso que nem era dado, mas a gente sabia. Quando entrávamos no paiol onde estava o milho, e os montes de feijão preto e marrom na parte de cima do paiol, as foices e enxadas – ninguém se preocupava em pisar n’algum prego meio à largar a tábua depois de anos, enquanto as ratazanas pressentindo o perigo, davam um tempo e sumiam por suas tocas como o Senna e o Lewis Hamilton ao entrarem no túnel em Mônaco.

4

A junta de bois – não lembro os nomes, mas não seriam Pintado e Vermelho ou Mineiro e Caramelo? -, iam no seu lugar de sempre à frente da carroça à espera da canga. As ferramentas de trabalho na carroça, me avô já na roça e eu “pilotando” aquela dupla obediente de bois a puxar a carroça buraco à dentro, morro à cima. Lentamente o sol ia mostrando sua força e os chapéus de palha  mostravam seu valor. Enxada à mão, cada um pegava uma carreira de milho ou soja e carpindo, limpando, tirando os inços que ameaçavam estrangular o pé - no seu pé. Quando os ponteiros do sol indicavam 11h15min ou 11h30min minha tia, que tinha ido mais cedo para casa para ajudar a vó a terminar o almoço – lançava um grito em alemão de que estava na hora de ir pra casa. O chamamento ecoava pela roças, pelos morros, pelos matos. Pela pradaria lá embaixo e lá em cima.

5

O trabalho realmente enobrece o homem. Eu me sentia “nobre” quando lavava o suor do rosto na torneirinha de água corrente que vinha lá do alto do morro por uma mangueirinha. A cara vermelha, os cabelos grudados na testa, as mãos também avermelhadas atestavam que eu participara, desvestido da minha rotina urbana, que não conhecia enxadas, facões, pedras e nem os prazeres que só na roça era possível.

6

Umas cuias de chimarrão, um golezinho de cachaça e, de novo todos à mesa comprida com me avô Mathias na cabeceira puxando a reza em alemão. Depois era feijão, arroz, mandioca, carne de panela, vidrões com cebola e pepino, fora as alfaces, os radicces, as lentilhas, rabanetes e, para quem quisesse, mais queijo, salame e pão de milho. O legítimo. O genuíno. Aquele pão de uns dois quilos e meio e casca grossa preta – queimada. Assado no forno de tijolos. Naquela mesa nunca se expôs nada genérico. Hoje as ofertas são às dezenas –muitas delas, copiadas, imitadas, pouco fieis à sua origem natural.

7

Depois do almoço – as camonas de colchão de palha. Até lá pelas 3:30. O tio Guido não era de expor o lombo em sol escaldante. Outra vez os bois, a carroça e a subida até a roça. Um dia, de sol de 37 graus com sensação de 40 minha enxada enroscou em uma pedra. Não adiantava puxar. Me encurvei e espichei o braço e, com a mão, fui em direção ao inço que teimava em não sair com a enxada de tão escondido que estava. Foi quando ouvi um sibilar – (rsssssssssssssss) e alguém gritou: Adelar – não. Cuidado. Olha a jararaca!

8

A sensação de 40 gruas me gelou dos pés à cabeça. As mãos, ao contrário, tremiam, suavam, vermelhas de frio. Aquela não podia continuar ali – viva e, por isso mesmo, acabou, penso - morta. Não por mim é claro, porque na primeira enxadada, ela reagiu e começou a se jogar por tudo quanto é lado. Não sei se morreu, se sumiu, e os mais experientes daquelas experiências diziam que “essa foi pro mato”, ali perto. Quinta-feira desta semana li que uma mulher morreu mordida por um filhote de jararaca. Voltei naqueles dias. Foi por 3três centímetros?

9

Lá pelas 5 horas dois primos mais novos apareciam com cestas de vime e uma toalha: pão de milho, queijo, salame, cuca, bolachas, ximias e água. Satisfeitos – e o recomeço. Talvez naquela semana terminaríamos as fileiras do milharal. De repente, no silêncio dos morros nos cafundós da Linha Poço Grande, alguém parava de carpir e, levantando as orelhas como quando um cão percebe algo estranho passando em frente de casa, como um gato, por exemplo, ou alguém de máscara. “Éééhhh. É mais de cinco e meia!”. E de lá de cima a gente podia ver o ônibus que fazia Erechim – Várzea onde hoje as roças e, parte moradores daqueles antigamente, foram obrigados a trocar (?) suas propriedades e, por que não, até um pedaço das suas histórias, para as águas da Barragem Itá. Quilômetros e quilômetros à frente, a usina. Saía o velho, entrava o novo. Saía um tipo de economia entrava outro. Morria uma história, nascia outra.

