sábado, 6 de fevereiro de 2021

A doçura dos figos do tio José

 


(Dedico, com gratidão, a todos os meus ex-colegas e amigos, que fiz nos 21 anos na reitoria da URI)


1

Naqueles anos quando eu tinha 10 a 12 anos e, aos sábados ia com meus pais

para Sede Dourado onde residiam

todos os seus irmãos

e cunhados e pais e parentes, enfim,

ali estavam suas raízes, depois das

Colônias Velhas, quase sempre

dormíamos no tio Guido.

Mas de lá estendíamos as visitas.

 Ora no tio Arno, ora no tio Pedro, ora

no tio Aloísio, ora no tio João – todos

de Sede Dourado. Todos hoje,

residentes no céu.

Uns irmãos da minha mãe Melita

e outros irmãos do meu pai Alberto.

Nos fevereiros, como agora,

não podíamos deixar de ir no tio José,

o irmão mais velho

do meu pai. Por vezes de Jipe, por vezes

com uma Barata Ford, por vezes uma 

Vemaguet, por vezes um fusca.

Saindo da geral entrávamos numa

estradinha sem saída. O ponto final dela

dava na casa. À esquerda uma

sanga falava protegida por folhas

de Costela de Adão. À direita um milharal

 e mandiocais. Na chegada à casa do tio

era aquela correria. Toda vez uma galinha

se atravessava e se metia embaixo

do carro e saía perdendo penas,

cacarejando em reclamos. O tio José

e sua esposa Suzana Brígida

(apelido Khita em alemão)

tinham muitos filhos. 

Era uma alegria contagiante.

A tia Khita era uma dessas senhoras

baixinhas, gordinhas – e “elétricas”.

Fazia duas, três coisas ao mesmo tempo

e não parava de funcionar, furungar

e falar um minuto. E era só “mein Gott”,

pra cá e “mein Gott” pra lá. A simpatia

em carne e osso. Seu filho mais novo

tem hoje o “Restaurante Ody”

ali na JB Cabral. Quem quiser ter uma ideia

da tia Khita, vá ali falar com o Frantz

– como se pronuncia em alemão.

Nasceu rindo e assim ficou.

Voltando ao cenário da chegada na casa

do tio José, logo uns três a quatro primos

 e primas sumiam. Onde teriam ido!?

Um outro de espingarda a tira colo corria

trás de um galo – pobre galo que à noite

seria nossa carne no risoto.


2

Depois de quase uma hora de conversas

– a maioria tarvessadas - com os tios,

onde a tia Khita falava 70% do tempo,

já adiantando que não ficaríamos para

dormir; as cadeiras de palha em círculo

sob pés de caqui e bergamoteiras,

começaram a ganhar pratos e facas.

Minha barriga roncava de satisfação.

Estava por vir aquilo pelo que,

por muito, íamos no tio José. E logo

os três ou quatro primos e primas

que tinham sumido, reapareciam.

Traziam duas ou três cestas de vime,

desse vime marrom quase envernizado.

E cada um deles, pra lá de cheio,

derramando figos. Sem nenhum exagero, 

aqueles eram os figos mais bonitos que

vira até então e que me lembro até hoje, 

quando aqui tento revivê-los no

Youtube da minha cabeça,

 reativando lembranças que

me marcaram quando criança.

Os figos “gordos” e meio “rachados”

vinham de de figueiras que se

enfileiravam morro acima, costeando

o caminho que levava à roça, onde só

com carroça era possível passar.

3

Eu gosto de figo.

Leva um tempinho pra descascar,

mas quando madurinho, grande e doce

como aqueles, vale a pena.

Também gosto das folhas das figueiras.

Sua ramagem quando dá pra dá;

transforma-se em ornamento que nunca

sai de moda. E foi por aquela lembrança

dos sábados de figo na casa do tio José,

lá aonde o “diabo perdeu as botas”

na Linha Poço Grande - é que num sábado

fui a uma dessas casas que vendem mudas

de tudo que é fruta, e achei e comprei,

uma mudinha de figueira.

Estava na calçada da revenda.

Parecia criancinha abandonada à espera

de adoção. Como sempre

– minha esperança que vingasse não era

o forte, mas a vontade de rever um pé

de figo e, ainda mais, no meu pequeno lote

de casa, seria como eu com um número 

- ganhar uma rifa em 100. Igual à videira

que saiu aqui há uma semana, também

a figueira meio que caiu no esquecimento. 

Deixei ao Deus dará, depois de plantá-la

como vi na internet e o cara que me vendeu

a muda, aconselhou.


4

Com o passar dos meses 

a figueira pareceu 

querer seguir seu curso natural,

e crescer para o alto, porquanto plantada.

Não sabia nada de qualidade da terra

e nem de rega etecétera e tal.

E como no caso da videira

– tive mais sorte que juízo e, com certeza

a mãe natureza, fez tudo por mim,

ou pela figueira, até que ela começou

a ganhar corpo e expandir-se

para os lados.  Bem no início,

o meu jardineiro (eu tenho jardineiro?),

enfim, os dois senhores que cortam

a grama, ajeitam as folhagens, limpam o lote

e coisa e tal, ficavam em dúvida se deviam

tirar a figueira – mas ao passar do tempo

ela se impôs e ficou adulta.

De criança à adolescência a figueira levou

uns três anos – mas da adolescência

à fase adulta foi um pulo de um ano.

