sexta-feira, 15 de agosto de 2025

O último café

 

Roberto (Beto) Hachmann


- Que café é esse, Enori (Chiaparini)?

- Mas não sei... hein Cacá. Que café é esse que eu e o Beto estamos tomando?

- É um Capuccino. Capuccino da casa. Bom né!

- Baahhh! - muito bom, emenda o Beto.

Eu já estava pela metade da minha água mineral com gás. Preciso controlar a glicose.

- É, Zé (como o Beto me tratava). Tu te cuida. Diabetes... Olha... Cuidado!

De repente entra o dr. Antonio (Dexheimer).

- Mas... Olha só. Que trio!

Nos cumprimentamos e ele senta-se com a filha dra. Nicole, que o aguardava.

Na mesa voltamos ao nosso assunto.

- Hein Zé, retoma o Beto e estende: começamos bem né?

Voltávamos de um encontro com o presidente do Ypiranga, Adilson Stankievicz e da residência do senhor Aníbal Morganti.

Aníbal tem 97 anos. Seu pai, José Morganti, fora jogador do Ypiranga na década de 1930.

Uma de suas filhas nos conduz até a sala onde Aníbal nos aguardava. Era 22 de julho, uma terça-feira.

Nosso encontro tinha uma razão: buscar informações e fotos inéditas sobre o Ypiranga. Nosso projeto: reviver em um livro, à base de fotos/legenda, a história do Ypiranga. 

Depois iríamos ao presidente do Atlântico, Julio Brondani.

As obras contariam com fotos de Beto Hachmann, pesquisa de Enori Chiaparini e textos (enxutos), meus.

Enquanto o Enori e eu íamos perguntando e o Aníbal lembrando - o Beto com a câmera sobre o tripé defronte ao entrevistado, registrava.

Aníbal Morganti relatou que seu pai fez uma casa onde hoje encontra-se o Centro Espírita Caminhos da Luz, na rua Polônia. Aquela casa, na parte superior serviu de concentração do time das cores nacionais na década de 1920/30 – logo depois da fundação em 1924.

Uma das filhas ofereceu café, gentileza que aceitamos.

- O do Zé sem açúcar, orientou o Beto.

A conversa sobrevoou os anos 20, 30, 50, 1970... assim como se fizéssemos uso de satélites e equipamentos, desses que vemos pela televisão, ou em filmes, quando militares de países entram em ação para localizar possíveis alvos.

O Beto ia fotografando tudo: quadros antigos da família e até, de nós, tirou uma foto. Hoje, acredito que aquela pode ter sido a última ou das últimas que ele fez.

O café estava quente e amargo, pois, sem açúcar.

Aníbal foi o primeiro ‘camaramen’ da TV Erechim no condomínio. E depois foi cinegrafista da RBS na cidade. Lembrou que na inauguração do Colosso da Lagoa, em 1970, levou a família na Rural Willys que tinha. “Na saída do estádio, onde estava a camionete? Não é que a roubaram”, contou. (Mais tarde a polícia localizaria o veículo).

O Beto quase não falava, mas atentava a tudo.

Saímos agradecidos e meio eufóricos. Estávamos começando bem.

No dia seguinte, quarta-feira, 23, recebi do Beto várias fotos que ele garimpou no seu fantástico acervo. Eram fotos sobre Ypiranga e Atlântico que eu desconhecia até então.

“Zé... achei a foto, achei a foto da casa dos Morganti onde o Ypiranga concentrava. Eu sabia que tinha essa foto. E encontrei também a foto da primeira sede do Ypiranga que foi destruída por um incêndio na rua Alemanha na década de 30...”, me avisou o Beto. Puxa – era demais!

Dia 25 o Beto mandou áudio: “Estive fora hoje. Depois comento!”.

Dias 26 e 27 não nos falamos.

- Estou formatando o projeto, quero te apresentar durante a semana’, foi a mensagem que me enviou às 14h47min. E era segunda-feira, 28.  

