sábado, 6 de abril de 2024

De reminiscências da Torres Gonçalves à cultura de um povo

 


Inauguração Supermercado Sonda. 27/11/1974. Crédtio: AVS/Divulgação

A rua que mais andei à pé na minha vida foi a Nelson Ehlers. E por isso é a minha preferida. Mas logo a seguir vem a Torres Gonçalves - a quadra entre a Valentim Zambonatto e a Maurício Cardoso. Eram os anos 1960/1970.

Esses dias parei o Fiesta em frente ao Sondinha.

Logo um vendedor de palhetas de limpador de para-brisa chegou à janela.

Abri a porta e... “aí doutor. Vamos colocar um limpador novo. Esse seu já está....”.

Retruquei dizendo que o carro nem era meu. Surpreendentemente nem insistiu e como raro observador deixou cair da boca: “azzaahhhh – bigodinho de respeito, hein doutor” e se foi.

“Mas será o pé do Benedito!” pensei comigo. 

Só lembro de ter entrado no Sondinha nas nuvens.


Andrea Sonda e a esposa Lídia,
com o prefeito Aristides Agostinho Zambonatto
Crédito: AVS/Divulgação
Nas nuvens porque o Sondinha de onde havia um campinho de terra - abaixo do nível da rua na década de 1970.

Quem poderia imaginar naquele tempo que, algo como um andar acima do campinho, Erechim receberia seu primeiro supermercado. Na Germano Hoffmann, dizem; já havia um mercado onde o cliente se servia. Mas bem na área central e, supermercado mesmo, era o Sonda em 1974, hoje carinhosamente chamado de Sondinha.


Jayme Lago/Arquivo/Divulgação
Em 1972 na primeira turma de Administração do Centro de Ensino Superior de Erechim (Cese) o colega de turma Jayme Luiz Lago convenceu o outro colega daquela nossa turma, o Gilson Edy Carraro a me levar para o jornal A Voz da Serra: “Ô Gilson arruma uma vaga pra esse guri. Ele não serve pra administrador. É fraco em contabilidade. Mas sabe escrever. O negócio dele é jornalismo. Bota ele lá. Quem sabe dá certo”. No outro dia eu estava trabalhando no jornal depois das aulas noturnas ministradas no embrião da URI. Era minha primeira incursão em uma redação.


Crédito: Arquivo/Divulgação
Passava toda madrugada ao lado do "terrível" Geder Carraro, (chefe de redação e irmão do Gilson) que me ensinou a base do jornalismo. O Geder não perdoava ninguém. Quando pisavam na redação pedindo que não publicasse determinada matéria – seu bigode de fogo quase incendiava. Logo me acostumei. Conforme tentativas de dobrá-lo, principalmente sobre política, eu já imaginava a manchete do dia seguinte e o tamanho da fonte. Meu pai! 

Meu consolo chegava por volta da 1h30min da madrugada. "Seu Estevam (Carraro)",(fundador do jornal e pai de Gilson e Geder); entrava na redação, vestindo um roupão que lhe ia até o chão encobrindo as grossas pantufas de lã natural, trazendo num prato grande colorido, com mechas de florzinhas pintadas, uma caneca de café e duas grossas fatias de pão carregadas com manteiga e geleias de abóbora, pêssego, uva... Ele tinha  pena de mim: primeiro porque sabia que eu estava sem comer e assim passaria a madrugada. E segundo, porque sabia nas mãos de quem eu estava. Desconversava com a conversa que só os sábios tem e dizia: "você precisa se alimentar menino. Tu estás muito magrinho". Até hoje não sei se era uma iniciativa só dele ou se também havia o dedo da sua esposa a senhora Gelsomina. Só sei que ambos tinham pena de mim e me ajudavam no que podiam. Hoje, desconfio, que aquele lindo prato colorido era pura porcelana. A verdade é que o "Seu Estevam" e a dona Gelsomina olhavam com os olhos - mas enxergavam com o coração.