10

Hoje, com os anos, sítios ou casas de fim semana à beira do Lago Itá, vão se formando onde antes era roça. Um número expressivo daqueles colonizadores que muita gente de paletó e gravata de bancos, de consultórios e salas advocatícias só conhecia pelo sucesso do Teixeirinha, “O colono”, se espremem no que sobrou ou venderam tudo e se foram pra Santa Catarina ou Paraná. Ou sabe-se lá por onde andam, divorciados à força de seus enlaces de outrora. E o velho ônibus da Praia Bonita (será?) se ia pequeninho de onde se via, deixando pra trás um rastro de pó que se misturava com o ronco do motor, cada vez mais rouco, enfraquecido e baixinho até sumir na curva do canavial do vizinho do outro lado do rio Dourado – os Schoutlz ou Schutlz. Um dos filhos daquela família, aos domingos, virava goleiro do Juventude da Gruta de Sede Dourado. Tinha mais ou menos 1,85m de altura e uma mãozinha de raquete de tênis. E um coração do mesmo amanho. Nunca me atrevi a dividir uma bola com ele, com aquelas pernas de angico.    

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A paisagem iluminada pelo sol se retirava. Lentamente. A carroça cheia de milho, abóboras de pescoço para porcos e pastagens descia no ritmo dos bois que não evitavam os solavancos. E eu lá em cima – de carona. Fosse hoje alguém haveria de intervir provavelmente com uma norma que proibísse aquele perigo à uma criança. No largo do paiol tudo era tirado da carroça e logo começava o trato dos animais. As ratazanas de novo saíam paras suas tocas e o gado, chamado, com gritos que só eles entendiam – começava a se mexer a passos de tartaruga do potreiro em direção à estrebaria. Cada um tinha atribuição e logo tudo estava no lugar. Sem reclamos, sem gritarias, sem desculpas – a força de cada um fazia tudo parecer automático, simples.


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Todos atendidos e quando ainda era possível visualizar onde se pisava, quase todos desciam por entre macegas, cipós e lajes à beira do rio para banhar-se nas águas do Dourado. Havia até um lugarzinho especial onde o rio meio que represava em tempos de baixa nos verãos, e uma laje aparecia para que caminhássemos sobre ela e com os pés na água nos lavávamos com sabão feito em casa, e só depois entrávamos na água sentindo as pedras lisinhas no fundo. De um lado do rio um paredão de pedras, de laje pura, que diziam ser a “casa dos jundiás”, e do outro, galhos que se inclinavam de seus troncos para refrescar-se e beber água, suponho. Depois do jantar, com todos à mesa e sem televisão, mas com o lampião por luz perto do avô Mathias, mais preces, mas comida de tudo quanto é tipo e – cama. Meu tio ainda tragava um palheiro – mas mais por prazer do que por vício. Na verdade nem era fumante.


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A casa, o paiol, a estrebaria, as galinhas, os cachorros, os pássaros, o chiqueiro, o pátio, os jardim, os cinamomos, as roças, os milharais, a estrada vicinal, os potreiros, os lampiões – tudo parecia ter ido também dormir no mesmo horário com a gente. Só se via por uma das frestas das tábuas da casa, uma pequena claridade, um sinalzinho de vida, que era da lua e, se ouvia bem baixinho - o vai e vem do meu avô com o seu terço, rezando em alemão na enorme área da frente que pegava toda a casa  - dos quartos à cozinha. Na sala o tic-tac e o blein, blein, blein por oito vezes do relógio de parede e o chiiiiiiiiiiiiaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa das águas do rio Dourado que deslizava em paz, quieto, e que nunca parava. O dia fora dormir. A vida se recolhera naquele pedaço de paraíso.

sábado, 6 de fevereiro de 2021

A doçura dos figos do tio José

 


(Dedico, com gratidão, a todos os meus ex-colegas e amigos, que fiz nos 21 anos na reitoria da URI)


1

Naqueles anos quando eu tinha 10 a 12 anos e, aos sábados ia com meus pais

para Sede Dourado onde residiam

todos os seus irmãos

e cunhados e pais e parentes, enfim,

ali estavam suas raízes, depois das

Colônias Velhas, quase sempre

dormíamos no tio Guido.

Mas de lá estendíamos as visitas.

 Ora no tio Arno, ora no tio Pedro, ora

no tio Aloísio, ora no tio João – todos

de Sede Dourado. Todos hoje,

residentes no céu.

Uns irmãos da minha mãe Melita

e outros irmãos do meu pai Alberto.

Nos fevereiros, como agora,

não podíamos deixar de ir no tio José,

o irmão mais velho

do meu pai. Por vezes de Jipe, por vezes

com uma Barata Ford, por vezes uma 

Vemaguet, por vezes um fusca.

