1
Blén, blén,
blén, blén, blén.
Cinco horas.
Hora de
levantar.
Mas antes já
ouvira um arrastar de chinelos
prá cá, prá lá – sim era o meu avô que já estava de pé
desde às 4 horas, caminhando com seu terço na mão.
Mas às 5 horas
– os outros
também pulavam da cama.
Quando eu
saía, já mais tarde, e ia até área dos fundos,
lá vinha
vindo minha tia com mais um balde
de leite
recém tirado.
A cozinha já
estava quentinha.
No fogão a lenha estalava.
E a imensa mesa
de madeira
de lei já começava a ser
posta.
Escovando os dentes e lavando
o rosto na
torneirinha dos fundos,
ao erguer o olhar dava para a horta cercada.
Eram cabeças de repolho,
folhas de
radicce, cebolinha, salsa,
morangas,
morangos, alface e, sei eu mais lá
o quê! Na
ponta de uma haste de radicce
que resolveu crescer, um pintassilgo se embalava
e entoava seu canto, iluminado
pelos primeiros raios de sol e embebendo-se da brisa.
Conheceria ele o dia seguinte com
tantos
boques?
2
Era sábado.
Depois do
café as tarefas mais caseiras,
como cortar
lenha, fazer algumas limpezas
de semana – mas nada de roça.
A mais longa
saída era
para cortar cana, pastagens,
arrancar umas mandiocas e colher algumas abóboras
para os animais.
Também era um bom dia para aumentar o
estoque de quirela
e lavar roupas.
Os inços que quisessem voltar
a crescer que o fizessem no fim de semana,
enquanto que as jararacas que também
desejassem menos verde e mais calor,
que
deixassem o mato e se deleitassem
sob as pedras quentes no meio do milharal
durante o fim de semana.
Segunda-feira nos reencontraríamos!?
Queira Deus
que nunca mais.
3
Quieto, eu brigava com meu
demônio interior da semana.
Amanhã, domingo,
iríamos a pé
até a vila para a missa das 9.
E isso
representava que teríamos de
atravessar a terrível pinguela sobre o rio Dourado.
Anos depois comparo que nem mesmo
Indiana Jones sofreu tanto - sim porque
os desafios e calafrios dele era e são fictícios.
O meu não. A minha pinguela era real.
me parecia até que ela começava a se embalar,
sozinha, assim que me via.
Velha, com tábuas meio soltas, com um
fio de arame
embaixo, outro em cima
para se segurar e outro no meio.
Tudo amarrado a cepos dos dois
lados do rio, fincados ali,
sabe-se há quantos anos.
Me pareciam ainda mais apodrecidos
do que realmente eram.
Eram pinguelas daquelas,
isso mesmo, daquelas que você está imaginando,
construídas no puro instinto
que sempre
alguém dirá – mais confiáveis
que as de hoje.
A verdade é que nem
de perto se
comparam ao que se vê hoje
em áreas verdes
onde se faz trilhas, onde
se atravessa,
sanga, lago, etc. Nos anos
1960 eram quase armadilhas que balançavam
sempre no contra-pé,
pra baixo, pra cima, e para os lados então
– minha nossa, nem quero lembrar.
E lá
embaixo, lááááááá a uns três ou quatro
andares de
altura, comparando com
um prédio, o velho e pouco valorizado rio Dourado,
que em tempos de calmaria,
corria
manso, desviando das pedras,
dos troncos
e dos entraves que ele mesmo,
em tempos de revolta – um dia trouxera sabe-se lá de
onde, para atravancá-los
bem aí de
onde dificilmente sairiam.
A menos que viesse nova enxurrada,
ainda mais embrabecida - rompendo e levando
o que houvesse pela frente.
A pinguela - vap e vup, vap e vup - nhennc, nhennccc,
vap e vup, vap e vup
me apresentara antes a Gabriel Marques Garcia com
sua "Crônica de uma morte anunciada".
Era só trocar a "morte anunciada" por uma
"queda anunciada" - mas no fim daria no mesmo.
Cair lá de cima e no rio cheio de pedras, galhos,
troncos - era dar adeus à tia Chica.
4
Eu passava a
semana carpindo, almoçando
ou dormindo
com a pinguela e
seu balanço ameaçador, não,
ameaçador é pouco, quase nada
- seu balanço aterrorizante,
me corroendo, o estômago,
as tripas, a alma.