Na manhã seguinte, 29, no grupo da Academia Erechinense de Letras, cumprimentavam a confreira Neusa Garcez que estava de aniversário. De repente a Lucia (Balvedi Pagliosa), postou o inacreditável. Desabei no sofá na casa da minha filha, não acreditando naquele... “faleceu o Beto”.

Mas que Beto, qual Beto? 

tantos Beto! – logo me socorri.

Não podia ser o Beto do nosso projeto, o Beto com o qual eu vinha me reunindo há três semanas. Não podia ser o Beto que ao parar o carro em frente de onde moro, quando eu e o Enori o esperávamos para ir na casa do Morganti, e ao aproximarmo-nos, abriu um sorriso e... “só tem lugar pra um”. Não. Não podia ser o Beto que ontem (28) me avisou...“quero te mostrar (o projeto) durante a semana”.

Mas não.

Não – sim... era ele mesmo... 

o Beto Hachamn.

Na tarde daquela terça-feira, 29, alguém me tocou no ombro na entrada da Capela B do Hospital de Caridade. Era o Mozart Lago: “Morreu hoje, o maior artista de Erechim”.

Não vou aqui resgatar todas as obras emolduradas pelas fantásticas e históricas fotografias do Beto Hachmann.

Elas, como um sol que nasce e se põe, iluminaram livros e publicações magníficas sobre empresas, instituições, entidades de classe... sobre educação, cidades e países mundo afora.

No cinema inscreveu o seu nome em obras de Osnei de Lima.

Quase na ante-sala dos anos 2000, numa tarde de 1990, me detive como se alguém me puxasse pelo ombro, defronte ao Castelinho. O prédio símbolo sofria e gemia, com as agruras das intempéries e pelo esquecimento. Ameaçava desabar. Quase como hoje.

Procurei o melhor fotógrafo.

O Beto fez as fotos.

Elas ilustraram matérias no Correio do Povo.

As fotos, tocantes sobre o estado degenerativo do Castelinho, desencadearam uma CPI na Câmara de Vereadores.

Três anos depois, no governo do prefeito Antonio Dexheimer, o prédio seria restaurado ganhando quase uma ‘vida nova’.

Residindo na mesma cidade por décadas, minha aproximação com o Beto Hachmann ganhou musculatura há cerca de um mês.

Foi algo impressionante.

Quando o sol já se punha, à saída do Crematório Anjos da Luz, terça-feira, 29; a esposa Kéti, num longo abraço me falou: "O Beto estava muito feliz, Ody. Ele me falava que nunca tinha feito um trabalho contigo e, nos últimos dias ele estava muito empolgado".

Eu retribuí, porque havia anos que, parado por aposentadoria, ao descortínio de voltar a fazer algo que gosto e, sobretudo com um profissional renomado como o Beto – sentia o prazer de renascer dentro de mim mesmo.

Se nosso relacionamento profissional foi fugaz, não menos verdade é que - como um ‘clic’ da sua máquina – rápido e certeiro – foi também amistoso, comprometido, honesto, tranquilo e prazeroso.

Depositava nele o melhor da fotografia.

Junto ao Enori confiávamos promissora expectativa.

Não sei se daremos continuidade ao projeto.

O que eu sei é que desfrutei e vivi nas últimas semanas, dividindo cara a cara em mesas de café – algo como fotogramas de luz, inspiração e confiança -, planos e bate-papos com um sujeito educado, ético, inteligente, receptivo, criativo e apaixonado pelo que fez, como talvez ninguém em sua área, nesta cidade.

Um profissional de elite.

Um ser humano – humano, quando o termo se pretende contemplado e civilizado -, de princípios e, como a maioria dos artistas, com uma alma extremamente sensível.

O que eu sei é que no ainda recente 22 de julho, felizes e empolgados – tomamos um café na Cacá.

Ocorre-me agora: parecíamos três iniciantes, ‘loucos’ para fazer acontecer, ‘bêbados’ diante de um desafio que sabíamos – tínhamos plenas condições de fazer, e fazer bem. Muito bem.

Depois de bons 40 minutos, instintivamente, levantei da cadeira e pedi a conta.