Eu mal sabia bater à máquina, o que na época apelidaram de “catador de milho”. Era tec, tec, outro tec, procurando a letra e mais um tec. Enquanto eu tec, tec... até achar outra letra e novo tec - o Geder parecia na sua máquina de escrever uma metralhadora giratória pegando fogo. A fumaça eu via de verdade. Vinha do seu companheiro inseparável naqueles anos – o cigarro. As labaredas dos seus palavrões quando se deparava com algo que não lhe agradava, fazia a metralhadora soltar "gritos" no teclado. Aquilo me afundava ainda mais. Será que um dia chegarei perto? Tec!


Deputado Celso Testa/Arquivo/AVS
Uma noite entrou na redação o deputado Celso Testa. Papo vai, papo vem entre os dois –, entre informações e fofocas tendo como alvos políticos adversários e, mais ainda, sobre correlegionários (ali aprendi um dos pilares da política),  quando o Geder virou sua língua de fogo para mim e lascou: “Olha aí deputado. Olha o que o Gilson arrumou pra mim. Foi o Jayme (Lago) que fez a cabeça do Gilson. Agora taí ó. Eu morro e não vejo tudo!” e eu procurando no teclado da Remington mais uma letra e mais outra. Tec, tec... E eles riam - "não desanima guri, o Geder é assim, mas vais aprender muito com ele..." tentava amenizar o deputado e o Geder emendava: "Isso se ele me aguentar" e desandava a gargalhar. Assim era o Geder chefe: "um 'demônio' - com um grande coração. Ele podia querer dobrar seu pescoço, mas defendia seus funcionários com unhas e dentes e sua afiada ânsia pela escrita até as últimas consequências. Brigamos inúmeras vezes - mas foi sem dúvida um professor na base do jornalismo que eu tive..

Pois bem. Mal sabíamos o que o destino nos reservava: quatro anos depois da visita do deputado e do que o Geder disse, em 1976, depois de um ano na redação da rádio Difusora de POA ao lado de Eduardo Bueno, isso mesmo - o Peninha (éramos os dois redatores do jornal da Manhã), eu passaria as tardes no gabinete do deputado como seu assessor de imprensa, enquanto de manhã cursava jornalismo na PUC.

Enquanto isso a obra do primeiro supermercado bem no centro da cidade avançava na Torres Gonçalves. No seu entorno recordo entre os anos 1960 e 1970... (salvo equívocos sobre os quais já me penitencio).

Edifício Fasolo entrada para a rádio Erechim,

Associação Erechinense de Estudantes,

Delegacia de Ensino,

alguns consultórios,

e escritórios de advocacia no mesmo prédio.

A Casa de Especialidades onde ali se encontrava ameixa seca, azeitonas, castanha, nozes, damasco, etc.

No térreo a Relojoaria Doxa.

E pelo que levantei - uma agência Iochpe.

Prédio da antiga Telefônica Rio-Grandense para ligar para fora da cidade. Mais tarde mudou-se.

Um terreno baldio que dava acesso à residência de Antônio Weber. Que por sua vez permitia chegar à Maurício Cardoso entre o Cine Ideal e o Café Grazziottin. Isso - passando por dentro da quadra.

Casa Aita.

Edifício Alegretti.

No térreo a Vidraçaria Tosetto.

Ainda por ali em frente ao futuro supermercado - a Biblioteca Municipal.

Na mesma quadra - sentido Maurício/Valentim Zambonatto -, residência e escritório do dr. João Caruso. Este juntou-se ao dr. Gladstone Osório Mársico e, mais tarde quando o dr. Caruso transferiu-se para Porto Alegre, o escritório passou a ser dos irmãos Gladstone e Gilberto Mársico. Tudo isso numa casa de madeira frente à Torres Gonçalves. Era onde hoje está o Edifício Malinowski.

Na esquina o Posto de Combustíveis Texaco e depois, no mesmo local o prédio da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias - a igreja dos Mórmons em Erechim e que ainda ali permanece.

Também havia uma Casa dos Carimbos,

Barbearia do Valdemar,

Um afiador de facas e tesouras - não sei se ainda não está lá....

No outro lado da rua o Hotel Erechim, atualmente, em reformas.


No lado oposto da rua - Maurício em direção à Valentim Zambonatto - havia a lancheria Halinagata - tinha mesinhas na calçada quando necessário.  

