Roberto (Beto) Hachmann |
- Que café é esse, Enori (Chiaparini)?
- Mas não sei... hein Cacá. Que café é esse que eu e o Beto estamos tomando?
- É um Capuccino. Capuccino da casa. Bom né!
- Baahhh! - muito bom, emenda o Beto.
Eu já estava pela metade da minha água mineral com gás. Preciso controlar a glicose.
- É, Zé (como o Beto me tratava). Tu te cuida. Diabetes... Olha... Cuidado!
De repente entra o dr. Antonio (Dexheimer).
- Mas... Olha só. Que trio!
Nos cumprimentamos e ele senta-se com a filha dra. Nicole, que o aguardava.
Na mesa voltamos ao nosso assunto.
- Hein Zé, retoma o Beto e estende: começamos bem né?
Voltávamos de um encontro com o presidente do Ypiranga, Adilson Stankievicz e da
residência do senhor Aníbal Morganti.
Aníbal tem 97 anos. Seu pai, José Morganti, fora jogador do Ypiranga na década de 1930.
Uma de suas filhas nos conduz até a sala onde Aníbal nos aguardava. Era 22
de julho, uma terça-feira.
Nosso encontro tinha uma razão: buscar informações e fotos inéditas sobre o Ypiranga. Nosso projeto: reviver em um livro, à base de fotos/legenda, a história do Ypiranga.
Depois iríamos ao presidente do Atlântico, Julio Brondani.
As obras contariam com fotos de Beto Hachmann, pesquisa de Enori Chiaparini e
textos (enxutos), meus.
Enquanto o Enori e eu íamos perguntando e o Aníbal lembrando - o Beto com a câmera sobre
o tripé defronte ao entrevistado, registrava.
Aníbal Morganti relatou que seu pai fez uma casa onde hoje encontra-se o Centro Espírita
Caminhos da Luz, na rua Polônia. Aquela casa, na parte superior serviu de concentração do time
das cores nacionais na década de 1920/30 – logo depois da fundação em 1924.
Uma das filhas ofereceu café, gentileza que aceitamos.
- O do Zé sem açúcar, orientou o Beto.
A conversa sobrevoou os anos 20, 30, 50, 1970... assim como se fizéssemos uso de
satélites e equipamentos, desses que vemos pela televisão, ou em filmes, quando
militares de países entram em ação para localizar possíveis alvos.
O Beto ia fotografando tudo: quadros antigos da família e até, de nós, tirou uma
foto. Hoje, acredito que aquela pode ter sido a última ou das últimas que ele fez.
O café estava quente e amargo, pois, sem açúcar.
Aníbal foi o primeiro ‘camaramen’ da TV Erechim no condomínio. E depois foi
cinegrafista da RBS na cidade. Lembrou que na inauguração do Colosso da Lagoa,
em 1970, levou a família na Rural Willys que tinha. “Na saída do estádio, onde
estava a camionete? Não é que a roubaram”, contou. (Mais tarde a polícia
localizaria o veículo).
O Beto quase não falava, mas atentava a tudo.
Saímos agradecidos e meio eufóricos. Estávamos começando bem.
No dia seguinte, quarta-feira, 23, recebi do Beto várias fotos que ele garimpou
no seu fantástico acervo. Eram fotos sobre Ypiranga e Atlântico que eu
desconhecia até então.
“Zé... achei a foto, achei a foto da casa dos Morganti onde o Ypiranga
concentrava. Eu sabia que tinha essa foto. E encontrei também a foto da primeira
sede do Ypiranga que foi destruída por um incêndio na rua Alemanha na década de
30...”, me avisou o Beto. Puxa – era demais!
Dia 25 o Beto mandou áudio: “Estive fora hoje. Depois comento!”.
Dias 26 e 27 não nos falamos.
- Estou formatando o projeto, quero te apresentar durante a semana’, foi a
mensagem que me enviou às 14h47min. E era segunda-feira, 28.
Na manhã seguinte, 29, no grupo da Academia Erechinense de Letras, cumprimentavam
a confreira Neusa Garcez que estava de aniversário. De repente a Lucia (Balvedi
Pagliosa), postou o inacreditável. Desabei no sofá na casa da minha filha, não
acreditando naquele... “faleceu o Beto”.
Mas que Beto, qual Beto?
Há tantos Beto! – logo me socorri.