O Beto e o Enori reagiram: “Baahhh... mas o que é isso Ody... deixa que nós pagamos. Vamos dividir”.

Lembrei do áudio que o Beto me mandou dia 8 de julho às 18h55min sobre o trabalho que iniciávamos:

“Zeca,... Zé... eu tô indo... amanhã eu vou tá com o meu dia assim... fechando uns trabalhos pra levar lá (se não me equivoco falou algo sobre São Paulo) quinta-feira né, vou ter ainda trabalho para terminar... é um evento bem grandioso, depois vou te falar. Mas nós podemos fazer os dois juntos, tranquilamente... na volta falamos... só pra te dá mais um toque assim... que realmente é Atlântico e Ypiranga...e... beleza guri!

Abraço...até...

e tu vai pagar o próximo café, tá...” risos.

O nosso próximo café estava pago.

O último café.

Nota: Roberto Hachmann (Beto) - faleceu na madrugada de terça-feira, dia 29 de julho, aos 70 anos. 

   

 

 

 

 

 

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Privilégios são para poucos

 

Edir Bisognin Goelzer (dona Edir)
Crédito: ArquivoFamília


À saída da missa de 7º dia da esposa Edir, no gelado sábado passado (9) no Santuário de Fátima, o dr. Jorge Lisboa Goelzer, ainda no interior da igreja - com os olhos marejados murmurou quase como um pedido de socorro ao meu ouvido: “não é fácil, não é fácil. Eu chego em casa e olho aquele sofá...’ Limitei-me ao abraço fraterno e solidário, como se isso pudesse dizer alguma coisa – porquanto falar – me foi impossível. Não encontrei nenhuma palavra. Fui um dos últimos a me achegar e depois dali cada um seguiu para seu sábado à noite. Para o dr. Jorge, assim aos seus filhos Jorge Luis e Paulo Roberto, às noras e netos, por certo, foi um sábado ainda de ausência – mas não deixou de ser um certo conforto, imagino, contar com a presença de muitos amigos.

Durante a semana em uma consulta médica, falei com o dr. Milton (Serpa) de diferentes assuntos e, como não podia deixar de ser, um deles foi sobre e a semana anterior – quando convivemos com inúmeras perdas de pessoas muito conhecidas. Até onde me lembro, a cidade jamais tivera semana tão avassaladora quanto à perdas - exceção feita à tragédia do ônibus que caiu na Barragem da Corsan vitimando 17 pessoas em 2004.

Edir Bisognin Goelzer, mãe Edir, tia Edir, para mim, dona Edir.

Sou de um tempo onde as mães tinham 10 filhos, alguns casos duas dúzias, ou... Alguém haverá de lembrar de uma mulher com até 15 ou sei lá.

Dona Edir (como a trato neste texto), teve uma história incrível, invertendo a própria lógica que se historia tempos afora. Sim, porque não raro se ouve sobre uma mulher que ‘teve 20 filhos... contando os adotivos’. Mas a inversão da lógica pela dona Edir se dá na medida em que dezenas e dezenas de crianças viraram adultos, e viam nela, sua mãe. Quer seja a principal, a adotiva, a mãe de fato ou mãe da redenção, do sustento, da salvação... mãe de toda hora, mãe do amor. Mãe para sempre. Entre essas, uma saiu do berço hospitalar para a residência dos Goelzer. “Eu sempre chamei a dona Edir de mãe”, recorda Priscila. Enfim, todas elas – privilegiadas.

Eu sei que a recíproca da dona Edir era a mesma para com suas crianças, mas caso pode ter havido onde ela, em não conseguindo lembrar de todos – certamente todos, um dia, uma hora, um tempo ou até hoje... ou por todo o tempo, dela se lembram, lembraram ou lembrarão.

Filha de um médico afamado também por sua humanidade dr. Bisognin, dona Edir saiu de Severiano de Almeida e, nas salas de aulas descobriu e lustrou sua vocação, sua prioridade, seu destino, seu amor: as crianças.

