sábado, 3 de agosto de 2024

O "gatuno da 'nossa Fátima' do Mantovani"

 

Elídio Scaranto: Foto: Arquivo/divulgação 

Vou confiar, o mais que puder, na minha memória.

Eram os anos 1964 ou 1966 ou... Só sei que concluí o Científico em 1969. De uma coisa tenho certeza: em todo Colégio Mantovani (como era conhecido), não havia em série alguma, colega mais linda que a Fátima. Não lembro seu sobrenome de solteira – mas da Fátima, ah, eu me lembro porque ela era simplesmente linda demais em tudo. Educada. Simpática. Tinha uma voz controlada, com um volume regular/mais para baixo que para alto. Divertida. Doce. O que mais me chamava a atenção: era tudo isso como se ela fosse igual; igual a todos os demais. Sem exibicionismos – andava, respirava, frequentava, circulava e vivia com uma discrição, que a mim, aterrorizava. “Como pode alguém assim tão, tão... comportar-se assim, sem, sem... sem se ‘achar’ etc e tal”. Que nada. A Fátima descia alguns degraus na escada das características que marca cada um de nós, para se misturar. Verdade também é – ninguém vive isolado.  Eu!? Meu Deus - resignadamente jamais pronunciei, ou mencionei, ou me aproximei dela dando a entender que achava tudo isso. Era como se dizia há bom tempo também, e faço-o hoje respeitosamente, “muita areia para meu...”. 

Por fim uma outra verdade: aquele Mantovani dos anos 1960 não tinha só ela, mas punhados de lindas meninas. E mais por fim ainda - talvez quando a gente tem 15, 16, 17 anos... as belezas florescem até de terreno pedregoso. É a vida. E é verdade. Mas que a Fátima era mesmo, como se diz hoje, "fora da curva", disso não há a menor dúvida.  

Pois o tempo passou e me fui vida afora, até parar no jornalismo da PUC em Porto Alegre e nunca mais vi a Fátima. Um dia, assim sem mais nem menos, fiquei sabendo que a Fátima se casara. E logo me veio a curiosidade: quem teria sido esse privilegiado? 

Santo Deus -  não acredito. Casou e casou-se com o nosso professor de Português, o grande mestre Elídio Scaranto. Não pude deixar de arquitetar uma teoria conspiratória, provavelmente alicerçada em pensamentos já contaminados – ou em sonho: “mas que danado, hein! Dando suas aulas assim como quem só estivesse dando suas aulas e... e....! Esse Elídio. O professor. O gatuno da 'nossa Fátima'... do Mantovani”. 

Que homem de sorte e por vai e foi. Ao que sei e, bem sei; foram felizes. Tiveram duas filhas e um filho que lhes deram três netos. Um por ramo. Um dia soube que a Fátima estaria doente. Muito doente. Dessas doenças que nem todos conseguem se livrar. Difícil acreditar, ainda mais, quando associava o quadro de saúde pelo que me chegava aos ouvidos e a lembrança daquela “Fátima pura vida” dos tempos de Mantovani.

Já haviam se passado anos e numa tarde na esquina do Hospital de Caridade, na ala superior acima do laboratório, onde estariam internados os “pacientes terminais”. Do lado de fora do hospital existe até uma rampa e, ali, me deparei com um aglomerado de pessoas conhecidas. O Paludo (Narcíso) se aproximou e à baixa voz, com embargo, soltou um lacônico “a Fátima faleceu”. Eu calei porque não sabia o que dizer quando abrisse a boca. Um filme onde tudo já não era mais real, mas tão somente lembrança, passou num segundo pela minha cabeça revisitando os tempos de Mantovani. Passou a beleza, a discrição, a saia plissada azul marinho, a diadema, a doçura da Fátima, o professor Elídio, seus filhos que não conheço ainda e, tantas lembranças periféricas. Tudo evaporou como um recorte qualquer de um dia qualquer que foi vivido, mas de repente, muito provavelmente, se meteu no Mato da Comissão e nunca mais foi visto. Até hoje e para todo o sempre só poderá ser - lembrado.

Havia mais de um mês em 1981 que eu trabalhava na sucursal da Caldas Júnior em Passo Fundo (depois de pedir demissão da mesma empresa em Porto Alegre). Fizera o que ninguém faria em sã consciência: sair daquela potência da comunicação rio-grandense, para voltar ao interior. Tudo estava dando errado, morava numa pensão de madeira no centro de Passo Fundo onde o inverno naquelas salas enormes e vazias era de congelar as mandíbulas. Lá fora, o vento - cortava. Eu só pensava na besteira que fizera ao trocar a capital pelo interior, e só sonhava dia e noite que talvez milagres acontecessem de verdade e me oportunizasse trabalhar então na minha cidade – Erechim.

