terça-feira, 13 de abril de 2021

The Crazy Boys não morre jamais

 

Paulo Casarin, Naudi Dalpizzolo e Sérgio Intkar no CER Atlântico/Foto Stúdio Zardo/AVS




 

 

Tempos de pandemia.

Não dá pra sair.

Nada pra fazer.

Vamos viajar.

Viajar no tempo?

Pois - saiu aqui na A Voz da Serra no dia 7 de novembro de 1992 e tenta retratar um pedaço da história dos Crazy Boys. Dos nomes citados, Pedrinho Cunha, Zézo, Sergio Intkar e Jovino Alves Martins hoje moram no céu.

“The Crazy Boys” foi a banda mais afamada dos anos 1960/70 em Erechim. A cidade tinha ótimas bandas como Os Ipanemas e Etna (esta última comandada pelo Dr. José Vitecky – música de primeira grandeza, ele, que foi mais uma vítima da Covid recentemente). O texto abaixo é de 1992 – e saiu no dia que marcou a volta dos Crazy ao CER Atlântico.

 

1

 

‘E se fosse possível, de verdade,

entrar numa dessas músicas que

os 'Crazy' tocam, e voltar aos anos

1960 quando a gente andava

meio sem dinheiro flertando à vida,

a gente voltaria?

Lá se foi nossa emoção,

por vezes flagrantemente exposta

às custas do nosso próprio rubor.

Tudo, absolutamente tudo, levado

por conta de uma espiada mais ousada.

Os Beatles tocavam lá.

Os Crazy, cá.

A vida ainda é nossa.

A nossa vida.

Mas a vida mudou e do passado

a gente lembra quase todo.

Do bom e do ruim.

Quando se pensa

nos ‘The Crazy Boys’

(Banda de rock dos anos 1960/70)

a gente se lembra, principalmente,

da gente!

 



2

 

Domingo, duas da tarde, 1966.

Pedrinho Cunha e Naudi Dalpizzolo,

18 e 17 anos respectivamente,

estão no centro da cidade.

Amigos inseparáveis da mesma

 rua perto do antigo campo do

Atlântico na rua do Caixeiral,

fãs incondicio­nais de tudo o que

acontecia no movimento

‘Jovem Guarda’, eles alimentam

apenas um sonho. Querem cantar.

Cantar e tocar.

Era o sonho de todo o jovem.

Era o comum.

Era o natural.

Era a glória.

 

3

 

Os dois amigos que tinham

alguns conheci­mentos rudimentares

sobre violão e bateria, subi­ram

as estreitas escadarias do

edifício Condomínio Erechim

levando com eles até o terceiro

andar sua curiosidade. Eles estavam

perto de ver com os próprios olhos

o Canal 2 - TV Erechim.

Mais que isso, estavam

diante da possibilidade de

assisti­rem ao ensaio dos

cantores que se apresentariam

a partir das 20 horas no programa

‘A noite é nossa’.

 

Donos de boa voz e

muita harmonia,

Pedrinho e Naudi conheceram

naquela tarde, aqueles que

formariam a outra metade

do conjunto ‘The Crazy Boys’.

Paulo Muller e Wagner Brusamarello,

que sabiam tocar muito bem.

 

4

 

- Eu senti que a dupla tinha condições

muito boas para tocar e por isso

alguém correu até a Livraria

ABC onde arrumaram um violão,

disse Jovino Alves Martins,

 apresentador do programa

‘A noite é nossa’.

Sem que ninguém soubesse

explicar com detalhes, ainda

naquela tarde de domingo os

quatro rapazes cantaram alguma

coisa e acertaram a presença

do grupo no programa

de televisão na­quele domingo

mesmo à noite. Mas havia

ainda um proble­ma. ‘Na hora

de anunciar o grupo, que nome

eu falaria', diz Jovino.

 

5

 

Pedrinho conta que sua irmã Eloá,

sempre falava que ‘nós éramos

meninos loucos’, que em inglês

representa ‘The Cra­zy Boys’.

À noite, quando Jovino Martins

anunciou o grupo, ele chamou

‘The Crazy Boys’.

Um grupo estreante no tradicional

programa das noites de

domingo num dos raríssimos

canais de televisão do interior

do Estado.

