domingo, 21 de fevereiro de 2021

Um pedaço do paraíso (2ª Parte)

 



 

1

Blén, blén, blén, blén, blén.

Cinco horas.

Hora de levantar.

Mas antes já ouvira um arrastar de chinelos

prá cá, prá lá – sim era o meu avô que já estava de pé 

desde às 4 horas, caminhando com seu terço na mão. 

Mas às 5 horas

– os outros também pulavam da cama.

Quando eu saía, já mais tarde, e ia até área dos fundos,

lá vinha vindo minha tia com mais um balde

de leite recém tirado.

A cozinha já estava quentinha.

No fogão a lenha estalava. 

E a imensa mesa

de madeira de lei já começava a ser

posta. Escovando os dentes e lavando

o rosto na torneirinha dos fundos,

ao erguer o olhar dava para a horta cercada. 

Eram cabeças de repolho,

folhas de radicce, cebolinha, salsa,

morangas, morangos, alface e, sei eu mais lá

o quê! Na ponta de uma haste de radicce

que resolveu crescer, um pintassilgo se embalava 

e entoava seu canto, iluminado

pelos primeiros raios de sol e embebendo-se da brisa. 

Conheceria ele o dia seguinte com

tantos boques?

2

Era sábado.

Depois do café as tarefas mais caseiras,

como cortar lenha, fazer algumas limpezas

de semana – mas nada de roça. 

A mais longa

saída era para cortar cana, pastagens,

arrancar umas mandiocas e colher algumas abóboras 

para os animais. 

Também era um bom dia para aumentar o 

estoque de quirela

e lavar roupas. 

Os inços que quisessem voltar

a crescer que o fizessem no fim de semana, 

enquanto que as jararacas que também 

desejassem menos verde e mais calor,

que deixassem o mato e se deleitassem

sob as pedras quentes no meio do milharal 

durante o fim de semana.

Segunda-feira nos reencontraríamos!?

Queira Deus que nunca mais.   

3

Quieto, eu brigava com meu 

demônio interior da semana. 

Amanhã, domingo,

iríamos a pé até a vila para a missa das 9.

E isso representava que teríamos de

atravessar a terrível pinguela sobre o rio Dourado. 

Anos depois comparo que nem mesmo 

Indiana Jones sofreu tanto - sim porque

os desafios e calafrios dele era e são fictícios. 

O meu não. A minha pinguela era real.

me parecia até que ela começava a se embalar,

sozinha, assim que me via.

Velha, com tábuas meio soltas, com um

fio de arame embaixo, outro em cima

para se segurar e outro no meio. 

Tudo amarrado a cepos dos dois

lados do rio, fincados ali,

sabe-se há quantos anos.

Me pareciam ainda mais apodrecidos 

do que realmente eram.

Eram pinguelas daquelas,

isso mesmo, daquelas que você está imaginando, 

construídas no puro instinto

que sempre alguém dirá – mais confiáveis

que as de hoje. 

A verdade é que nem

de perto se comparam ao que se vê hoje

em áreas verdes onde se faz trilhas, onde

se atravessa, sanga,  lago, etc. Nos anos

1960 eram quase armadilhas que balançavam 

sempre no contra-pé, 

pra baixo, pra cima, e para os lados então

 – minha nossa, nem quero lembrar.

E lá embaixo, lááááááá a uns três ou quatro

andares de altura, comparando com

um prédio, o velho e pouco valorizado rio Dourado, 

que em tempos de calmaria,

corria manso, desviando das pedras,

dos troncos e dos entraves que ele mesmo,

em tempos de revolta – um dia trouxera sabe-se lá de 

onde, para atravancá-los

bem aí de onde dificilmente sairiam.

A menos que viesse nova enxurrada,

ainda mais embrabecida - rompendo e levando 

o que houvesse pela frente.

A pinguela - vap e vup, vap e vup - nhennc, nhennccc, 

vap e vup, vap e vup

me apresentara antes a Gabriel Marques Garcia com

sua "Crônica de uma morte anunciada".

Era só trocar a "morte anunciada" por uma 

"queda anunciada" - mas no fim daria no mesmo.

Cair lá de cima e no rio cheio de pedras, galhos,

troncos - era dar adeus à tia Chica.

4

Eu passava a semana carpindo, almoçando

ou dormindo com a pinguela e

seu balanço ameaçador, não, 

ameaçador é pouco, quase nada 

- seu balanço aterrorizante, 

me corroendo, o estômago, 

as tripas, a alma. 

