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Naqueles
dois meses e um pouco mais de férias de verão do Mantovani, eu passava em Sede
Dourado na casa do tio Guido. Lá eu me sentia fora de casa e em casa. Além do
casal de tios, tinha ainda meus avós, e uma penca de primos. Nunca tive
problemas de me entrosar com a vida deles que começava lá pelas 5 horas quando
iam tirar leite e depois tratar os porcos, etc. Na hora do café numa daquelas
mesas que cabem umas 20 pessoas, ninguém tocava em nada antes do meu avô Mathias
iniciar as rezas – em alemão. Dali em diante era pão de milho com melado. Mas
havia ainda outras “ximias”, de laranja, de figo, de cana, nata e mel... Queijo
e salame. Não gostava de leite, então ia de café preto. Açúcar branco – nem
pensar. Mascavo. E claro, rosca de polvilho (chamada em alemão de roski).
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Da mesa para
o pátio onde a sombra dos cinamomos eram os guarda-sóis de galhos e folhas. Logo
acima, uns 30 metros, uma parreira, bergamoteiras, laranjas do céu, pereira e
pessegueiro. Também por ali, lenhas à espera de serem rachadas e uma moenda de
cana tocada por junta de bois. Anos, muito antes, meu tio Guido perdera um dedo
que entrou na moenda. Imagino – mas não quero nem pensar. Você já tomou suco de
cana com limão gelado, espremidos na hora!?
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No paiol
onde havia montanhas de milho e feijão, a gente se atirava nelas como se fossem
areia. O friozinho dos grãos era fluoxetina, Amitriptilina, eram os ISRSs –
moderníssimos dos anos 1960. Os grãos de milho nos limpavam a cabeça e
massageavam as costas, as pernas, o corpo. Era só cuidar para não inalar um
grão pelo nariz – aviso que nem era dado, mas a gente sabia. Quando entrávamos
no paiol onde estava o milho, e os montes de feijão preto e marrom na parte
de cima do paiol, as foices e enxadas – ninguém se preocupava em pisar n’algum
prego meio à largar a tábua depois de anos, enquanto as ratazanas pressentindo
o perigo, davam um tempo e sumiam por suas tocas como o Senna e o Lewis Hamilton
ao entrarem no túnel em Mônaco.
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A junta de
bois – não lembro os nomes, mas não seriam Pintado e Vermelho ou Mineiro e
Caramelo? -, iam no seu lugar de sempre à frente da carroça à espera da canga.
As ferramentas de trabalho na carroça, me avô já na roça e eu “pilotando”
aquela dupla obediente de bois a puxar a carroça buraco à dentro, morro à cima.
Lentamente o sol ia mostrando sua força e os chapéus de palha mostravam seu valor. Enxada à mão, cada um
pegava uma carreira de milho ou soja e carpindo, limpando, tirando os inços que
ameaçavam estrangular o pé - no seu pé. Quando os ponteiros do sol indicavam
11h15min ou 11h30min minha tia, que tinha ido mais cedo para casa para ajudar a
vó a terminar o almoço – lançava um grito em alemão de que estava na hora de ir
pra casa. O chamamento ecoava pela roças, pelos morros, pelos matos. Pela
pradaria lá embaixo e lá em cima.
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O trabalho
realmente enobrece o homem. Eu me sentia “nobre” quando lavava o suor do rosto
na torneirinha de água corrente que vinha lá do alto do morro por uma mangueirinha.
A cara vermelha, os cabelos grudados na testa, as mãos também avermelhadas
atestavam que eu participara, desvestido da minha rotina urbana, que não
conhecia enxadas, facões, pedras e nem os prazeres que só na roça era
possível.
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Umas cuias
de chimarrão, um golezinho de cachaça e, de novo todos à mesa comprida com me
avô Mathias na cabeceira puxando a reza em alemão. Depois era feijão, arroz,
mandioca, carne de panela, vidrões com cebola e pepino, fora as alfaces, os
radicces, as lentilhas, rabanetes e, para quem quisesse, mais queijo, salame e
pão de milho. O legítimo. O genuíno. Aquele pão de uns dois quilos e meio e casca
grossa preta – queimada. Assado no forno de tijolos. Naquela mesa nunca se
expôs nada genérico. Hoje as ofertas são às dezenas –muitas delas, copiadas,
imitadas, pouco fieis à sua origem natural.
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Depois do
almoço – as camonas de colchão de palha. Até lá pelas 3:30. O tio Guido não era
de expor o lombo em sol escaldante. Outra vez os bois, a carroça e a subida até
a roça. Um dia, de sol de 37 graus com sensação de 40 minha enxada enroscou em
uma pedra. Não adiantava puxar. Me encurvei e espichei o braço e, com a mão,
fui em direção ao inço que teimava em não sair com a enxada de tão escondido que
estava. Foi quando ouvi um sibilar – (rsssssssssssssss) e alguém gritou: Adelar
– não. Cuidado. Olha a jararaca!
