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Há quatro
anos me atrevi meio como assim quem atira sem a esperança de acertar, e pedi a
um vendedor de produtos da colônia que passa todos os sábados aqui na vizinha,
se ele conhecia a uva “francesa”. Acho que não é nome da espécie, mas para
minha surpresa ele disse que não só conhecia como tinha. Até insisti: “é uma
uva diferente das outras – a casca é fininha e leve, quase não tem aqueles
grãozinhos, e ainda por cima é a uva mais doce que já experimentei.
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Ali depois
de Três Arroios, uns 2 quilômetros, na estradinha que leva a Sede Dourado e
depois a Aratiba, há muitos anos, minha avó, Maria Luíza, por parte de mãe –
viúva, fez um parceiro e com ele passou a morar. Quando íamos com meus pais
visitar a vó, nos janeiros, num momento ou noutro, nos víamos embaixo de um
imenso parreiral. Ele ia da casa de madeira e se estendia até quase à
estradinha. Era muito grande. E ali estava aquela tal de uva “francesa” que
passei a, mais que gostar – admirar. Ela tinha um cheiro que se sentia de longe
e se esparramava pelos ares do potreiro até um riozinho que compunha a tríade
de Três Arroios.
3
Onde eu moro
não há espaço para um parreiral. Nem sei por que pedi pela tal “francesa”. Um
sábado de inverno depois de comprar bolachas, pão caseiro e pés de moleque; o
agricultor a quem pedi sobre as uvas, puxou um feixe de ramos e me alcançou.
“Aqui tão os ramos da ‘uva francesa’ que tu pediu”. Eu fiquei boquiaberto
porque nem lembrava mais. “E como é que eu planto?”, perguntei. Ele simplificou
o plantio pra lá de simplificado: “tu vê onde quer que o pé nasça e enfia na
terra o ramo. Não precisa fazer buraco. Só empurra o ramo um palmo mais ou
menos e pronto”. Beleza – pensei, engolindo que não podia ser tão simples
assim.
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Larguei o
feixe de ramos nos fundos de casa – quem conhece sabe quase não há espaço – e
fui fazer minhas coisas que quase nunca dão em alguma coisa. Continuei com meu
mate vendo um treino de classificação da F-1. A mesma F-1 que depois da partida
do Senna nunca mais foi a mesma, caiu em desgraça e, por vezes, até mais me dói
em ver o espetáculo – porquanto sem o meu ídolo.
5
Passou-se
aquele fim de semana e coisa e tal, e o feixe de ramos de “uva francesa”
continuava no mesmo lugar. Ninguém mexera nele. Vez que outra, olhando para os
ramos, me via sob o imenso parreiral da minha vó. Lembrei que nas Festas di
Bacco, quando se vendia uvas no largo do Santuário de Fátima (hoje é ao lado da
feira do produtor no centro), nunca tinha encontrado a “uva francesa”. Aí me
ocorreu que houve um ano, onde um agricultor me disse que “a francesa é só no
primeiro e no segundo dia, se tiver sorte. Porque tem pouca e sai logo”. Ah –
então havia ainda exemplares da “francesa” na região e, aqueles ramos que o
vendedor de produtos coloniais me trouxe, talvez fossem mesmo da espécie que
fiquei sabendo - escassa na região. Mas era improvável, pensava.
6
Um dia andei
dando uma olhada entre minha casa e a da minha vizinha. Tem um metro e meio de
largura por uns cinco de comprimento. E... se eu tentasse plantar ali. Bem –
podia tentar, mas colher uvas é que não iria. Aliás, meu interesse não era pra
ver cachos, tirar e comer uva – digo sem mentir -, era só por prazer de ver
folhas de parreira e, sentindo ainda o cheiro da “francesa” ali de Três
Arroios, por que não tentar o impossível!