Saindo da geral entrávamos numa

estradinha sem saída. O ponto final dela

dava na casa. À esquerda uma

sanga falava protegida por folhas

de Costela de Adão. À direita um milharal

 e mandiocais. Na chegada à casa do tio

era aquela correria. Toda vez uma galinha

se atravessava e se metia embaixo

do carro e saía perdendo penas,

cacarejando em reclamos. O tio José

e sua esposa Suzana Brígida

(apelido Khita em alemão)

tinham muitos filhos. 

Era uma alegria contagiante.

A tia Khita era uma dessas senhoras

baixinhas, gordinhas – e “elétricas”.

Fazia duas, três coisas ao mesmo tempo

e não parava de funcionar, furungar

e falar um minuto. E era só “mein Gott”,

pra cá e “mein Gott” pra lá. A simpatia

em carne e osso. Seu filho mais novo

tem hoje o “Restaurante Ody”

ali na JB Cabral. Quem quiser ter uma ideia

da tia Khita, vá ali falar com o Frantz

– como se pronuncia em alemão.

Nasceu rindo e assim ficou.

Voltando ao cenário da chegada na casa

do tio José, logo uns três a quatro primos

 e primas sumiam. Onde teriam ido!?

Um outro de espingarda a tira colo corria

trás de um galo – pobre galo que à noite

seria nossa carne no risoto.


2

Depois de quase uma hora de conversas

– a maioria tarvessadas - com os tios,

onde a tia Khita falava 70% do tempo,

já adiantando que não ficaríamos para

dormir; as cadeiras de palha em círculo

sob pés de caqui e bergamoteiras,

começaram a ganhar pratos e facas.

Minha barriga roncava de satisfação.

Estava por vir aquilo pelo que,

por muito, íamos no tio José. E logo

os três ou quatro primos e primas

que tinham sumido, reapareciam.

Traziam duas ou três cestas de vime,

desse vime marrom quase envernizado.

E cada um deles, pra lá de cheio,

derramando figos. Sem nenhum exagero, 

aqueles eram os figos mais bonitos que

vira até então e que me lembro até hoje, 

quando aqui tento revivê-los no

Youtube da minha cabeça,

 reativando lembranças que

me marcaram quando criança.

Os figos “gordos” e meio “rachados”

vinham de de figueiras que se

enfileiravam morro acima, costeando

o caminho que levava à roça, onde só

com carroça era possível passar.

3

Eu gosto de figo.

Leva um tempinho pra descascar,

mas quando madurinho, grande e doce

como aqueles, vale a pena.

Também gosto das folhas das figueiras.

Sua ramagem quando dá pra dá;

transforma-se em ornamento que nunca

sai de moda. E foi por aquela lembrança

dos sábados de figo na casa do tio José,

lá aonde o “diabo perdeu as botas”

na Linha Poço Grande - é que num sábado

fui a uma dessas casas que vendem mudas

de tudo que é fruta, e achei e comprei,

uma mudinha de figueira.

Estava na calçada da revenda.

Parecia criancinha abandonada à espera

de adoção. Como sempre

– minha esperança que vingasse não era

o forte, mas a vontade de rever um pé

de figo e, ainda mais, no meu pequeno lote

de casa, seria como eu com um número 

- ganhar uma rifa em 100. Igual à videira

que saiu aqui há uma semana, também

a figueira meio que caiu no esquecimento. 

Deixei ao Deus dará, depois de plantá-la

como vi na internet e o cara que me vendeu

a muda, aconselhou.


4

Com o passar dos meses 

a figueira pareceu 

querer seguir seu curso natural,

e crescer para o alto, porquanto plantada.

Não sabia nada de qualidade da terra

e nem de rega etecétera e tal.

E como no caso da videira

– tive mais sorte que juízo e, com certeza

a mãe natureza, fez tudo por mim,

ou pela figueira, até que ela começou

a ganhar corpo e expandir-se

para os lados.  Bem no início,

o meu jardineiro (eu tenho jardineiro?),

enfim, os dois senhores que cortam

a grama, ajeitam as folhagens, limpam o lote

e coisa e tal, ficavam em dúvida se deviam

tirar a figueira – mas ao passar do tempo

ela se impôs e ficou adulta.

De criança à adolescência a figueira levou

uns três anos – mas da adolescência

à fase adulta foi um pulo de um ano.

Hoje ela é um ser vivo que respira,

se alimenta, toma muito banho de sol,

e se refresca com a chuva. Nunca se queixa

e, ainda por cima, desde o ano passado

vem ensaiando dar frutos. Imagina só.

Talvez queira agradecer quem

a recolhera numa calçada. Eu a trouxe,

plantei e lhe dei um pouco de terra fofa.

 Recém plantada não deixava passar sede e,

o resto, ficou por conta da própria figueira

e do tempo. Não sei se sonhei

ou vi mesmo – mas um dia, desconfio, 

gravemente, 

que vi as duas de mãos

dadas trocando fidelidades e carícias

de mãe pra filho ou filha.