E segue não necessariamente nesta ordem:

Casas Mickey,

Casas Alegretti em "L",

Casa de Tecidos Matone,

Revenda de bicicletas. 

Sapataria Gaúcha. 

Fruteira Montenegrina, do pai do Moa. Hoje Moa Lan House.

Um Ouríves - não sei bem em qual lado da Torres. 

Havia um terreno baldio que referi antes e que teria sido alugado. Virou um campinho de chão batido para suas categorias de base comandadas pelo dedicado e conhecedor de futebol - Alderico Albino Miola (Jacaré). 

Mais adiante na esquina, o Banco do Brasil velho (o gerente residia em cima), até a construção do atual prédio.

Atravessando a Valentim, na esquina o Hotel Vitória onde hoje está o Bradesco.

E um pouquinho mais adiante a Modelo de Móveis,

afora uma lavanderia, onde a proprietária também passava roupas deixadas no local.

Nos fundos da lavanderia fomos buscar certa feita um pneu para queimar numa festa de São João. Acontece que o pneu era de caminhão e estava cheio de água. Não sei como o tiramos de lá do meio das línguas de vaca até a calçada - e fomos rolando rumo aonde morávamos em frente da Mantovani. Na descida do INSS o pneu saiu do nosso controle e, meu Deus. Cada pedrinha que pegava dava um salto. Um perigo. Quase uma tragédia anunciada. Graças a Deus não pegou nenhuma pessoa, nenhum carro, mas entrou pelo portãozinho de uma casa e só parou nos fundos quando bateu contra ao que me recordo, seria um chiqueirinho.  Não sei até hoje quem teve coragem de ir lá pedir o pneu de volta - porque se desse no meio da casa não sei o que poderia ter acontecido com a casa e conosco - eu e amigos. Mas esta é outra história. O que lembro é que a fogueira saiu, mas deu polícia, etc., porque as labaredas ameaçavam a fiação...  

Ao lado da obra do supermercado – onde hoje existe uma bonita Pet Shop, havia um bar. Depois um restaurante da dona Elvira (Polaca) e bar do marido – o grande Pedruca. 

E ainda, meu Deus; antes de tudo isso no mesmo local, o bar do seu Manoel – um português raiz. 

Segundo uma das fontes consultadas (agradeço todas), antes do supermercado Sonda e ainda anterior ao terreno baldio que virou um campinho de terra do "Ypiranguinha" como era chamada a categoria de base do clube - havia no local onde hoje se encontra o Sondinha - uma loja de móveis pertencente a um senhor chamado Isaac Spumbarg. 


Da esquerda para a direita: Terezinha Sonda e Alcides Sonda; prefeito Zambonatto e esposa Anna, Delcir Sonda e Estevam Carraro. As crianças não pude identificar. Crédito: AVS/Divulgação.
 

Por evidente que nos dois lados da rua, inúmeras famílias ali residiram e testemunharam aquele tempo com suas atividades e presenças. Ainda hoje uma área logística e residencial.

Isso sem contar – antes do início das obras do Sonda, no prédio Scussel - o Escritório Ypiranga Constroi  - que era uma espécie de Escritório Central sobre todas as ações do futuro estádio Olímpico, desde o planejamento à entrega dos prêmios.


Ypiranga constroi ficava na Torres Gonçalves.
Crédito: Arquivo/Divulgacão.
Um dia o Geder me deu uma pauta desafiadora. Naquele tempo - eu já possuía uma boa credencial para quem quer avançar no jornalismo – acreditando que avancei. Eu nunca voltava para a redação sem a matéria da pauta. Quando isso era absolutamente impossível eu arrumava outra matéria. Mas voltar de mãos vazias jamais - até porque eu sabia o chefe que tinha. 