Foram 33 anos na presidência do Lar da Criança e outros tantos alcançando cerca de 40 anos na instituição. Não por acaso o ‘lar’ chama-se já algum tempo ‘Lar da Criança Edir Bisognin Goelzer’, um reconhecimento do qual sempre se orgulhou - sem jamais deixar de reconhecer que a obra sempre teve muitas mãos.

Se o dr. Jorge fez fama e é conhecido por sua eloquência ao ser inquirido a se pronunciar – para equilibrar a gangorra no lar dos Goelzer, dona Edir anda em sentido oposto neste particular. Lembro, se a memória não me trai, quando estive em sua casa à convite dr. Jorge, para com outros colorados assistir a caminhada do nosso Internacional na Libertadores de 2010. A cada pouco o dr. Jorge saía com um "mãe... olha quem chegou. O Ody, mãe..." e logo, "mãe... o pessoal quer bebericar mãe, mãe - quase gol do Inter... Ah, não Ody... fica... Mãe vem dar tchau, o Ody acha que está dando azar e quer ir embora, ahahahah". Ou seja: seu inconfundível 'mãe' - estava no dia à dia com sua Edir.

A mim ela sempre foi uma mulher simples, humilde, que atraía pelo carinho sem abrir a boca. Sabia ouvir como poucos. Fitava como outros tantos poucos. Jamais alguém lhe dirigiu a palavra, ou ao seu esposo, sem que dona Edir permanecesse atenta e de olhos em quem falava. E isto se chama respeito. Educação. Prestígio. Incentivo. Exibia um sorriso que, para não descrever muito, permaneço no meigo. Sabia cativar. Na mesma balada me intrigava seu silêncio, absurdamente gritante - barulhento.

Sempre muito bem vestida e arrumada – deixava escapar um sutil perfume das mulheres de antigamente que escondiam a luxúria, como se numa caixinha, onde, ao se abrir; o aconhego, um ar de admiração, o charme e a elegância que acompanham as grandes de verdade – podiam ser quase tocados como numa valsa tendo por par, a discrição. Só não o eram, tocados, para não desfazer a doçura do semblante – quase uma marca que dona Edir trazia consigo.

Difícil crer que poderia haver algo superior – muito mais, por trás daquela fantástica mulher, de aparência quase frágil, como era possível notar num Baile da Sobremesa no Clube do Comércio, ou à saída ao final de uma das missas na catedral São José aos domingos pela manhã, quando raios do sol lhe pareciam cair e iluminar mais que bem – para si. Pois, dizia, difícil crer que uma mulher assim tornar-se-ia ainda mais fantástica ao abraçar com tudo que tinha e era – uma ‘Obra’ como ‘O Lar da Criança’ onde tudo sempre necessita ser reposto. E se uma coisa não pode faltar, por um dia sequer, é carinho, é presença, é mão estendida, é amor – especialidades dessa grande mulher.

Longe de qualquer comparação, não obstante, me vem à lembrança, uma frase, um conceito que se credita à Madre Teresa de Calcutá, como palavras suas: “Menos lábios – mais mãos”. E, talvez nesta máxima, dona Edir virou ‘mãe Edir, tia Edir...’ de um, dez, cinquenta, ou conte-se quantas dezenas se queira acrescentar ao longo de quase 40 anos de comprometimento com essa causa que se coloca no altar mais elevado, mais puro e santo, dentre todos que se possa homenagens render.

algum tempo saiu um livro sobre as 100 maiores personalidades de Erechim – onde é resgatada, de forma objetiva pelo grande historiador Enori Chiaparini, a história de cada uma delas. Há pouco tempo saiu outra obra sobre as mulheres de Erechim. Em ambas – encontramos pessoas de feitos memoráveis para edificação desta terra. E isso é positivo, pois em assim sendo, a história não desmaia em ‘definho’ pelos cantos da vida. Sob este particular, observe-se a participação da Academia Erechinense de Letras, no livro das mulheres, onde ali também está breve histórico da dona Edir.

