(Dedico, com gratidão, a todos os
meus ex-colegas e amigos, que fiz nos 21 anos na reitoria da URI)
1
Naqueles anos quando eu tinha 10 a 12 anos e, aos sábados ia com meus pais
para Sede
Dourado onde residiam
todos os
seus irmãos
e cunhados e
pais e parentes, enfim,
ali estavam
suas raízes, depois das
Colônias
Velhas, quase sempre
dormíamos no
tio Guido.
Mas de lá
estendíamos as visitas.
Ora no tio Arno, ora no tio Pedro, ora
no tio
Aloísio, ora no tio João – todos
de Sede
Dourado. Todos hoje,
residentes no
céu.
Uns irmãos
da minha mãe Melita
e outros
irmãos do meu pai Alberto.
Nos
fevereiros, como agora,
não podíamos
deixar de ir no tio José,
o irmão mais
velho
do meu pai.
Por vezes de Jipe, por vezes
com uma Barata Ford, por vezes uma
Vemaguet, por vezes um fusca.
Saindo da
geral entrávamos numa
estradinha
sem saída. O ponto final dela
dava na
casa. À esquerda uma
sanga falava
protegida por folhas
de Costela
de Adão. À direita um milharal
e mandiocais. Na chegada à casa do tio
era aquela
correria. Toda vez uma galinha
se
atravessava e se metia embaixo
do carro e
saía perdendo penas,
cacarejando
em reclamos. O tio José
e sua esposa
Suzana Brígida
(apelido
Khita em alemão)
tinham
muitos filhos.
Era uma
alegria contagiante.
A tia Khita
era uma dessas senhoras
baixinhas,
gordinhas – e “elétricas”.
Fazia duas,
três coisas ao mesmo tempo
e não parava
de funcionar, furungar
e falar um
minuto. E era só “mein Gott”,
pra cá e
“mein Gott” pra lá. A simpatia
em carne e
osso. Seu filho mais novo
tem hoje o
“Restaurante Ody”
ali na JB
Cabral. Quem quiser ter uma ideia
da tia Khita,
vá ali falar com o Frantz
– como se
pronuncia em alemão.
Nasceu rindo
e assim ficou.
Voltando ao
cenário da chegada na casa
do tio José,
logo uns três a quatro primos
e primas sumiam. Onde teriam ido!?
Um outro de
espingarda a tira colo corria
trás de um
galo – pobre galo que à noite
seria nossa
carne no risoto.
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Depois de
quase uma hora de conversas
– a maioria
tarvessadas - com os tios,
onde a tia
Khita falava 70% do tempo,
já
adiantando que não ficaríamos para
dormir; as
cadeiras de palha em círculo
sob pés de
caqui e bergamoteiras,
começaram a
ganhar pratos e facas.
Minha barriga
roncava de satisfação.
Estava por
vir aquilo pelo que,
por muito, íamos
no tio José. E logo
os três ou
quatro primos e primas
que tinham
sumido, reapareciam.
Traziam duas
ou três cestas de vime,
desse vime marrom
quase envernizado.
E cada um
deles, pra lá de cheio,
derramando figos. Sem nenhum exagero,
aqueles eram os figos mais bonitos que
vira até então e que me lembro até hoje,
quando aqui tento revivê-los no
Youtube da
minha cabeça,
reativando lembranças que
me marcaram
quando criança.
Os figos
“gordos” e meio “rachados”
vinham de de
figueiras que se
enfileiravam
morro acima, costeando
o caminho
que levava à roça, onde só
com carroça
era possível passar.
3
Eu gosto de
figo.
Leva um
tempinho pra descascar,
mas quando
madurinho, grande e doce
como
aqueles, vale a pena.
Também gosto
das folhas das figueiras.
Sua ramagem
quando dá pra dá;
transforma-se
em ornamento que nunca
sai de moda.
E foi por aquela lembrança
dos sábados
de figo na casa do tio José,
lá aonde o
“diabo perdeu as botas”
na Linha
Poço Grande - é que num sábado
fui a uma
dessas casas que vendem mudas
de tudo que
é fruta, e achei e comprei,
uma mudinha
de figueira.
Estava na
calçada da revenda.
Parecia
criancinha abandonada à espera
de adoção. Como
sempre
– minha
esperança que vingasse não era
o forte, mas
a vontade de rever um pé
de figo e,
ainda mais, no meu pequeno lote
de casa, seria como eu com um número
- ganhar uma rifa em 100. Igual à videira
que saiu
aqui há uma semana, também
a figueira meio que caiu no esquecimento.
Deixei ao Deus dará, depois de plantá-la
como vi na
internet e o cara que me vendeu
a muda,
aconselhou.
4
Com o passar dos meses
a figueira pareceu
querer seguir seu curso natural,
e crescer para o alto, porquanto plantada.
Não sabia
nada de qualidade da terra
e nem de
rega etecétera e tal.
E como no
caso da videira
– tive mais
sorte que juízo e, com certeza
a mãe
natureza, fez tudo por mim,
ou pela
figueira, até que ela começou
a ganhar
corpo e expandir-se
para os
lados. Bem no início,
o meu jardineiro
(eu tenho jardineiro?),
enfim, os
dois senhores que cortam
a grama, ajeitam
as folhagens, limpam o lote
e coisa e
tal, ficavam em dúvida se deviam
tirar a
figueira – mas ao passar do tempo
ela se impôs
e ficou adulta.
De criança à
adolescência a figueira levou
uns três
anos – mas da adolescência
à fase
adulta foi um pulo de um ano.