Era pior, bem pior, muito pior  

do que saber com

uma semana de antecedência,

que segunda-feira teria que ir ao dentista 

arrancar um dente ou fazer vacina

no Mantovani – nos anos 1960,

quando as agulhas e até seringas eram fervidas.  

5

Tudo o mais lá na roça era muito gratificante. 

Aquelas paisagens. 

Aquelas uvas.

Aqueles pêssegos. 

Aqueles caquis.

Aqueles figos. 

Aquelas melancias que roncavam "broooook" 

ao serem abertas.

Aqueles melões adocicados a desmanchar

na boca. 

Aqueles banhos de rio.

Aquelas saídas de carroça. 

Aqueles - amanhecer e entardecer.

Aqueles silêncios noturnos.

Aquelas noites que pareciam também 

em sono - recolhidas em si mesmas. 

Não havia vizinhos próximos

- e luz só olhando para o céu com seu

manto estrelado cercando 

um estranho no ninho, ou estranha

- a lua. Cheia e servindo de farol aonde

quer que se olhasse.

Quanto valeria aquilo tudo?

Nunca pedi.

Nunca me cobraram.

Nem sei de quem era.

Mas – quando a imagem da pinguela

aflorava mais forte dentro de mim -,

parecia que tudo perdia o sentido.

Eu vivia um pânico que era único e só meu.

E o pânico se divertia. 

Dava risada.

A semana inteira e quando eu conseguia

dar o último passado saindo dela, 

tremendo mais que a própria 

- colocando o pé em chão firme; 

ela me cutucava: “eheheheheh 

– olha que tem a volta hein!”.

6

Na vila, no largo da Paróquia São Pedro,

a comunidade se via, se encontrava,

se reunia, se falava, e eram tios e tias

a perder de vista. 

Pequenas rodas se faziam e no mais puro alemão

trocavam informações sobre como estava

o milho, o preço do porco,

as perspectivas quanto ao leite, 

quem iria para Erechim naquela semana, 

se alguém estava de cama adoentado,

trocavam "receitas de chás 

e outros 

que tais de experimentos" que deram resultado, 

se alguém sofrera um acidentes na roça ou

fora mordido por um bicho; enfim

– era o JN de Sede Dourado com sua

edição semanal. 

Se falava de festa na gruta,

do carteado à tarde, 

do temporal e dos estragos da semana 

ou da estiagem

que ameaçava se instalar, de perdas

na produção em geral e, sempre saía

uma piada em alguma rodinha, como disse,

no mais legítimo alemão naqueles

cafundós que para mim eram 

um pedaço do paraíso.

Ah – e os Kerbs, vão sair ou não?

Claro que sim – afinal nada se sonhava,

muito menos se projetava - abrir mão da

tradicional festa.

Era evento certo no calendário

- sem consideração a ganhos, perdas ou danos.

7

Ainda preso à volta pela pinguela,

especulava com um ou outro se não teria

uma carona em um daqueles fuscas brancos

ou azuis, marrons ou amarelos. 

Todos, invariavelmente empoeirados

até os dentes das correias.

Aceitaria até no bagageiro de qualquer Rural 

– mas quase nunca aparecia. 

Sim, porque os carros

já chegavam lotados de tantos

alemães, desses que calçam 44, 46

com bíceps e ancas de boi de arado.

Tudo para fugir do vap e vup, vap e vup, nheeennnnnc.


Superado o pânico semanal da pinguela

e ouvindo dela uma gargalhada e

um "até a semana que vem",

o quilômetro de morro no potreiro, 

era uma faceirice para mim.

Nem da jararaca que podia estar me esperando,

eu me lembrava.

8

Ao meio dia em ponto – todos vivos e salvos

– com pinguela e tudo, a galinhada ganhava  

a mesa. Eram legítimos risotos

ou galinhadas domingueiras. Tudo

naquela culinária ou naquele prato,

acompanhado de massa, carnes assadas

e saladas recém colhidas afora os vidrões

de outros legumes em conserva

- pepinos, cebolas, rabantes, repolhos

brancos e roxos;

nos remetia a algo que chamam 

há muito tempo de

banquete sem saber bem o que é.

Muitos ficam na teoria da significância,

na luxúria do conceito 

– mas poucos o conhecem de verdade. 

E antes que todos se sentassem ou

levantassem 

– sempre as preces de

gratidão comandadas

pelo meu avô. Principalmente

na entrada, porque depois do “Amém”

– era um passa prá cá, me alcança,

deixa... eu vou pegar só mais um pouquinho, 

quando o prato já se fazia meio alto.