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A sensação
de 40 gruas me gelou dos pés à cabeça. As mãos, ao contrário, tremiam, suavam,
vermelhas de frio. Aquela não podia continuar ali – viva e, por isso mesmo,
acabou, penso - morta. Não por mim é claro, porque na primeira enxadada, ela
reagiu e começou a se jogar por tudo quanto é lado. Não sei se morreu, se sumiu,
e os mais experientes daquelas experiências diziam que “essa foi pro mato”, ali
perto. Quinta-feira desta semana li que uma mulher morreu mordida por um
filhote de jararaca. Voltei naqueles dias. Foi por 3três centímetros?
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Lá pelas 5
horas dois primos mais novos apareciam com cestas de vime e uma toalha: pão de
milho, queijo, salame, cuca, bolachas, ximias e água. Satisfeitos – e o
recomeço. Talvez naquela semana terminaríamos as fileiras do milharal. De
repente, no silêncio dos morros nos cafundós da Linha Poço Grande, alguém
parava de carpir e, levantando as orelhas como quando um cão percebe algo
estranho passando em frente de casa, como um gato, por exemplo, ou alguém de
máscara. “Éééhhh. É mais de cinco e meia!”. E de lá de cima a gente podia ver o
ônibus que fazia Erechim – Várzea onde hoje as roças e, parte moradores
daqueles antigamente, foram obrigados a trocar (?) suas propriedades e, por que
não, até um pedaço das suas histórias, para as águas da Barragem Itá. Quilômetros
e quilômetros à frente, a usina. Saía o velho, entrava o novo. Saía um tipo de
economia entrava outro. Morria uma história, nascia outra.
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Hoje, com os
anos, sítios ou casas de fim semana à beira do Lago Itá, vão se formando onde
antes era roça. Um número expressivo daqueles colonizadores que muita gente de
paletó e gravata de bancos, de consultórios e salas advocatícias só conhecia pelo
sucesso do Teixeirinha, “O colono”, se espremem no que sobrou ou venderam tudo
e se foram pra Santa Catarina ou Paraná. Ou sabe-se lá por onde andam,
divorciados à força de seus enlaces de outrora. E o velho ônibus da Praia
Bonita (será?) se ia pequeninho de onde se via, deixando pra trás um rastro de
pó que se misturava com o ronco do motor, cada vez mais rouco, enfraquecido e
baixinho até sumir na curva do canavial do vizinho do outro lado do rio Dourado
– os Schoutlz ou Schutlz. Um dos filhos daquela família, aos domingos, virava
goleiro do Juventude da Gruta de Sede Dourado. Tinha mais ou menos 1,85m de altura e uma
mãozinha de raquete de tênis. E um coração do mesmo amanho. Nunca me atrevi a
dividir uma bola com ele, com aquelas pernas de angico.
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A paisagem
iluminada pelo sol se retirava. Lentamente. A carroça cheia de milho, abóboras de
pescoço para porcos e pastagens descia no ritmo dos bois que não evitavam os
solavancos. E eu lá em cima – de carona. Fosse hoje alguém haveria de intervir
provavelmente com uma norma que proibísse aquele perigo à uma criança. No largo
do paiol tudo era tirado da carroça e logo começava o trato dos animais. As
ratazanas de novo saíam paras suas tocas e o gado, chamado, com gritos que só
eles entendiam – começava a se mexer a passos de tartaruga do potreiro em
direção à estrebaria. Cada um tinha atribuição e logo tudo estava no lugar. Sem
reclamos, sem gritarias, sem desculpas – a força de cada um fazia tudo parecer automático,
simples.
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Todos
atendidos e quando ainda era possível visualizar onde se pisava, quase todos
desciam por entre macegas, cipós e lajes à beira do rio para banhar-se nas
águas do Dourado. Havia até um lugarzinho especial onde o rio meio que
represava em tempos de baixa nos verãos, e uma laje aparecia para que
caminhássemos sobre ela e com os pés na água nos lavávamos com sabão feito em
casa, e só depois entrávamos na água sentindo as pedras lisinhas no fundo. De
um lado do rio um paredão de pedras, de laje pura, que diziam ser a “casa dos
jundiás”, e do outro, galhos que se inclinavam de seus troncos para
refrescar-se e beber água, suponho. Depois do jantar, com todos à mesa e sem
televisão, mas com o lampião por luz perto do avô Mathias, mais preces, mas
comida de tudo quanto é tipo e – cama. Meu tio ainda tragava um palheiro – mas mais
por prazer do que por vício. Na verdade nem era fumante.
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A casa, o
paiol, a estrebaria, as galinhas, os cachorros, os pássaros, o chiqueiro, o
pátio, os jardim, os cinamomos, as roças, os milharais, a estrada vicinal, os
potreiros, os lampiões – tudo parecia ter ido também dormir no mesmo horário
com a gente. Só se via por uma das frestas das tábuas da casa, uma pequena
claridade, um sinalzinho de vida, que era da lua e, se ouvia bem baixinho - o
vai e vem do meu avô com o seu terço, rezando em alemão na enorme área da
frente que pegava toda a casa - dos
quartos à cozinha. Na sala o tic-tac e o blein, blein, blein por oito vezes do
relógio de parede e o chiiiiiiiiiiiiaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa das águas do rio Dourado que deslizava em paz, quieto, e que nunca
parava. O dia fora dormir. A vida se recolhera naquele pedaço de paraíso.