Como somos impotentes para mudar o curso dos fatos já ocorridos, diria ao dr. Jorge, mesmo sentindo a dor da ausência da “minha namorada” ou "mãe" - como acostumou-se a tratar ‘sua Edir’ por cerca de 70 anos – que resigne-se, juntando afagos de seus filhos e netos, companheiros de Lions e amigos, resigne-se junto a Deus – ao Criador como gosta de mencionar e, eleja o sofá agora vago, como um um templo a expor não tão somente a lembrança da sua ‘eterna namorada’, mas que identifique também ali a obra que a esposa Edir, a mãe Edir, a Edir vó, ou simplesmente tia Edir ajudou a plantar, construir e manter – com dezenas ou centenas de ramos que hoje adultos, um dia crianças que por lá passaram.

O tempo não fará parada e avançará sobre si mesmo.

E, um dia – chegará o dia -, onde Edir Bisognin Goelzer será vista, tratada e reconhecida como uma lenda. Quem viver, verá.

Eu que não estarei mais aqui para tanto, já me antecipo e reconheço já hoje, nesta singela homenagem - esta meiga, discreta e notável mulher – como uma lenda.


O tempo é inexorável.

Assim também a separação.

O adeus é para todos.

Privilégios são para poucos.

Dona Edir agora está nos braços de 

Nossa Senhora do Desterro.

 

sábado, 9 de agosto de 2025

Os agostos de ontem!

 

Banda Marcial do Colégio Mantovani
Crédito: Banda Marcial
 

I

Eu sempre considerei os agostos, setembros e ainda os outubros os meses mais bonitos do ano.

Sim – porque são a aurora da primavera/verão. 

E, claro, a certeza que o inverno fica irremediavelmente para trás.

II

Me desperta, agora, no entanto, uma lembrança que só percebi ontem quando estive de passagem pelo inesquecível ‘JB’.

Uma mocinha já, vestindo a rigor o inapagável traje da Banda Escocesa, me arremessou aos agostos de 1964 a 1969 quando fazia o ginásio e depois o 2º grau lá no Mantovani.

Aqueles agostos tinham dias de intenso calor.

Era o calor dentro do inverno.

III

Como havia ânimo nas turmas onde as gurias não paravam de ajeitar as diademas, enquanto a piazada alisava os cabelos molhando a palma das mãos na pia dos banheiros!

Nos espelhos lambuzados e manchados, se miravam.

Espremiam espinhas e faziam um último traquejo antes de sair.

Fica melhor assim - ou assim? - era a pergunta que não queria calar e impedia a saída do banheiro. 

 IV

Sim – havia um ânimo rejuvenescido naquelas carinhas porque simplesmente depois dos recreios daquelas semanas de fim de agosto, que eram como a margem do 7 de setembro,  alguém da direção haveria de bater à porta, depois do recreio, assim que o Gino ou o Barp, a Geni ou o Rabello, o João Komosinski ou o Zambonatto, o Generalli ou o Elídio... ou o Adroaldo, estivessem no meio da chamada.

V

O assistente bateria à porta e passaria a ordem: - Professor... bom dia. É para os alunos se dirigirem ao pátio. O senhor pode liberá-los.

Minha Santa Mãe do Céu!

E antes que alguém no fundo se adiantasse com um ‘... é pra levar os livros?’ – o próprio auxiliar (o seu Dalla Costa ou o querido ‘Cebolinha’!) emendava: - É para deixar os livros na sala e pegar depois.

VI

Nossa Senhora de Fátima, era bom demais.

Dois períodos sem aula!

Quase duas horas – das dez e pouco até o meio dia sem catetos ou hipotenusas; orações subordinadas substantivas completivas nominais e agentes da passiva.

VII

Era uma graça de Deus.

Um presente.

Uma dádiva.

Uma benção que vinha de quem tomava aquela sábia decisão de interromper as aulas e mandar todo mundo para fora das quatro paredes enfeitadas de cartazes mal acabados, e tortamente pendurados, onde o papel laminado verde e amarelo se contorcia e já vergava.

VIII

Para o pátio; marchar.