“Ô guri, pega teu caderninho e vai entrevistar esse senhor aqui, me mostrando um nome. Fica numa casa de madeira, com umas cortinas brancas nas vidraças. Ele é advogado e o melhor escritor de Erechim. É do lado direito de quem desce a Torres Gonçalves. E seja educado. Pergunta pra ele isso, mais isso e isso. Se ele disser coisas que não estão na pauta - presta atenção. Ele às vezes fala nas "entrelinhas", mas anota tudo. Presta atenção - como ele fala. Olha pra ele. Anota palavra por palavra. Tu sabe onde fica? Não? 'Bah - O Gilson me mata!'", comentou e prosseguiu: "mas o campinho onde vai sair um supermercado tu sabe né!". ‘Sim, sim. Jogo quase todos os sábados lá’”. Aí o Geder me indicou o endereço: "fica bem na frente da obra. Vai lá, fala com a secretária, diz quem tu é. Já telefonei pra eles e o doutor tá te aguardando. Se tiver que esperar, espera e quanto menos tu falar, melhor. Ah - e não esquece de chamar ele de doutor, nada de tu isso, tu aquilo... O único tu aqui é tu". Já com as orelhas quentes e da cor do bigode do Geder, me fui. 

Saí da redação nos fundos da Livraria Modelo - com as pernas tremendo. Na Maurício, à direita entrei na Torres Gonçalves. Quando cheguei na altura da obra do supermercado, encontrei o escritório que ficava mesmo numa casa de madeira com janelinhas quadradas. Bem ao estilo das casas de família bem comportadas - americanas. Aquelas que eu via nos filmes. Vidros pequenos formando quadradinhos na janela. E as cortinas branquinhas. Linda. Abri a porta, havia um tapete sob bonitos e pesados móveis e poltronas. Me apresentei à secretária e ela já foi dizendo: “Passa por aqui por favor, o Doutor já está lhe esperando”. Ao abrir a porta levantou da sua cadeira giratória, de encosto alto e preto – um homem de estatura mediana para baixa, exibindo um par de óculos, vestindo um fino terno com gravata. Era o advogado. O grande escritor - Gladstone Osório Mársico. Como eu não o conhecia – não fiquei com tanto medo, o que seria natural a qualquer um que soubesse com quem estaria falando. Às vezes, no jornalismo é melhor não saber da fama do afamado, antes da entrevista - se não tu engasga. 

Crétio: Arquivo/Divulgação
Educadamente me estendeu a mão e mandou que sentasse. Ofereceu-me um café, peguei meu caderninho e minha caneta, e ele foi dizendo que pediu ao Geder um espaço no jornal para uma entrevista sobre um assunto da época que não lembro mais. Recordo apenas que por detrás daquele par de óculos, foi se formando uma imagem de um homem de opiniões fortes, claras, convincentes, que sabia o que dizia e ao mesmo tempo, um homem educado, aparentemente tranquilo, enfim, culto.

Nem sei como anotei tudo aquilo. Ao sair ainda me disse que qualquer dúvida estaria à disposição. Saí mais confiante em mim mesmo porque percebi que a despeito de todo o respeito e fama do entrevistado, ele com sua paciência, conhecimento, simplicidade e charme - que habita entre os cultos – me deixou à vontade.

Na rua já se percebia a movimentação no campinho que daria lugar ao supermercado. Nossa – um supermercado grande no centro de Erechim – “era o último grito”.

Na redação não sei como escrevi a matéria e não lembro de mais nada.  Se o Geder a reescreveu – se saiu ou não. Se houvesse reclamação eu teria ficado sabendo. Repercussão deve ter havido - porquanto na domingueira a fumaceira no Café Grazziottin ganhou força. 

Hoje - olhando para trás - diria que naquele tempo a cidade tinha mais vida, mais ouvidos, mais bocas, mais ousadia e menos - fantasmas que te dizem uma coisa, mas no fundo desejam te adular ou engolir. Era uma cidade mais verdadeira. Perdoe quem não concordar - mas vivi aqueles tempos e ainda ando por ai. E esta é a minha impressão. 

Pois é.

Eu joguei futebol naquele campinho bem abaixo do nível da Torres Gonçalves - de onde veio o Sondinha.

Eu frequentei centenas de vezes, ou muito mais, o mercado. 


Dr. Gladstone.
Crédito: Arquivo
Eu entrevistei o maior escritor que esta cidade já teve - Gladstone Osório Mársico, quando ele tinha seu escritório numa casa de madeira - hoje, aparentemente, uma espécie de andar térreo do prédio onde seu neto Gladstone Osório Mársico Neto e outros familiares - mantém também um escritório de advocacia. A

São reminiscências – que conjugam pessoas, algumas que já se foram, mas que aqui deixaram legados intocáveis, lugares que serviram aos adolescentes daqueles anos, e que adoravam jogar em campinho de terra, de transformações importantes naquela geografia da cidade e que guardo com saudade e orgulho.