7
Depois que
minha vó faleceu - com ela morreu também seu parreiral. Não lembro se o
parceiro dela faleceu a seguir, mas o fato é que uma vez passando por lá, em
direção a Sede Dourado, não vi mais o parreiral. O lugar agora era da soja. Não
senti apenas um vazio. Senti dois. O vazio geográfico sem o parreiral e o vazio
sentimental, o vazio da ausência, o vazio da saudade, o vazio do cheiro, o
vazio de algo que me fora inesquecível e nunca mais haveria de se repor. O
tempo não cabe numa fita que se pode rebobinar num gravador, ou no You Tube que
se aciona, para, toca em frente, volta, etc. Não. O tempo não para nem volta.
Apenas... evapora, se faz novo e noutro segundo, também já se foi.
8
Eu olhei o
espaçozinho que tinha ao lado de casa e resolvi enfiar alguns ramos no chão,
como recomendado, até mais ou menos um palmo. Quem sabe não “rebobinasse”, pelo
menos a sensação, de que com um ramo enfiado na terra - as folhas, os cachos,
as uvas, o cheiro, enfim, o resto, se refizesse no compartimento das lembranças
inapagáveis que tenho na cabeça ou sei lá aonde. Era, como se diz, um “tiro na
lua”. Uma vontade de reaver algo que o tempo me tomara, e eu, talvez embora nem
fosse meu, não quisesse entregar. Falo do parreiral da minha vó. Agora – se ao
menos eu pudesse ver nascer alguma coisa que eu mesmo havia plantado –
“plantado?” e, quem sabe, por benevolência divina; viesse uma folha,
sinceramente, eu já estaria realizado. E se fosse mesmo a “francesa”, meu Deus
– nem é bom pensar. Por verdade verdadeira, nem pensava mesmo.
9
Com o passar das semanas e meses esqueci os ramos enfiados na terra. Seria algo assim, como a torcida do Inter devia fazer agora: título do brasileirão? - nem pensar. Deixa quieto. Quando se começa a ter esperanças que sequer brotaram, e nada vir, a decepção de derrota tende a ser bem mais doída. Ademais, minha autoestima andava na segunda página da tabela do campeonato de parreiras.
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Um dia levei um susto. A um palmo do chão, um dos ramos que enfiara na terra, tinha alguma coisa pendurada nele. Era como um grão de arroz. Levemente róseo envolvido por uma “seda” verdinha. Cheguei perto e quase caí de costas. Era um botãozinho de flor. Seria a francezinha que estava vindo me cumprimentar!? E assim, aquilo que eu só esperançava por achar bonito, ficaria magnífico. Um “flolharéu” de abas largas se fez com os meses. Eu haveria de me sentar confortavelmente perto daquele lugar só para apreciá-lo. Talvez o resto eu veria pelo You Tube da minha memória que guarda doces lembranças.
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No janeiro
seguinte, em 2018, acredita - deu dois cachinhos. Em 2019 – cinco. Em 2020,
mais de 30. E neste janeiro de chuvas que não querem mais parar, numa tarde de
aposentado e acorrentado pelas ameaças da pandemia – me peguei abrigado pelo
escudo das encorpadas folhas verdes, sob meu parreiralzinho. Com uma pequena
tesoura, cortava os últimos dos cerca de mais de 80 cachinhos deste ano, da
mais leve, fina e doce “uva francesa” que já experimentei.
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A “safra”
foi de tal sorte que colhi outro prazer: destinei quase diariamente, cachinhos
contados nos dedos, para familiares, meu netinho Benjamin, alguns queridos amigos, além da vizinha, dona Idilma. Fora a parte tomada de mim por
passarinhos e abelhas. Pra ser bem verdadeiro comigo mesmo – fico em dúvida: o
sabor da minha uva é igual ao da minha vó lá dos anos 1970/1980, mas o perfume
embaixo da minha parreira de 1,5m/5m, talvez pelo aperto, é de uma legítima
francesa. Só pode.
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Dizem que
todas as uvas, no fim das contas são iguais. Mas não é verdade. As italianas,
por exemplo, nem se fala. Mas a “francesa”, essa que conheci com essa
denominação – no meu paladar é insuperável. Mas não é só uma questão de gosto.
É uma obra que vai além. Envolve arquitetura de cachos com grãos não
sobrepostos, ramificação musculosa, folhas encorpadas. Tem a ver com raridade,
charme e doçura. Enfim, só o perfume da “francesa” me bastaria.