10

Pobres galináceos, nunca haveriam de se queixar 

em cacarejos que já não tinham mais. 

Se quisessem cacarejar, agora que

o fizessem dentro dos comilões que

faziam ranger o velho banco de

madeira maciça socado no chão da cozinha,

toda vez que se mexiam e remexiam espichando

um braço para de novo encher o prato.

11

À tarde, lá pelas 4, uma nova mesa se fazia

sob os cinamomos. 

E aí era hora do café da tarde. 

Quem viveu o café da tarde

– pode dizer que a vida não é e nem

será em vão. 

Aqueles, com tal privilégio;

tem autoridade para atestar o que de fato é

um banquete.

Hoje as famílias encolheram.

As mesas desapareceram. 

Os hábitos mudaram. 

No lugar das conversas

de pessoa com pessoa,

tudo se foi. 

A televisão

nos fala o que ouvir. 

Aonde a internet pega então 

– o mundo, aquele mundo,

foi apagado e trocado por outro.

Simples assim.

12

Mas, voltando àqueles dias e lembranças

ainda falta uma: proibidos de pescar

no rio Dourado, especialmente

no Poço Grande porque até hoje

ninguém sabe de fato quantos metros

de profundidade tem, de anzóis aos ombros

e minhocas numa latinha, íamos até

uma sanga ou riacho, 

ou riozinho que desembocava no Dourado.

Lá, com laterais descampadas

e gramadas, jogávamos os anzóis

na água quase sempre corrente com ou

outro pocinho – manso. 

Não demorava

e a linha começava a tremer. 

Estavam beliscando as iscas e, sem demora,

os lambaris voavam na ponta da linha

por sobre nossas cabeças. 

De repente,

as nuvens que já ameaçavam desde o meio

da manhã, se juntavam e, 

sem aviso despejavam uma chuva que logo fazia

a água trocar de cor. 

Aí era a hora dos

jundiás saírem das tocas que à noite

enchiam as frigideiras – fechando um

domingo longe dos estresses das cidades,

dos assaltos, dos acidentes, dos incidentes,

das discussões banais, do trânsito que

por si só não tem culpa de nada,

da violência desmedida e fora de controle,

da violência de eras pretéritas do homem, 

das TVs com mil canais,

dos Youtubes, 

das séries,

enfim;

dos silêncios dos sós.

O silêncio do... um.

13

À noite, naqueles tempos;

depois da chuva

– ainda com o cheiro dela,

meu tio ligava um rádio à bateria

pra saber pela Aratiba se algum

conhecido havia morrido,

ou como o Inter tinha ido naquele domingo.

Com a cadeira apoiada em “duas pernas”,

e encostada na parede da varanda,

meu tio Guido puxava um palheiro e

falava então de seu otimismo, 

ensinando que

aquela chuva daria novo ânimo ao milho,

às culturas, ao potreiro.

Haveria mais leite, mais queijo, mais carne,

mais milho, mais frutas 

Mas quando a chuva 

trazia a tiracolo um temporal 

com suas malvadezas, 

ou quando a seca fazia

o chão arder a sola dos pés, 

só sim se falava,

de fato, sobre economia. 

Haveria perdas em dinheiro

no fim das contas mais adiante.


O inapagável daqueles cafundós

da Linha Poço Grande, em Sede Dourado,

o que importava era a certeza

– nunca dita, nem tangível - mas vivida 

em intensidade que a gente só hoje se dá conta -, 

é que que , lá - ali

se estava num

pedacinho do paraíso.

Algo que hoje em dia,

as gentes da cidade andam buscando,

quase loucamente, em anúncios de internet

e bem dispostas e quase, em alguns casos;

entregar os olhos da cara em troca.

Vale?

Se for como eu vi e vivi - não tem preço.

Adão e Eva eram felizes e não sabiam.

Queriam conhecer - num exagero proposital meu -

queriam conhecer os edifícios, o trânsito,

os ranços, as discordâncias, as futilidades,

as tragédias estúpidas, a ganância.

Acabaram por criar ao menos uma coisa:

"Lançaram uma vida de trás para o início".

Por que hoje - não são poucos os que

desejam fugir das cidades e

sonham em balançar-se numa pinguela,

esquentar a água na chapa de um fogão,

jogar o anzol numa sanga,

observar atento ao silêncio,

encher as narinas com o perfume das flores

do campo, 

e depois, dormir num colchão de palha 

frestiando o manto do céu tecido à estrelas e lua.