O Brasil tinha futuro.

Nós – éramos o futuro da Nação!

IX

Aquelas manhãs de agosto quando nos postavam sempre atrás de um mais alto, e todos, atrás de um bumbo da Banda Marcial, as manhãs de fim de agosto permitiam que se passeasse pelas ruas das redondezas do Mantovani, afundando o calçamento com o Vulcabrás: um, dois/um, dois; esquerdo, direito/esquerdo, direito. – Olha a cobertura! Não vira essa cabeça pro lado...! Acerta esse passo José Adelar – não sabe nem marchar – ôôô... mocorongo! Levanta essa cabeça ô...ô... um/dois; esquerdo/direito; um, dois...

X

Muito mais do que ‘matar’ dois períodos com enchimento de caderno (a gente sempre vê as aulas assim quando se é aluno), muito mais mesmo, era poder varar a brisa com a cara cheia de espinhas e torcer para que a guria, aquela da coluna à esquerda, ali da frente, disfarçasse com um ajeitar de diadema, e volvesse a cabeça e nos desse de presente, seu olhar mais pontudo, mais certeiro, mais atiçado, mais desafiador, mais estonteante, mais apelativo, desconcertante e convidativo e, mais cegueiro até do que os raios do sol da manhã de quase primavera/verão. Olhar que flechava, furava, cravava, doía – mas como era oportuno e cabido, disputado e lembrado. Ai – que saudade!

XI

Um/dois; um/dois; esquerdo, direito...!

Que se marchasse até depois do meio dia... por mim... com ela lá na frente que se suspendesse todos os almoços e se entrasse tarde adentro: parrrmmmm – pá/pá – paparrmmmmm – pá/pá...! 

E ela lá – e a gente cá!

Parrmmmmmm – pa/pá – paparrrrrmmmmmmm – p/pá!

XII

Entre um e outro esquerdo/direito, a dona de casa, já meia gorda e desajeitada, vestida de igual toda a semana, mal penteada, prisioneira da rotina,  cuia à mão, deixava os panos de lustrar e se debruçava na janela da casinha de madeira recém pintada para ver a banda com o seu séquito juvenil - que fazia treinar para o 7 de setembro.

XIII

Quais seriam as saudades daquela mulher de olhar perdido por entre nós?!

XIV

O ar quente subia do calçamento que nem vapor e o suor brotava sob os cabelos, vinha pelas têmporas e descia pelas costas, bundas... pelas canelas. Um/dois; um/dois; esquerdo/direito; esquerdo/direito... pammm/papa/pamm! Um/dois; um/dois...

XV

O tarol, o bumbo, o prato, a caixa, o sol, ah o sol das onze e quarenta e um, os clarins, o suor na testa manchando a vista, não eram suficientes e nem maiores que o olhar firme para ela, ela ali na frente, magrinha, de feitura aparentemente frágil, porém inquebrantável e doce, de olhos brilhantes como diamantes e que via uma das suas meias escorregar e descer pela canela a cada... um/dois; esquerdo/direito..., sua saia marinho  e plissada a balançar,  enquanto com uma das mãozinhas tentava arregaçar as mangas da blusa branca de tergal deixando os bracinhos finos, crispados de pelinhos negros se acariciarem pela brisa, ou então ainda,  num gesto rápido para fugir aos olhos da professora, buscava firmar a diadema que teimosamente insistia ficar em desalinho, em desequilíbrio, quase a despencar contra o solo sob as solas dos sapatos de mulher.

XVI

Um/dois; esquerdo/direito; Um/dois...!

XVII

Os agostos ainda vêm e vão, mas aquelas manhãs que faziam os joelhos tremer, a mocidade vibrar... onde a educação era um caso de amor, e de amor eram os casos... Aquelas manhãs ficaram penduradas nos quadros da vida de cada um.

E, numa das paredes da minha vida – contemplo este quadro dos agostos de ontem, toda vez que o 7 de setembro se ensaia e, em especial, o agosto nos bate à porta da vida, das lembranças e... entra.