Era pior, bem pior, muito pior
do que saber com
uma semana
de antecedência,
que segunda-feira teria que ir ao dentista
arrancar um dente ou fazer vacina
no Mantovani
– nos anos 1960,
quando as
agulhas e até seringas eram fervidas.
5
Tudo o mais lá na roça era muito gratificante.
Aquelas paisagens.
Aquelas uvas.
Aqueles pêssegos.
Aqueles caquis.
Aqueles figos.
Aquelas melancias que roncavam "broooook"
ao serem abertas.
Aqueles
melões adocicados a desmanchar
na boca.
Aqueles
banhos de rio.
Aquelas saídas de carroça.
Aqueles - amanhecer e entardecer.
Aqueles
silêncios noturnos.
Aquelas noites que pareciam também
em sono - recolhidas em si mesmas.
Não havia vizinhos próximos
- e luz só olhando para o céu com seu
manto estrelado cercando
um estranho no ninho, ou estranha
- a lua. Cheia e servindo de farol aonde
quer que se olhasse.
Quanto valeria aquilo tudo?
Nunca pedi.
Nunca me cobraram.
Nem sei de quem era.
Mas – quando a imagem da pinguela
aflorava
mais forte dentro de mim -,
parecia que
tudo perdia o sentido.
Eu vivia um
pânico que era único e só meu.
E o pânico se divertia.
Dava risada.
A semana
inteira e quando eu conseguia
dar o último passado saindo dela,
tremendo mais que a própria
- colocando o pé em chão firme;
ela me cutucava: “eheheheheh
– olha que tem a volta hein!”.
6
Na vila, no
largo da Paróquia São Pedro,
a comunidade
se via, se encontrava,
se reunia,
se falava, e eram tios e tias
a perder de vista.
Pequenas rodas se faziam e no mais puro alemão
trocavam
informações sobre como estava
o milho, o
preço do porco,
as perspectivas quanto ao leite,
quem iria para Erechim naquela semana,
se alguém estava de cama adoentado,
trocavam "receitas de chás
e outros
que tais de experimentos" que deram resultado,
se alguém
sofrera um acidentes na roça ou
fora mordido
por um bicho; enfim
– era o JN
de Sede Dourado com sua
edição semanal.
Se falava de festa na gruta,
do carteado à tarde,
do temporal e dos estragos da semana
ou da estiagem
que ameaçava
se instalar, de perdas
na produção
em geral e, sempre saía
uma piada em
alguma rodinha, como disse,
no mais legítimo
alemão naqueles
cafundós que para mim eram
um pedaço do paraíso.
Ah – e os
Kerbs, vão sair ou não?
Claro que sim – afinal nada se sonhava,
muito menos se projetava - abrir mão da
tradicional festa.
Era evento certo no calendário
- sem consideração a ganhos, perdas ou danos.
7
Ainda preso
à volta pela pinguela,
especulava
com um ou outro se não teria
uma carona
em um daqueles fuscas brancos
ou azuis, marrons ou amarelos.
Todos, invariavelmente empoeirados
até os dentes das correias.
Aceitaria até no bagageiro de qualquer Rural
– mas quase nunca aparecia.
Sim, porque os carros
já chegavam lotados de tantos
alemães,
desses que calçam 44, 46
com bíceps e
ancas de boi de arado.
Tudo para fugir do vap e vup, vap e vup, nheeennnnnc.
Superado o
pânico semanal da pinguela
e ouvindo
dela uma gargalhada e
um "até a semana que vem",
o quilômetro de morro no potreiro,
era uma faceirice para mim.
Nem da jararaca que podia estar me esperando,
eu me lembrava.
8
Ao meio dia
em ponto – todos vivos e salvos
– com
pinguela e tudo, a galinhada ganhava
a mesa. Eram
legítimos risotos
ou
galinhadas domingueiras. Tudo
naquela
culinária ou naquele prato,
acompanhado
de massa, carnes assadas
e saladas
recém colhidas afora os vidrões
de outros
legumes em conserva
- pepinos, cebolas, rabantes, repolhos
brancos e roxos;
nos remetia a algo que chamam
há muito tempo de
banquete sem
saber bem o que é.
Muitos ficam na teoria da significância,
na luxúria do conceito
– mas poucos o conhecem de verdade.
E antes que todos se sentassem ou
levantassem
– sempre as preces de
gratidão
comandadas
pelo meu
avô. Principalmente
na entrada, porque
depois do “Amém”
– era um
passa prá cá, me alcança,
deixa... eu vou pegar só mais um pouquinho,
quando o prato já se fazia meio alto.