5

E eis que naqueles anos quando já tinha

meus 13 a 14 anos e passava as férias

de verão em Sede Dourado, na casa

do tio Guido – perto do tio José -, num fim

de tarde depois de torcermos muito

para o sol apressar a maturação dos figos e,

de um dia na roça, fomos em quatro

ou cinco para a fileira de figueiras que 

ornamentava com sua ramagem e 

folhas carnudas, os altos de um potreiro.

As figueiras se escoravam numa taipa

de pedra erguida à mão sabe-se lá quando.  

A fartura era tanta que cada um tinha

seu pé preferido e, ali mesmo,

ia tirando, abrindo e comendo. Só sobrava

a casca. Não precisava nem descascar

porque os figos eram tão maduros

que a casca saía com as unhas.

“O que não mata, engorda!”. Mas na real

– quando maduros no ponto ou quase passando do ponto, a casca pode ser

liberada com as unhas. O resto – shhheeeeeeeellllllééééééépppp!


6

Fora um dia muito quente.

E o sol bronzeara 

muitos figos. Cada um dos primos num pé, e eu 

no meu,

escalando cada vez mais alto,

metendo a mão, o punho, o braço,

o ombro, a orelha, a cabeça por entre

aquelas folhas verdonas.

Eu não sei por que os figos mais bonitos

– e assim é quase com todas as frutas -,

se fazem mais altos, lá nas copas.

Na ponta dos dedos dos pés na taipa,

quase querendo escorregar, eu ia

puxando os galhos, as ramagens

da figueira para perto e tirando

figo por figo. Quem me tentasse ver

– se visse, me veria figueira.

Sim, porque os mais bonitos,

querendo rachar de tão madurinhos,

se exibiam lá, bem lá em cima na copa

das copas. E pra chegar lá era só puxando

mais e mais as ramagens.

7

E fui fazendo isso.

Puxei, puxei, puxei; a ramagem cedeu

e cedeu sem quebrar, até os figões

estarem ao meu alcance.

Quando eu levei a mão para apanhar

três figos de uma vez só, Meu Deus!

Eu sei que você também vai gritar.

Ali – a dois dedos da minha mão

e a um palmo do meu rosto,

na minha cara

– uma cobra.

“Meu Deus!”,

“Mãe do Céu!”,

“Minha Nossa!”.

Isso – não segure.

Grite. 

Me ajude a gritar.

Eu estou ouvindo.

Ela estava na copa da ramagem

mais alta, aquela que eu havia puxado

ra pertinho de mim.

 Estaria guardando os figos

ou apenas tomando banho de sol!?

Não sei.

Era grande.

Toda enrolada.

Segurando a si mesma

– mas com boa parte do seu dorso

e a cabeça toda à luz do sol.

Confundia-se com o verde escuro

das folhas,

com as folhas mais desgastadas

– queimadas pelo sol

e com o roxo escuro dos figos.

Eu só me lembro que quando vi aquilo,

ali, perto das minhas sobrancelhas

– num ato instintivo

e, surpreendentemente calmo

para fazer aquilo, abri a mão,

e a ramagem, livre, voltou

para seu estado natural,

para seu lugar normal,

levando consigo os figos grandes e negros

e, ela, a cobra.

Quando me dei conta e a ficha caiu

– eu já estava no chão, na soleira da taipa

de pedras. A vontade e a volúpia

por mais figos desaparecera como

um choque. Nunca mais em embrenhei

em figueiras, ainda mais sobre taipas

de pedras ardidas de tanto sol.




8

Mais de 50 anos depois continuo

gostando de figos.

E mais – admiro a árvore, as folhas carnudas

e seu verde escuro.

Das ramagens então – nem se fala.

Me encanto quando um figo

está ensaiando amadurecer,

e conferir depois do sol do dia seguinte,

se já bronzeou o suficiente.

Me aguça a lembrança vendo os pingos

da chuva fazendo barulho sobre

as folhas da figueira e o escorrer deles.

No fundo, consigo sentir um pequeno

concerto da natureza.

Minha figueirinha que levei para casa

ainda criancinha, hoje enfeita

meu pedacinho de lote,

me presenteando com seu garbo,

me permitindo apreciar mais

que uma árvore

– uma paisagem inteira que se fez

lá atrás no tempo. 

Figos - eles fazem a festa de abelhas 

e passarinhos.

E se por entre as folhas

da minha figueira já adulta me escoa

também a lembrança daquele dia aterrorizante, 

deleto aquela imagem

e reabilito uma nova,

abrindo a pasta das belezas

inesquecíveis, onde me reencontro

com a inquietude da tia Khita,

com o esvoaçar de penas e o cacarejar

da galinha que se atravessa embaixo

do carro do meu pai

e,

com a doçura,

dos figos do tio José.