Um dia, como diria Forrest Gump, assim sem mais nem menos, do nada, como quem não quer nada porque nada pode aspirar de concreto recebi uma ligação na sucursal. Confesso que não lembro quem ligou, mas havia o dedo do professor Elídio Scaranto nessa história. Queriam  saber se eu não teria interesse em vir trabalhar em Erechim. Era só o que eu queria. Era tudo que eu queria. E aí, quando me dei conta estava na 15ª DE (hoje 15ª CRE). No mesmo 1981 me convenceram que eu podia entrar numa sala de aula e me assumir como “professor”. Havia um curso de Redator Auxiliar (algo semelhante ao curso de jornalismo, mas em nível de 2º grau - atual Ensino Médio) no JB (José Bonifácio).  As disciplinas eram a soma do que um jornalista faz no seu dia a dia. Fui para ver como seria e quando acordei, passaram-se 15 anos. Era 1995 ou 1996. Um dia, também assim sem mais nem menos, entrou uma direção que acabou com o curso de Redator Auxiliar. Sem a menor dúvida – fui um equívoco. Uma pena. Não para mim, mas para a escola, para o ensino médio.

O Elídio cotegipense de nascença, com passagens por escolas de Três Arroios e Seminário de Fátima onde estudou (as Fátimas estavam mesmo no seu caminho) viria a espalhar seus conhecimentos excelsos especialmente na gramática, por escolas públicas estaduais de Erechim e cursos de graduação e pós-graduação na URI. Pessoalmente reencontraria o mestre nas aulas de Língua Portuguesa no Centro de Ensino Superior de Erechim (Cese). 

Elídio Scaranto também bem deixou suas marcas na política local, exercendo inúmeros cargos na municipalidade, quase sempre ligados à educação. Foi secretário de Educação e Cultura, de Administração, de Obras e vereador. Capitaneou o Plano de Carreira do Magistério, foi o mentor e criador do Arquivo Histórico Juarez Miguel Illa Font no raiar dos anos 1980, organizou a Biblioteca Municipal Dr. Gladstone Osório Mársico, esteve envolvido na construção de quase meia centena de escolas e coordenou a construção do Cento Cultural 25 de Julho.

Atuou na coordenação do Mobral, do Centro de Bem Estar do Menor, foi representante do Instituto Nacional e Estadual do Livro em Erechim, passou pela coordenação  geral da Fundação Educacional Padre Landel de Moura, coordenou festivais de arte popular e folclóricas do município, criou exposições de fotografias históricas e de pinturas.  Não bastasse seu currículo tão vasto, de quebra, foi o mentor e idealizador da Feira do Livro de Erechim.

Era 1977 quando o então secretário deu vida ao projeto acabou coordenando os primeiros sete eventos que tanto orgulham a cidade. A propósito, na 20ª Feira do Livro, nos 100 anos de Erechim em 2018, Elídio Scaranto foi reconhecido como patrono do evento formando dupla inesquecível ao lado do homenageado especial daquele ano – o povegliano Jaci José Delazzari. Enfim – enquanto esteve ligado ao poder público da municipalidade deixou suas digitais em dezenas de iniciativas ligadas à educação, à cultura, à arte e à documentação histórica, acumulando ainda o acerto na escolha e capacitação em Porto Alegre, de um jovem curioso, pesquisador e historiador – o grande Enori Chiaparini, que viria a organizar e responder pelo Arquivo Histórico.   

Superando percalços que a vida impõe, tempos após a partida da inesquecível Fátima, o cidadão Elídio acabaria conhecendo outra pessoa (Nilce Fátima - não acredito - mais uma Fátima!), que tornou-se sua companheira na trajetória de sua recheada vida em prol da cidade que abraçou e a quem dedicou grande parte das suas melhores virtudes. Ambos, professores vivem hoje uma aposentadoria merecida e tranquila.

Como aluno do professor Elídio, em períodos e circunstâncias distintas (2º grau e graduação), e mais tarde ainda como seu colega na administração Jayme Lago, busco com este singelo e despretensioso texto, reconhecer neste ser humano e homem público, ter me oportunizado a retomada da própria vida, num dos momentos mais difíceis que enfrentei. Sei que houve ainda a participação de outras pessoas (tenho minhas variadas suspeitas...) – mas se minha memória pode me trair; não consigo ignorar que esse sujeito acabou interferindo no meu resgate e encaminhamento para o magistério, posteriormente.   

Quem não teve tal proximidade com o Elídio para uns, Scaranto para outros, não precisa concordar e nem bater palmas, mas se as nossas obras refletem no espelho da vida uma luz, ou um bom lance ou um naco da nossa passagem por onde quer que a vida tenha nos levado, releia e reflita sobre o currículo que eu mesmo espremi (para caber aqui) a respeito desta figura tão engajada à cena histórica/educacional e cultural desta cidade.

Meu caro “gatuno daquela Fátima dos tempos de Mantovani”. Eu sei que a expressão pode parecer exagerada ou até chocante, mas aprendi no jornalismo que, às vezes, é preciso tentar impressionar um pouco, não só para sensacionalizar algum evento, mas para contemplar ainda melhor o que verdadeiro foi e é.

Pelo conjunto da obra, da sua obra meu amigo – minha sincera gratidão, na certeza que o município, a cidade, os erechinenses enfim, muito lhe devem e, um outro tanto tem a lhe reconhecer de fato, se é que ainda não o fizeram na sua mais extensa merecida plenitude.

Hoje me rendo: não!

O professor de português não gatunou ninguém. 

A Fátima é que escolheu. E bem.

Grande - Elídio Scaranto.


PS - Esta crônica ou texto não tem outro viés senão o de enaltecer a querida colega e amiga Fátima (de saudosa memória), o professor Elídio Scaranto e os seus mais próximos.