 

6

 

‘Tocamos La Bamba,

lembra Pedrinho Cunha e

depois daquela apresentação

o que aconte­ceu, passou

a representar a metamorfose

dos nossos sonhos para a realidade'.      ­

 

Quando o quarteto parou de

tocar ‘La Bamba’ foi a vez do

telefone

começar a tocar

na emissora da televisão.

Era alguém que queria ver e ouvir

de novo o conjunto.

‘Naquela noite’, disse Pedrinho,

‘saímos do condomínio

certos

de que alguma coisa tinha

mudado já, e muita coisa iria

mudar ainda.

Foram dezenas de telefonemas.

‘Acer­tamos logo um ensaio

para o dia seguinte às

7 horas da manhã na garagem da

casa de meu pai na

rua Severiano de Almeida'.

 

7

 

Convites para animar

festinhas de aniversário de

15 anos que levavam

o conjunto a se apresentar

em até quatro locais diferentes

nos fins de semana provocaram

a cobrança de um cachê que

Pedrinho nem lembra mais.

‘Mas era algo acessível.

Nós que­ríamos tocar e cantar’.

 

Logo os quatro rapazes decidiram

que estava

na hora de comprar instrumentos

melhores. Chega­ram duas

guitarras para Paulo e Wagner,

uma bate­ria para Naudi

e um baixo para Pedrinho.

Como num sonho, ainda em 1966

o conjunto estava em Londrina (PR)

se apresentando para

um grande público

numa Exposição Industrial, Comercial

e Agropecuária.

Em Londrina mesmo o conjunto (banda)

acabou se apresentando num

canal de televisão e numa emissora

de rádio.

 

8

 

Tentando se lembrar

das apresentações, Pedri­nho

se perde no itinerário certo das

excursões e enumera apenas

Porto Alegre, Carazinho, Concór­dia,

Passo Fundo, Joaçaba,

Foz do Iguaçu e Casca­vel

entre outras. O repertório

não abandonava Renato

e Seus Blues Caps, Roberto Carlos,

Os Incrí­veis e os Beatles, aliás,

mais que isso seria estar fora

da realidade e dos próprios

sonhos dos anos 1960.

 

9

 

Em 1967 o guitarrista Wagner

deixou o conjunto e no seu lugar

entrou Zézo, (Tito Livio Rosa).

Logo depois era a vez de Paulo Muller

falar em sair. Para sua vaga

o conjunto foi buscar aquele

que se constituiria num dos

maiores músicos já produzidos

em Erechim. Sergio Intkar,

o Sergi­nho. De 1967 a 1969

‘The Crazy Boys’ teve sua melhor fase.

Foi a fase mais forte da Jovem Guarda.

O conjunto tinha compromissos

semanais em shows e bailes.

 



10

 

As pessoas que estão hoje (2021,

ao redor dos de 50, 55 a 80)

e que viram ‘The Crazy Boys’

naque­la época, não esquecem mais.

De certa forma são um produto

daqueles anos inesquecíveis

quando de cuba-libre à mão,

corriam os olhos pelas mesas

em busca de outro par de olhos

de gurias aparentemente

bem comportadas, o que

acabaria interferindo no próprio

rumo e definição de boa parte

de suas vidas.

 

Foi um tempo que nunca mais

se repetirá, momentos

que ficaram registrados apenas

nos arquivos secretos

da memória daquelas pessoas.

Tudo isso embalado pelo

som que repre­sentava

o resto daquele romantismo inigualável,

e que vinha através

dos ‘The Crazy Boys’.

Ninguém que viveu aqueles

tempos em Erechim conseguirá

buscar na memória do tempo,

algum momento da­queles anos

sem ouvir algo parecido

como ‘Love Me Do’.

 

11

 

Na madrugada de um domingo de 1669,

Zézo se envolve num acidente

de trânsito na rua Santos Du­mont.

O conjunto contorna o impacto

e a perda que jamais foi

definitivamente absorvida,

leva à inclusão do tecladista

de renome internacional,

Paulo Casarin, também erechinense.

 

12

 

Ainda em 1969 começa uma nova

fase dos ‘The Crazy Boys’.

O avanço tecnológico chega

mais forte à música instrumental

e o conjunto tenta acompanhar

a evolução.

O profissionalismo tam­bém

busca o seu espaço e aos poucos

começa a surgir uma nova

tendência musical dentro do gru­po.