Narro esses episódios na certeza que são recortes de pilares, lojas, ferro, bares, cimento, barbearias, escritórios, braços, advogados, famílias tradicionais, tijolos, médicos, adolescentes /atletas, escritores, tecidos, empreendedores e mentes da história da nossa cidade. Como eu vivi aquilo, posso afiançá-los como eventos que ajudaram a moldar também o meu caráter, a minha formação jornalística e os princípios que procuro seguir no ofício e na vida - embora amadores (ou profissionais) com outros interesses não os compreendam e, alguns, não sabem conviver com a limpidez que o jornalismo deve preservar e honrar. 

Olhando para trás, francamente, me dá saudade, pois as fontes daqueles anos me pareciam preocupadas em informar e socializar o que pensavam. Era sem dúvida um ambiente onde os pensamentos não faleciam esquecidos em gavetas, mas acabavam divididos – assumindo os riscos de acato ou não -, mas sempre abrindo um leque ao diálogo. E geralmente respeitando a imprensa independente - a despeito de hoje em dia n'alguns casos bem identificados; nem esta se dar o devido respeito que um dia já mereceu.   


Desfile de Kombis do Empreendimento Ypiranga Constroi.
Sede era na Torres Gonçalves/Arquivo
De lá para cá tudo mudou e muito.

Não só a história dos campinhos e dos mercados.

Não só a de lojas, postos, bares, barbearias, hotéis, igrejas e rádios.

Não só das fontes e dos princípios jornalísticos.

Pessoas mudaram.

Mudou a história não só do que se podia tocar e do que não é tangível.

À bem da verdade - tudo sempre está em mutação. 

O lamento é que nem tudo muda para melhorar o cenário. Percebe-se, salvo exceções, uma crescente de ordem pronominal onde o "nós" acaba substituído pelo "eu" - e o "um por todos" pelo "salve-se quem puder". Também estas digitais estão na nossa identidade e, para não ficar em meias palavras, diria; mormente entre os residentes nos andares superiores. Do alto veem tudo - menor; e quando vizinhos de alto padrão são incapazes de se darem as mãos pelo coletivo - aí viramos peças para fotografias que se revelam em papel ou digital - adornos que também atendem pelo nome de mesquinhes. E sendo honesto comigo mesmo, culturalmente penso que andamos para trás, pois hoje, ideias novas ou pensamentos divergentes tendem a encontrar a morte em gavetas ou arquivos , escondidos do coletivo como se isso pudesse ter alguma utilidade, travando uma analogia entre gavetas e arquivo com fétido sepulcro caiado. Hoje vivemos tempos onde a comunicação de valor está mais para tesouro escondido, em contraponto a volumosos tsunamis de postagens digitais – a maioria de valor nenhum – informações duvidosas; lixos culturais.

Quando homens lutavam por um estádio impensável, quando um campinho de futebol cedia espaço para um supermercado - palpitava em mim um sentimento de esperança em uma comunidade, que aos poucos fui percebendo, perdeu espaço para algo como uma pizza fatiada entre "o meu partido", o "meu clube", "o meu setor", "a minha empresa", "o meu negócio", "a nossa escola", "a minha reserva de mercado", "a minha rádio", "a minha universidade", "a nossa (?) cooperativa", o "meu jornal", "a minha gestão". Tudo somado resulta numa falsa ilusão de grandeza que, na prática, ainda perseguimos. Poderia acabar a pintura do quadro do "eu" ou da "minha" ou do "meu', acrescentando uma pincelada de "a minha ou a nossa ignorância". Essa convicção não é produto do imaginário irresponsável, mas de uma constatação fruto de anos e anos como se um solitário faroleiro fosse. Quem sabe que não precisa de chapéu - descarte. 

Enquanto isso o supermercado erguido do fundo do campinho do Ypiranguinha, na Torres Gonçalves, defronte ao gabinete do maior escritor de Erechim viu “irmãos” nascerem aqui e em São Paulo -, como uma família que se multiplica com planejamento, destemor, ousadia e sucesso.