Hoje ela é um ser vivo que respira,

se alimenta, toma muito banho de sol,

e se refresca com a chuva. Nunca se queixa

e, ainda por cima, desde o ano passado

vem ensaiando dar frutos. Imagina só.

Talvez queira agradecer quem

a recolhera numa calçada. Eu a trouxe,

plantei e lhe dei um pouco de terra fofa.

 Recém plantada não deixava passar sede e,

o resto, ficou por conta da própria figueira

e do tempo. Não sei se sonhei

ou vi mesmo – mas um dia, desconfio, 

gravemente, 

que vi as duas de mãos

dadas trocando fidelidades e carícias

de mãe pra filho ou filha.

5

E eis que naqueles anos quando já tinha

meus 13 a 14 anos e passava as férias

de verão em Sede Dourado, na casa

do tio Guido – perto do tio José -, num fim

de tarde depois de torcermos muito

para o sol apressar a maturação dos figos e,

de um dia na roça, fomos em quatro

ou cinco para a fileira de figueiras que 

ornamentava com sua ramagem e 

folhas carnudas, os altos de um potreiro.

As figueiras se escoravam numa taipa

de pedra erguida à mão sabe-se lá quando.  

A fartura era tanta que cada um tinha

seu pé preferido e, ali mesmo,

ia tirando, abrindo e comendo. Só sobrava

a casca. Não precisava nem descascar

porque os figos eram tão maduros

que a casca saía com as unhas.

“O que não mata, engorda!”. Mas na real

– quando maduros no ponto ou quase passando do ponto, a casca pode ser

liberada com as unhas. O resto – shhheeeeeeeellllllééééééépppp!


6

Fora um dia muito quente.

E o sol bronzeara 

muitos figos. Cada um dos primos num pé, e eu 

no meu,

escalando cada vez mais alto,

metendo a mão, o punho, o braço,

o ombro, a orelha, a cabeça por entre

aquelas folhas verdonas.

Eu não sei por que os figos mais bonitos

– e assim é quase com todas as frutas -,

se fazem mais altos, lá nas copas.

Na ponta dos dedos dos pés na taipa,

quase querendo escorregar, eu ia

puxando os galhos, as ramagens

da figueira para perto e tirando

figo por figo. Quem me tentasse ver

– se visse, me veria figueira.

Sim, porque os mais bonitos,

querendo rachar de tão madurinhos,

se exibiam lá, bem lá em cima na copa

das copas. E pra chegar lá era só puxando

mais e mais as ramagens.

7

E fui fazendo isso.

Puxei, puxei, puxei; a ramagem cedeu

e cedeu sem quebrar, até os figões

estarem ao meu alcance.

Quando eu levei a mão para apanhar

três figos de uma vez só, Meu Deus!

Eu sei que você também vai gritar.

Ali – a dois dedos da minha mão

e a um palmo do meu rosto,

na minha cara

– uma cobra.

“Meu Deus!”,

“Mãe do Céu!”,

“Minha Nossa!”.

Isso – não segure.

Grite. 

Me ajude a gritar.

Eu estou ouvindo.

Ela estava na copa da ramagem

mais alta, aquela que eu havia puxado

ra pertinho de mim.

 Estaria guardando os figos

ou apenas tomando banho de sol!?

Não sei.

Era grande.

Toda enrolada.

Segurando a si mesma

– mas com boa parte do seu dorso

e a cabeça toda à luz do sol.

Confundia-se com o verde escuro

das folhas,

com as folhas mais desgastadas

– queimadas pelo sol

e com o roxo escuro dos figos.

Eu só me lembro que quando vi aquilo,

ali, perto das minhas sobrancelhas

– num ato instintivo

e, surpreendentemente calmo

para fazer aquilo, abri a mão,

e a ramagem, livre, voltou

para seu estado natural,

para seu lugar normal,

levando consigo os figos grandes e negros

e, ela, a cobra.

Quando me dei conta e a ficha caiu

– eu já estava no chão, na soleira da taipa

de pedras. A vontade e a volúpia

por mais figos desaparecera como

um choque. Nunca mais em embrenhei

em figueiras, ainda mais sobre taipas

de pedras ardidas de tanto sol.




8

Mais de 50 anos depois continuo

gostando de figos.

E mais – admiro a árvore, as folhas carnudas

e seu verde escuro.

Das ramagens então – nem se fala.

Me encanto quando um figo

está ensaiando amadurecer,

e conferir depois do sol do dia seguinte,

se já bronzeou o suficiente.

Me aguça a lembrança vendo os pingos

da chuva fazendo barulho sobre

as folhas da figueira e o escorrer deles.

No fundo, consigo sentir um pequeno

concerto da natureza.

Minha figueirinha que levei para casa

ainda criancinha, hoje enfeita

meu pedacinho de lote,

me presenteando com seu garbo,

me permitindo apreciar mais

que uma árvore

– uma paisagem inteira que se fez

lá atrás no tempo. 

Figos - eles fazem a festa de abelhas 

e passarinhos.

E se por entre as folhas

da minha figueira já adulta me escoa

também a lembrança daquele dia aterrorizante, 

deleto aquela imagem

e reabilito uma nova,

abrindo a pasta das belezas

inesquecíveis, onde me reencontro

com a inquietude da tia Khita,

com o esvoaçar de penas e o cacarejar

da galinha que se atravessa embaixo

do carro do meu pai

e,

com a doçura,

dos figos do tio José.