Hoje ela é
um ser vivo que respira,
se alimenta,
toma muito banho de sol,
e se refresca
com a chuva. Nunca se queixa
e, ainda por
cima, desde o ano passado
vem
ensaiando dar frutos. Imagina só.
Talvez
queira agradecer quem
a recolhera
numa calçada. Eu a trouxe,
plantei e lhe dei um pouco de terra fofa.
Recém plantada não deixava passar sede e,
o resto, ficou
por conta da própria figueira
e do tempo.
Não sei se sonhei
ou vi mesmo – mas um dia, desconfio,
gravemente,
que vi as duas de mãos
dadas
trocando fidelidades e carícias
de mãe pra
filho ou filha.
5
E eis que
naqueles anos quando já tinha
meus 13 a 14
anos e passava as férias
de verão em
Sede Dourado, na casa
do tio Guido
– perto do tio José -, num fim
de tarde
depois de torcermos muito
para o sol
apressar a maturação dos figos e,
de um dia na
roça, fomos em quatro
ou cinco para a fileira de figueiras que
ornamentava com sua ramagem e
folhas carnudas,
os altos de um potreiro.
As figueiras
se escoravam numa taipa
de pedra
erguida à mão sabe-se lá quando.
A fartura
era tanta que cada um tinha
seu pé
preferido e, ali mesmo,
ia tirando,
abrindo e comendo. Só sobrava
a casca. Não
precisava nem descascar
porque os
figos eram tão maduros
que a casca
saía com as unhas.
“O que não
mata, engorda!”. Mas na real
– quando
maduros no ponto ou quase passando do ponto, a casca pode ser
liberada com
as unhas. O resto – shhheeeeeeeellllllééééééépppp!
6
Fora um dia
muito quente.
E o sol bronzeara
muitos figos. Cada um dos primos num pé, e eu
no meu,
escalando
cada vez mais alto,
metendo a
mão, o punho, o braço,
o ombro, a
orelha, a cabeça por entre
aquelas
folhas verdonas.
Eu não sei por
que os figos mais bonitos
– e assim é
quase com todas as frutas -,
se fazem
mais altos, lá nas copas.
Na ponta dos
dedos dos pés na taipa,
quase
querendo escorregar, eu ia
puxando os
galhos, as ramagens
da figueira
para perto e tirando
figo por
figo. Quem me tentasse ver
– se visse,
me veria figueira.
Sim, porque
os mais bonitos,
querendo
rachar de tão madurinhos,
se exibiam lá,
bem lá em cima na copa
das copas. E
pra chegar lá era só puxando
mais e mais as
ramagens.
7
E fui
fazendo isso.
Puxei,
puxei, puxei; a ramagem cedeu
e cedeu sem
quebrar, até os figões
estarem ao
meu alcance.
Quando eu
levei a mão para apanhar
três figos
de uma vez só, Meu Deus!
Eu sei que
você também vai gritar.
Ali – a dois
dedos da minha mão
e a um palmo
do meu rosto,
na minha
cara
– uma cobra.
“Meu Deus!”,
“Mãe do
Céu!”,
“Minha Nossa!”.
Isso – não
segure.
Grite.
Me ajude a
gritar.
Eu estou
ouvindo.
Ela estava
na copa da ramagem
mais alta,
aquela que eu havia puxado
ra pertinho
de mim.
Estaria guardando os figos
ou apenas tomando
banho de sol!?
Não sei.
Era grande.
Toda
enrolada.
Segurando a
si mesma
– mas com
boa parte do seu dorso
e a cabeça
toda à luz do sol.
Confundia-se
com o verde escuro
das folhas,
com as
folhas mais desgastadas
– queimadas
pelo sol
e com o roxo
escuro dos figos.
Eu só me
lembro que quando vi aquilo,
ali, perto
das minhas sobrancelhas
– num ato
instintivo
e,
surpreendentemente calmo
para fazer
aquilo, abri a mão,
e a ramagem,
livre, voltou
para seu
estado natural,
para seu
lugar normal,
levando
consigo os figos grandes e negros
e, ela, a
cobra.
Quando me
dei conta e a ficha caiu
– eu já
estava no chão, na soleira da taipa
de pedras. A
vontade e a volúpia
por mais
figos desaparecera como
um choque. Nunca
mais em embrenhei
em
figueiras, ainda mais sobre taipas
de pedras ardidas
de tanto sol.
8
Mais de 50
anos depois continuo
gostando de
figos.
E mais – admiro
a árvore, as folhas carnudas
e seu verde
escuro.
Das ramagens
então – nem se fala.
Me encanto
quando um figo
está
ensaiando amadurecer,
e conferir depois
do sol do dia seguinte,
se já
bronzeou o suficiente.
Me aguça a
lembrança vendo os pingos
da chuva fazendo
barulho sobre
as folhas da
figueira e o escorrer deles.
No fundo,
consigo sentir um pequeno
concerto da
natureza.
Minha
figueirinha que levei para casa
ainda
criancinha, hoje enfeita
meu
pedacinho de lote,
me
presenteando com seu garbo,
me
permitindo apreciar mais
que uma
árvore
– uma
paisagem inteira que se fez
lá atrás no tempo.
Figos - eles fazem a festa de abelhas
e passarinhos.
E se por entre as folhas
da minha
figueira já adulta me escoa
também a lembrança daquele dia aterrorizante,
deleto aquela imagem
e reabilito
uma nova,
abrindo a
pasta das belezas
inesquecíveis,
onde me reencontro
com a
inquietude da tia Khita,
com o esvoaçar
de penas e o cacarejar
da galinha
que se atravessa embaixo
do carro do meu
pai
e,
com a doçura,
dos figos do
tio José.