 

13

 

Em 1973, divergências na

busca de um aprofundamento

maior na música determi­naram

o surgimento de alguns problemas.

Era o início da primeira parada.

 

Em 1973, também, Pedrinho

já está casado e se retira. Naudi,

Serginho e Casarin ingressam

no conjunto ‘Os Ipanemas’

– outra banda que marcou época.

Quatro anos depois, Pedrinho

não resiste e se reencontra

com os amigos nos

‘Os Ipanemas’.

 

14

 

No ano seguinte, 1974,

Pedrinho para mais uma vez.

Paulo Casarin decide ir

para São Paulo. Serginho

vai para Curitiba e Naudi

também para de tocar pela

primeira vez.

Parecia o fim.

 

À exemplo de conjuntos consagrados

no mundo inteiro e que serviram

de inspiração para o grupo,

os quatro rapazes se separam.

Surge um vácuo que duraria 10 anos.­

 



15

 

1987. Era muita coisa

ter de continuar morando

em Erechim, passar pelas mesmas ruas,

ver sempre as mesmas pessoas

e ter que passar pela vida,

mas sem o Crazy... Por quê?

 

Ainda era tempo de ouvir e ver

mais uma vez o conjunto e

recuperar em parte alguns

fragmentos de noitadas mágicas

dos anos 1960.

Um grupo de saudosistas

lançou uma promoção inédita

e conseguiu reunir os Crazy

para um baile no Atlântico.

 

16

 

Dia 6 de novembro de 1987.

O Clube Atlântico foi pequeno para

receber os fãs do conjunto.

 O show ‘Pode vir quente

que estou fervendo...’

e Pedrinho, Serginho, Naudi,

Paulo Muller

e Wagner estavam outra vez

cantando juntos.

 

17

 

Os tempos eram outros.

Olhares que nos anos 1960 percorriam

os salões em busca de companhia

estavam agora identificados

com alguém e sentados

à mesma mesa.

Os olhos estavam casados.

 

18

 

A certeza do sucesso

garantiu novo show desta vez

no Clube do Comércio

e duas apresentações no BB.

Em 1988 o conjunto esteve

em Cascavel, a pedido

da “colônia erechinense”.

 

19

 

A mesma cidade levou os

Crazy em 1989 para duas

apresentações no Biélle Club para

3 mil pessoas. O sucesso foi tão grande

que a TV Bandeirantes gravou

um especial exibido

no Flash de Amaury Jr.

 

20

 

Os The Crazy Boys na verdade

nunca pararam, e nunca

se separaram.

Eles vivem

dentro de cada pessoa que

passou por Erechim nos anos

1960 e 1970.

 

Eles ajudaram a crescer

os cabelos dos jovens erechinenses.

Foram a presença mais viva

e próxima dos Beatles e Renato

e seus Blue Caps por estas

bandas dentre todas

as afamadas bandas locais.

 

21

 

Desde aquele domingo de

1966 mudaram muitas

coisas que a gente nem lembra

mais, e esta é apenas

uma tentativa de resgatar

parte do que foi este

“conjunto” extraordinário

para os padrões locais.

 

Logo mais

 – 7 de novembro de 1992 –

os Crazy estarão incrivelmente reais

no Atlântico com ‘anos rebeldes’.

 

22

 

E se de repente alguém

se enxergar num canto

qualquer do clube,

sem a real barriga

e com longos cabelos sobre

a cabeça e em total desalinho,

não será nenhuma coincidência.

E para que isso possa

até mesmo virar realidade

esta noite, não precisa nem

exagerar na cuba-libre.

É só deixar os Crazy tocar!

She loves you, ié, ié, ié

She loves you, ié, ié, íe

She loves you ... - ... ié, ié, ié, iéééé!

 

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Eu e os Crazy

 




Era uma noite de sábado.

Gelaaaaaada.

Tinha tapado buracos na cancha

de bochas do Atlântico,

a tarde inteira.

Mas o que ganhei não deu

para o ingresso.

 

2

Cheguei no portão de ferro

do ginásio do Medianeira,

(acho que era mesmo de ferro... 

porque muito muito pesado)

que já estava fechado, e

lá de fora ouvia o burburinho

das gurias e dos piás

– ou já nem tanto piás!

 – e, claro, o som dos

Beatles de Erechim.