10
Pobres galináceos, nunca haveriam de se queixar
em cacarejos que já não tinham mais.
Se
quisessem cacarejar, agora que
o fizessem dentro
dos comilões que
faziam ranger
o velho banco de
madeira
maciça socado no chão da cozinha,
toda vez que se mexiam e remexiam espichando
um braço para de novo encher o prato.
11
À tarde, lá
pelas 4, uma nova mesa se fazia
sob os cinamomos.
E aí era hora do café da tarde.
Quem viveu o café da tarde
– pode dizer
que a vida não é e nem
será em vão.
Aqueles, com tal privilégio;
tem autoridade para atestar o que de fato é
um banquete.
Hoje as famílias encolheram.
As mesas desapareceram.
Os hábitos mudaram.
No lugar das conversas
de pessoa com pessoa,
tudo se foi.
A televisão
nos fala o que ouvir.
Aonde a internet pega então
– o mundo, aquele mundo,
foi apagado e trocado por outro.
Simples
assim.
12
Mas,
voltando àqueles dias e lembranças
ainda falta
uma: proibidos de pescar
no rio Dourado,
especialmente
no Poço
Grande porque até hoje
ninguém sabe
de fato quantos metros
de
profundidade tem, de anzóis aos ombros
e minhocas
numa latinha, íamos até
uma sanga ou riacho,
ou riozinho que desembocava no Dourado.
Lá, com
laterais descampadas
e gramadas, jogávamos
os anzóis
na água
quase sempre corrente com ou
outro pocinho – manso.
Não demorava
e a linha começava a tremer.
Estavam beliscando as iscas e, sem demora,
os lambaris voavam
na ponta da linha
por sobre nossas cabeças.
De repente,
as nuvens
que já ameaçavam desde o meio
da manhã, se juntavam e,
sem aviso despejavam uma chuva que logo fazia
a água trocar de cor.
Aí era a hora dos
jundiás saírem das tocas que à noite
enchiam as
frigideiras – fechando um
domingo longe
dos estresses das cidades,
dos
assaltos, dos acidentes, dos incidentes,
das
discussões banais, do trânsito que
por si só
não tem culpa de nada,
da violência desmedida e fora de controle,
da violência de eras pretéritas do homem,
das TVs com mil canais,
dos Youtubes,
das séries,
enfim;
dos silêncios dos sós.
O silêncio do... um.
13
À noite, naqueles tempos;
depois da chuva
– ainda com
o cheiro dela,
meu tio ligava
um rádio à bateria
pra saber
pela Aratiba se algum
conhecido
havia morrido,
ou como o Inter
tinha ido naquele domingo.
Com a
cadeira apoiada em “duas pernas”,
e encostada na parede da varanda,
meu tio Guido puxava um palheiro e
falava então de seu otimismo,
ensinando que
aquela chuva
daria novo ânimo ao milho,
às culturas, ao potreiro.
Haveria mais leite, mais queijo, mais carne,
mais milho, mais frutas
Mas quando a chuva
trazia a tiracolo um temporal
com suas malvadezas,
ou quando a seca fazia
o chão arder a sola dos pés,
só sim se falava,
de fato, sobre economia.
Haveria perdas em dinheiro
no fim das contas mais adiante.
O inapagável daqueles cafundós
da Linha
Poço Grande, em Sede Dourado,
o que
importava era a certeza
– nunca dita, nem tangível - mas vivida
em intensidade que a gente só hoje se dá conta -,
é que que , lá - ali
se estava
num
pedacinho do
paraíso.
Algo que hoje em dia,
as gentes da cidade andam buscando,
quase loucamente, em anúncios de internet
e bem dispostas e quase, em alguns casos;
entregar os olhos da cara em troca.
Vale?
Se for como eu vi e vivi - não tem preço.
Adão e Eva eram felizes e não sabiam.
Queriam conhecer - num exagero proposital meu -
queriam conhecer os edifícios, o trânsito,
os ranços, as discordâncias, as futilidades,
as tragédias estúpidas, a ganância.
Acabaram por criar ao menos uma coisa:
"Lançaram uma vida de trás para o início".
Por que hoje - não são poucos os que
desejam fugir das cidades e
sonham em balançar-se numa pinguela,
esquentar a água na chapa de um fogão,
jogar o anzol numa sanga,
observar atento ao silêncio,
encher as narinas com o perfume das flores
do campo,
e depois, dormir num colchão de palha
frestiando o manto do céu tecido à estrelas e lua.