sábado, 6 de julho de 2024

É uma questão de princípios com a memória


 

"Velho Borges"- completaria neste domingo - 102 anos
Foto: Arquivo/Divulgação

No período marcado como “Brasil o país do futebol”, houve uma época um pouco anterior onde o que não faltavam eram monstros sagrados neste esporte. Zizinho, Jair da Rosa Pinto, Leônidas da Silva, Heleno de Freitas, Ademir Menezes, Castilho, Canhoteiro... Eram os anos 1940/1950. Aí em fins de 1950 veio Pelé e, junto com ele, umas duas dezenas de jogadores fantásticos. O resto da história todo mundo conhece. Neste combo estão cinco títulos mundiais.

Aos poucos as grandes promessas foram atravessando o Atlântico, atraídas por fortunas que os clubes brasileiros não podiam pagar. Ademais – as ofertas eram irrecusáveis. Com o surgimento da figura do empresário de futebol, os atletas extra-classe entenderam melhor este cenário e a troca de continente passou a ser um processo natural.

Hoje em dia o Brasil tem uma seleção que fala vários idiomas, joga em gramados de primeiro mundo, reside em cidades de uma cultura talvez inacansável em termos de hábitos, etc., e vai daí uma espécie de descolamento, de divórcio entre as mais recentes seleções nacionais e a torcida brasileira.

A cidade de Erechim tem orgulho de inúmeras conquistas.

Está na história por um traçado que imita Paris e Washington, é visitada e estudada por caravanas de arquitetos para conhecer sua imensidade de propriedades "art deco", possui um Polo de Cultura entre os mais bonitos do país, afora seu Parque Florestal Longines Malinowski e seu prédio símbolo “Castelinho” – que anda pelas tabelas. Já houve inclusive tempo em que recebia visitantes para conhecer o estádio Olímpico Colosso da Lagoa que, na época da construção, vendeu-se a ideia que poderia receber toda a população da cidade. Isso nunca foi verdade, pois nem o estádio jamais teve essa capacidade e, quando da inauguração em 1970, a área urbana de Erechim concentrava 34 mil almas.

Mas voltando aos monstros sagrados do futebol dos anos 1940/1950, por mais incrível que pareça, Erechim teve o seu. Neste domingo, 7 de julho, domingo que já foi o dia do futebol - se vivo fosse e na memória de muitos ele permanece entre nós - Hermínio Carpegiani, o “Velho Borges” como tornou-se conhecido no meio do futebol estaria de aniversário. Faria 102 anos de idade. Fui “convocado” por um atlantista a não deixar cair no esquecimento esta data. 

escrevi alguns artigos sobre esta figura ímpar do futebol erechinense, então, este desafio é mais que um desafio. Preciso tirar "coelho de cartola" para não repetir o que já escrevi, mas enfim, também sou atlantista e, em homenagem ao meu pai que conheceu de perto o astro verde-rubro, sinto-me no dever e confortado. 

Sugeri uma homenagem ao extra-classe do nosso futebol raiz que veio ao mundo em Antonio Prado. Depois de muita conversação encontraram um lugar numa praça. Porém, receio pelo local, tanto que o memorial já teve de ser reconstruído. Onde está é bonito, mas corre riscos - pertinho da pracinha do Avião. 

Foram os olhos avançados de Plácido Dal Zot, conhecido como "Gorila", dirigente verde-rubro, que descobriram o atleta extra-classe. Considerando o que descobrira - seus olhos eram tão apurados e grandes como seus charutos. Hoje seria um descobridor de talentos à serviço de grandes clubes.

Foto: Arquivo Família

Em 1942 o empresário foi buscar o jovem Hermínio e o trouxe para o Atlântico. Oceanicamente diferente do que é o futebol de hoje – Hermínio Borges trabalhava de manhã na fábrica do “Seu Plácido" e, enquanto respirava a densa fumaça que saía do charutão do patrão,  montava camas de molas. Como compensação ganhava, nos primeiros tempos, licença para treinar à tarde no Atlântico, time do coração do senhor Dal Zot.

Ninguém sabe com exatidão o porquê do apelido  de “Velho Borges”, que, lenda ou realidade teria recebido de alguém quando fazia alguma arte ainda guri. “Olha que eu chamo o velho Borges”, ameaçava uma voz numa alusão, muito provavelmente ao governador da época. Mas sobre isso não se tem certeza. Alguém me disse, não lembro quem, que entre os atletas ele era chamado também de "Grilo". Não sei se procede.

No Clube Esportivo e Recreativo Atlântico (CER Atlântico) que desde seu nascimento em 1915 até hoje sempre teve uma identidade cooperativa, social e esportiva, por que não, futebolística, o “fazedor de camas de molas”, foi campeão de Erechim de 1942, 43, 44, 46, 47, 48, 54, 55, 56 e 1957. Conquistou os regionais de 1942, 1948, 1954 e 1958. Foi vice-campeão estadual de 1948 e 1954.