Lídia e Andrea Sonda com o Anna e Aristides Zambonato.
Seguidos por Alcides e a esposa Terezinha Sonda. Crédito: AVS/Divulgação.

De 1972 a 2024 são 52 anos de  quando eu estava na A Voz da Serra pela primeira vez. De 2024 a 1974 quando o supermercado foi inaugurado são 50 anos. De Sonda, carinhosamente  para Sondinha, em meio século, afora os "irmãos" como dito.

E cinco décadas depois - não é que um vendedor de palhetas de limpador de para-brisa, esses dias saudou-me com um surpreendente “azzahh, que bigodinho de respeito, hein doutor”. Sim, claro, já possuía meus pelos pubianos – mas bigode jamais imaginei.


Público acessa o mercado. Crédito: AVS
Pensando bem, acho que tive sorte na minha extenuante, mas prazerosa caminhada; pois testemunhei momentos de grande valor histórico da cidade, posso recordá-los e escrever sobre eles como se um documento histórico de algum valor, o meu escrito tivesse. Por fim, uma observação que considero oportuna: são inevitáveis as mudanças. Sejam físicas ou de hábitos, geográficas ou de negócios, de mentes ou de pronomes - mas à cultura cabe registrar e avançar com tudo isso e ao mesmo tempo preservar tudo aquilo. E se possível, envidar esforços para rever e promover inclusive mudanças na própria formação cultural, o que é difícil, porquanto se mexer nos caminhos das raízes é impossível, que pelo menos as ramagens e as folhas façam por merecer aplausos verdadeiros. E podar árvores ou hábitos, até onde sei, ainda está ao nossa alcance.  

Ao final dos dias que só existem em nossa recordação; ou nos lançamos mais à frente conjugando o "nós" como propósito comunitário, até mesmo fazendo uso da Inteligência Artificial, ou permaneceremos estagnados em 1974 ou 72.  

Ainda assim é à cultura que caberá apresentar-nos sobre o que fomos, somos e, talvez seremos na essência. Na essência, àquela onde todas os fatos, histórias, interpretações, narrativas verídicas ou ilusórias se ajoelham - separadas ou de braços dados - diante do que constitui a história cultural de um povo. Juntando do nosso chão ou do nosso teto - feitos de má fama, excelsa admiração ou de mis diversidades - sempre ela, a cultura, haverá de abraçar tudo.  

Assim como a Torres Gonçalves dos anos 1960 e 1970, bem aceita nesse tempo e se transformou provavelmente para melhor, sem perder a sua essência e até modificando-se para melhor atender aos interesses comunitários (vide expansão do próprio Sondinha); que os erechinenses do chão ou das alturas, percebam que no fim das contas tudo é Torres Gonçalves. Mudar para evoluir ou não - pode ser uma opção. E se a cidade, com todas suas lideranças em especial, pudesse ser resumida numa rua - por que não pluralizar o "eu"!?


PS  1- são só recordações. Posso ter me equivocado numa ou noutra referência (somos humanos), até porque o objetivo não era reconstituir tal qual uma fotografia. Minha modesta homenagem às famílias Sonda, Mársico e Carraro (que muito contribuíram com Erechim e assim continuam),e à todas que viveram e vivem naquela área da cidade. 


PS - 2 A propósito de supermercados, recebi várias informações a titulo de colaboração. Um dizia que havia já um mercado onde o cliente se servia na Germano Hoffmann, outro que havia o supermercado Zordan na Aratiba com Portugal e, outro mais, lembrou do supermercado Detoni, onde hoje funciona a agência dos Correios frente ao JB. Todos seriam anteriores ao abordado no texto. Mas - como disse equívocos podem ocorrer. Porém, o Sonda quando surgiu era sim, até onde eu sei, o maior mercado da cidade - para os padrões de Erechim - um verdadeiro super mercado, ou seja, um supermercado como os vemos hoje em dia. Mas o núcleo do texto não é apenas o supermercado que está completando 50 anos, e sim, as reminiscências de um tempo com seus atores - quer sejam eles materiais ou humanos numa determina rua.