Não podia ser o Beto do nosso projeto, o Beto com o qual eu vinha me reunindo
há três semanas. Não podia ser o Beto que ao parar o carro em frente de onde
moro, quando eu e o Enori o esperávamos para ir na casa do Morganti, e ao aproximarmo-nos, abriu um sorriso
e... “só tem lugar pra um”. Não. Não podia ser o Beto que ontem (28) me avisou...“quero te mostrar (o projeto) durante a semana”.
Mas não.
Não – sim... era ele mesmo...
o Beto Hachamn.
Na tarde daquela terça-feira, 29, alguém me tocou no ombro na entrada da
Capela B do Hospital de Caridade. Era o Mozart Lago: “Morreu hoje, o maior
artista de Erechim”.
Não vou aqui resgatar todas as obras emolduradas pelas fantásticas e históricas
fotografias do Beto Hachmann.
Elas, como um sol que nasce e se põe, iluminaram livros e publicações
magníficas sobre empresas, instituições, entidades de classe... sobre educação,
cidades e países mundo afora.
No cinema inscreveu o seu nome em obras de Osnei de Lima.
Quase na ante-sala dos anos 2000, numa tarde de 1990, me detive como se alguém
me puxasse pelo ombro, defronte ao Castelinho. O prédio símbolo sofria e gemia,
com as agruras das intempéries e pelo esquecimento. Ameaçava desabar. Quase como hoje.
Procurei o melhor fotógrafo.
O Beto fez as fotos.
Elas ilustraram matérias no Correio do Povo.
As fotos, tocantes sobre o estado degenerativo do Castelinho, desencadearam uma
CPI na Câmara de Vereadores.
Três anos depois, no governo do prefeito Antonio Dexheimer, o prédio seria
restaurado ganhando quase uma ‘vida nova’.
Residindo na mesma cidade por décadas, minha aproximação com o Beto Hachmann
ganhou musculatura há cerca de um mês.
Foi algo impressionante.
Quando o sol já se punha, à saída do Crematório Anjos da Luz, terça-feira, 29; a
esposa Kéti, num longo abraço me falou: "O Beto estava muito feliz, Ody. Ele me
falava que nunca tinha feito um trabalho contigo e, nos últimos dias ele estava
muito empolgado".
Eu retribuí, porque havia anos que, parado por aposentadoria, ao descortínio
de voltar a fazer algo que gosto e, sobretudo com um profissional renomado como
o Beto – sentia o prazer de renascer dentro de mim mesmo.
Se nosso relacionamento profissional foi fugaz, não menos verdade é que - como um
‘clic’ da sua máquina – rápido e certeiro – foi também amistoso, comprometido,
honesto, tranquilo e prazeroso.
Depositava nele o melhor da fotografia.
Junto ao Enori confiávamos promissora expectativa.
Não sei se daremos continuidade ao projeto.
O que eu sei é que desfrutei e vivi nas últimas semanas, dividindo cara a cara
em mesas de café – algo como fotogramas de luz, inspiração e confiança -, planos
e bate-papos com um sujeito educado, ético, inteligente, receptivo, criativo e
apaixonado pelo que fez, como talvez ninguém em sua área, nesta cidade.
Um profissional de elite.
Um ser humano – humano, quando o termo se pretende contemplado e civilizado -, de
princípios e, como a maioria dos artistas, com uma alma extremamente sensível.
O que eu sei é que no ainda recente 22 de julho, felizes e empolgados – tomamos
um café na Cacá.
Ocorre-me agora: parecíamos três iniciantes, ‘loucos’ para fazer acontecer, ‘bêbados’
diante de um desafio que sabíamos – tínhamos plenas condições de fazer, e fazer
bem. Muito bem.
Depois de bons 40 minutos, instintivamente, levantei da cadeira e pedi a conta.
O Beto e o Enori reagiram: “Baahhh... mas o que é isso Ody... deixa que nós
pagamos. Vamos dividir”.
Lembrei do áudio que o Beto me mandou dia 8 de julho às 18h55min sobre o trabalho
que iniciávamos:
“Zeca,... Zé... eu tô indo... amanhã eu
vou tá com o meu dia assim... fechando uns trabalhos pra levar lá (se não me
equivoco falou algo sobre São Paulo) quinta-feira né, vou ter ainda trabalho
para terminar... é um evento bem grandioso, depois vou te falar. Mas nós
podemos fazer os dois juntos, tranquilamente... na volta falamos... só pra te
dá mais um toque assim... que realmente é Atlântico e Ypiranga...e... beleza
guri!
Abraço...até...
e tu vai pagar o próximo café, tá...”
risos.
O nosso próximo café estava pago.
O último café.