Paulo César, "Velho Borges", Celso Borjão e Édson
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Foto:José Adelar Ody

Nos 16 anos jogando futebol (1942 - 1958) jamais vestiu outra camisa que não a do Atlântico. Teria seguido de ônibus certa feita a pedido do Grêmio para fazer teste, mas não se fardou. Aliás, segundo Arioli, "ele nem saiu da rodoviária". Pegou outro ônibus e voltou a Erechim, para sua família, para sua casa, para seu único clube.

Casado com a senhora Leda Lacy teve quatro filhos: Celso (Borjão), Paulo César (Carpegiani), Tânia e Edson. Os dois mais velhos seguiram o pai no futebol. Paulo César, no meu entender, tornou-se o maior jogador da história do Internacional desde 1909. Borjão atuou em grandes clubes, fez os dois primeiros gols do Ypiranga no Colosso da Lagoa, até uma lesão no joelho tirá-lo do futebol profissional. Ao lado do irmão foi destaque no futsal também. Da Tânia recordo que fomos colegas no ginásio e ensino médio no Mantovani. Com Édson não convivi.

O aniversariante deste 7 de julho - falecido em 2007, deixou um legado que não sei se o próprio clube Atlântico sabe: além dos inúmeros títulos, jogou 65 clássicos Atlanga. Empatou 12, perdeu 19 e ganhou 34. Fez 31 gols em Atlangas. 


foto: Arquivo pessoal.

Num especial feito para homenagear o “Velho Borges”, chegaram a compará-lo a um dos maiores do mundo, o que sem dúvida foi um exagero, mas ouvindo dezenas de pessoas ligadas ao futebol dos anos 1940 e 1950, que frequentavam treinos e não perdiam jogos – extraí uma certeza que deveria honrar a direção verde-rubra. A verdade surpreendente que colhi nas pesquisas é que segundo atlantistas e todos os ypirangusitas consultados, todos consideraram que Hermínio Carpegiani, foi o maior jogador de futebol a correr pelos gramados erechinenses. E isto, no contexto de uma rivalidade espelhada como se Grenal local fosse, diz mais que tudo.


"Velho Borges" e "Sabiá". Dois craques. Jogaram no Atlântico e depois foram adversários na dupla. Foto: Arquivo/Divulgação

No dia 20 de julho de 1947, no estádio da Montanha, o Atlântico aplicou uma goleada no seu maior rival: 4 a 1. Segundo crônica de “A Voz da Serra” aos 15 minutos o árbitro recusou-se a continuar apitando. Os cronometristas também entregaram o apito, todos descontentes com o policiamento. A arbitragem foi assumida pelo desportista de nome Porto Alegre. A crônica do jornal não dá detalhes sobre as razões do inusitado episódio.

O Atlântico jogou com: Tagliari; Izabelino e Bosio; Rico, Chittolina e Vicente; João, Mozart, Borges, Teffili e Doravante.

O Ypiranga teve: Barbieri; Guaporé e Borges; Tedesco, Amélio e Nardo; Wilson, Sgarabotto, Helly, Plinio e Nanico.

Sgarabotto fez o gol do Ypíranga.

“O velho Borges” fez os quatro do Atlântico.

Clássico que mexia com clubes, atletas, dirigentes, famílias, nas 

fábricas, no comércio, nos bares, nas ruas, na imprensa.

E acaba em goleada.

E o mesmo jogador faz todos os gols do time vencedor.

Isto faz 77 anos - e ainda está na memória.

Nos anais do futebol erechinense.

Na história.

O "Velho Borges" liquidara com o rival.

Que feito.

Que semana.

Que coisa para contar aos filhos, aos netos, aos bisnetos...



Foto: Arquivo/divulgação

Tenho outras passagens do “Velho Borges” pelo Atlântico, que ficaram na história, mas já contei algumas. Ressalto a seleção do eterno presidente gremista, Fábio André Koff, que trabalhou nos dois clubes de Erechim antes de seguir para Porto Alegre. Na sua seleção, cinco atletas do Ypiranga e cinco do Atlântico, mas com um detalhe do próprio Koff: “o Velho Borges”, centroavante: “o melhor de todos”. Faltou um? Sim - Paulo César Carpegiani, que jogou nas categorias de base dos dois grandes de Erechim na época.