The Crazy Boys tocava um sucesso

atrás do outro e,

eu só controlando o porteiro.

 

3

A cada pouco vinha alguém

com ingresso e o portão de ferro

se abria e eu, me metia os olhos

para ver lá dentro.

 

4

Era aquela fumaceira  - fumar era chique -

e,

rum com coca, e nas mesinhas

 – a maioria, guria com guria e

em outras, homens com homens -,

ou para que não me apedrejem

nestes tempos modernos

como um “discriminador”,

um “preconceituoso”

– a maioria guri com guri

e mulheres com mulheres.

 

5

De repente um ou outro criava

 coragem e ia até uma mesinha

 para “tirar” alguém para dançar.

Os casais já prontos eram poucos.

 

6

E enquanto tudo acontecia lá

dentro do Medianeira,

e enquanto o portão se abria

e se fechava

e eu fumava um ou outro cigarro

lá fora, gelado, congelado

– e no abre e fecha do portão de ferro

(acho que era porque tão pesado...!)

eu me arriscava  a meter a cara

e lançar um olhar, fugaz,

lá pra dentro do

“salão”:

“xiiiiiiiuuuuuuuuuuuu 

Sai pra lá ô imundíce... Vai pra tua 

casa ô guri!”,

era como me lembro da reação

do porteiro,

já cansado de mim...

ele que não tinha nada

a ver com  o meu azar de “pelado”,

com a minha desgraça

- como seu eu fosse um guaipeca,

fedorento, mal-cuidado e

intrometido querendo meter

o focinho onde não fora convidado

e nem era bem vindo.

Mas - que culpa tinha eu se...

os Crazy era pra mim os Beatles

ao alcance os olhos.

Quase da mão!

 

7

Mas eu era teimoso.

Talvez por isso um dia

me meti no jornalismo.

A profissão requer várias coisas,

mas uma delas é incondicional: ser

curioso, persistente, teimoso.

“Encher o saco” de quem tem

coisa pra dizer e não e nada

quer dizer.

 

8

Mas não seria naquela noite

que estaria perto dos

“meus ídolos” – Pedrinho, Naudy,

Wagner, Zézo, Serginho e Casarin.

Não que estivessem eles todos - juntos,

mas o conjunto de nomes forma

o grupo que incrustou

“The Crazy Boys”

no memorial da melhor música

(pop/rock) de Campo Pequeno

em 100 anos.

 

9

Na verdade não me lembro

de um baile que tenha frequentado

com os Crazy.

Naquele tempo era

“muita areia pro meu caminhãozinho”.

Mas minha incursão pelas

redações do jornalismo

oportunizou aproximar-me

de muitas pessoas importantes

– e este foi meu passaporte

para um dia convidar o Pedrinho

a ir até a redação de “A Voz da Serra”.

E lá, pertinho de um dos meus ídolos

daquela inesquecível banda,

ele me contou essa história

que entrego hoje a todos

os fãs dos “The Crazy Boys

a banda que não morre jamais".

 

10

Incrivelmente, pela inexorabilidade

da vida,

aos poucos a “banda”

vai se formando no céu.

Lá já estão juntos Pedrinho, Zézo

e Serginho.

Cada um a seu tempo, a seu modo

– quem sabe escrito pelo

Autor Maior da Vida -,

foi se despedindo daqui e

se acomodando no

bairro Erechim – 99700000

Lá De Cima.

A eles, juntou-se há poucos dias,

outro músico da mesma altura

talentosa, o Dr. Vitecky

que por aqui não deixou por menos

e também tocou e cantou de Beatles

 pra fora, abocanhando

mais que a simpatia,

o apreço e a admiração de milhares

de fãs que jamais o esquecerão,

entre os quais, me inscrevo

– hoje já em condições de quem

sabe vê-lo (como vi),

de perto com sua eterna Banda Etna.

 

11

A realidade e, a verdade,

que ninguém contesta é: como

Erechim teve sorte

– com seus músicos de

excelência admirável quando

o gênero era o rock em especial.

Se tiver que voltar mais atrás

– buscando outros ritmos

e representações -,

a constatação será a mesma.

Uma pergunta derradeira: esses

expoentes da nossa música

receberam o reconhecimento

do Poder Público?

O que posso responder

 – respondo: do poder não sei.

Mas do público, com certeza.

Jamais morrerão.