Milton Arioli, jogou com o "Velho Borges.
Foto: José Adelar Ody

Um dia, no escritório do senhor Milton Arioli, ele que ajudou na confecção do livro dos Atlangas me disse: “Ody – num Atlanga o jogo estava difícil para nós (Atlântico). Campo pesado, chuteira pesada, bola pesada, etc., e de repente uma falta para nós. Tu viu o Noronha bater falta? Sempre encobrindo a barreira e a bola caindo dentro do gol? Pois é. O “Velho” pegou a bola de couro e bateu igual. Ela subiu e desceu dentro do gol sem chances para o goleiro. Mais adiante outra falta. Lá foi de novo o “Velho”. Pegou a bola, não tirou muita distância e deu uma bomba, mas uma bomba - que o goleiro até hoje não sabe por onde ela entrou”.

Ainda no dizer de Fábio Koff. Mas o que o “Velho Borges” tinha de tão diferente?“Tudo que se pode exigir de um jogador. Espírito combativo, era técnico, chutava com os dois pés, cabeceava muito bem, enfim, era um jogador de exceção”. E Arioli completa: "Ele armava, concluía, jogava em várias posições - comandava o time". 


"Velho Borges", Sabiá e Paulo César Carpegiani
Crédito: Arquivo/divulgação

Assim como todos os monstros sagrados do futebol passaram e deixaram suas marcas e história – alguns injustiçados e não reconhecidos como mereciam -, os nossos também passaram. Seus feitos, não obstante, permanecem.

A raiz do CER Atlântico que remonta a 1915, portanto há quase 110 anos, jamais abdicou da sua bandeira, do seu nome, das suas cores, do seu hino, enfim, jamais omitiu as razões, os feitos e os ideais de seus pioneiros na sua maioria – italianos. Reconsiderar, na maioria das vezes constitui um ato de grandeza que por sua vez também passa a ser incorporado à história de uma instituição, de uma pessoa ou de um clube.

A guinada que o CER Atlântico deu em 1977 ao fechar seu departamento de futebol profissional não obscurece e muito menos apaga seu passado de glórias. Os feitos grandiosos alcançados sob os mesmos princípios que deram origem a este clube, hoje orgulho de Erechim no futsal, só engrandecem sua própria história e quem a planeja e constrói.


                      Baixada Rubra demolida em 1991. 
                                Foto: Arquivo/Divulgação
                                                 
A revolução francesa conseguiu ser apagada?

A guerra civil americana conseguiu ser esquecida?

Alguém não reverencia Pelé como o maior de todos os tempos?

Por que Renato Portaluppi tem uma estátua no Grêmio?

Por que Romário tem uma no estádio do Vasco da Gama?

Por que Fernandão tem a sua estátua no Beira Rio?

Zico tem várias no Flamengo e uma no Museu do Rio de Janeiro.

Quantas dezenas de ex-atletas, que foram expressões máximas 

receberam reconhecimento por seus clubes?

Alguns, quem sabe até cabendo discussão, mas foram reconhecidos.

Outros por méritos indiscutíveis.

Alguns dos feitos citados foram reescritos, foram aprofundados em 

análises e conclusões, mas na essência eles permaneceram tal qual 

ocorreram, porque esta era a sua verdade mais próxima da 

realidade.


Não é preciso negar nenhuma passagem de sua história.

Nada apagará, nem ofuscará, as conquistas nas modalidades 

optadas pelo clube.

Seu futsal reconhecido nacional e internacionalmente permanecerá 

com suas taças no armário, suas glórias públicas, assim como 

continuará sua missão de tornar-se protagonista sempre 

procurando escala ascendente.

De outra sorte, atos e ações que visam melhorar a instituição, ajustar algum desajuste histórico em complemento à sua mais completa verdade, inclusive se necessário for, mudar o que escrito está como se uma constituição interna fosse, sempre em observância à sua concepção e missão enquanto vida - só engrandece seus autores. 

Fazem-nos maiores. Deixam-os com a consciência plenamente em paz consigo mesmos olhando para o passado, respirando tranquilo o presente e vislumbrando um futuro que a outros caberá levar adiante honrando o legado recebido.

Enfim, é tudo uma questão de princípios com a memória..

Julio Cezar Brondani - Presidente do CER Atlântico.
Foto: Arquivo/Divulgação

Quando penso naqueles que tiveram a ideia de fundar um clube quase associativo/cooperativo, depois social e que logo também esportivo com a pratica do futebol, no seu nome, na bandeira, na sua torcida, no seu nome, nos princípios que lhe deram vida ativa nestes 106 anos na cidade – na minha concepção ao colocar no seu espaço geográfico, na sua casa esportiva, uma tangível lembrança em homenagem à sua maior expressão futebolística – Hermínio Carpegiani, “o Velho Borges” -, o maior jogador de futebol de campo profissional do CER Atlântico e de Erechim, 

me vem à mente uma passagem que está em seu próprio, lindo, irretocável e eterno hino. 




Portanto, 

“... honremos nossa tradição!”