domingo, 13 de dezembro de 2020

As crônicas de Cleo Ortigara em SC


1

A vida é mesmo feita de etapas. De períodos como se fossem compartimentos independentes, mas habitando uma mesma vida. Pois, foi com imensa alegria que recebi um exemplar do livro “O não dito foi escrito” de autoria do primeiro reitor da URI, Cleo Joaquim Ortigara, hoje residindo em Balneário Camboriú onde saboreia sua merecida aposentadoria.

Trata-se de uma obra de crônicas com textos objetivos (mas como lago de águas paradas –profundo), apanhados de observações do dia a dia. Podem partir de fatos, de leituras, de observações durante caminhadas à beira mar, de uma encomenda recebida, de conversas aparentemente sem grande importância, de lembranças, de decisões políticas, ou até mesmo do valor de um Bitter Águia.  Muitas crônicas têm como base a história do mundo, onde as escrituras abastecem como fonte inesgotável, apanhados, transformados em textos trazidos para comparativos com o nosso tempo, mas sempre fechando com uma mensagem que nos leva à reflexão. A propósito, a crônica não tem outro sentido senão o de externar aquilo que o cronista apanha e transforma numa ideia, num pensamento, numa opinião pessoal que pode, e deve levar o leitor a pensar, refletir, concordando ou discordando, porém, sempre, assim que chegar ao ponto final, levantar a cabeça, deitar sobre o colo o lido; e levantar o olhar para os horizontes – da terra e da consciência. E isto o professor, reitor e agora apreciado cronista com obra já na praça, tem conseguido alcançar com maestria. É, considerando o que perdemos por conta da pandemia, uma criação, um presente que “o professor Cleo” nos oportuniza. E para quem escreve, ele sabe, um bálsamo à sua própria alma.

2

Não por nada que uma repórter do SBT catarinense o procurou na cancha de bochas à beira mar para uma entrevista. Lá, Cleo coordena um grupo de quase 100 idosos, a passar o tempo jogando bochas e outros passa-tempos de mesa. Não por nada ainda, o próprio Cleo, revelando agora aos catarinenses ou aposentados de outras querências do país que foram viver seus últimos tempos à beira mar, interessa-se e labora pela situação de vida dos próprios idosos, acompanha em visitas os adoentados e, se necessário, até une-se em ajuda às famílias quando da despedida final de alguém daquele grupo.

Como não poderia deixar de ser, também dali saem “ganchos” que rendem crônicas, quando não, suas flores e legumes que cultiva na bela varanda do prédio onde mora. Quem conhece o reitor Cleo, sabe que isso é coisa dele mesmo e nem viveria este tempo sem seus compromissos, nem que seja com um pé de tomate, uma roseira ou uma “árvore de apartamento” que dá pimentões de verdes a vermelhos.

3

Mas nada supera a autobiografia deitada no mesmo livro pelo cronista. A certa altura se lê: ... Lembro do dia da mudança para a casa nova em Osvaldo Cruz, distrito de Frederico Westphalen. Uma casa toda com tábuas de pinho e a satisfação no rosto do pai e da mãe (Bortolo e Vitória)... Se lhes conto tudo que havia nesta nova morada... Frutas de tudo quanto é espécie e em quantidade. Chiqueirão de porcos... Horta sortida e caprichada... Galinhas e angolistas, jardim florido de variadas cores... Água de fonte entijolada, porão entulhado de varas de salame, tábuas de queijo, latas de banha e mel. Tranças de cebola e alho, sacos de amendoim, tulhas de farinhas, sacos de feijão de várias cores. Acompanhei a plantação do parreiral quando guri para depois irem às pipas de vinho, latas de mascavo, travesseiros de pena. E as melancias e melões? De fora só vinha sal e tecido para calças, camisas, vestidos e lençóis, tudo na ‘Singer’ pela mãe”.

E segue: “luz de lampião, banho na sanga, patente lá fora, colchões de palha de milho, micuins aos borbotões, porcos a tratar, vacas a ordenhar, cacarejadoras a botar ovo às escondidas, frutas às pencas, caixas de abelhas... Em tempo de pinhão, serelepe, lá ia eu pendurado com uma vara comprida cutucando as pinhas... Pitangas, ingás e ariticuns. Uma bola de pano em campinho de potreiro e as solas dos pés infestadas de rosetas...”. Me lembra as beiradas das quatro linhas da Baixada Rubra, hoje Parque do CER Atlântico, onde na minha infância também tive meus dias de pés crispados de rosetas.

4

Seguindo a cronologia, é sem dúvida uma narrativa reconstruída pelo autor quase como se fosse uma fotografia daqueles tempos, por certo, felizes para o então ainda criança e adolescente Cleo – um dos treze de Bortolo e Vitória. Tudo se precipitaria com o passar do tempo para sua profissão de professor (onde conhece sua futura esposa) e assumir cargos de gestão na área da educação. Antes, com sua malinha de madeira, andaria por várias cidades tidas centros educacionais como Santa Maria, Ijuí e até pelo Seminário de Fátima de Erechim, onde fez parada na época da construção do Colosso da Lagoa. Em Santa Maria conheceu o internato. Aos domingos, de batina, os candidatos a padre eram os “urubus” na boca de estudantes da universidade, relata. Queria ser padre, mas o Pai Celestial o guardaria para missões ainda maiores.

Sem temer desafios e até sentindo-se quase que na obrigação de sempre ter algo inovador para experienciar e ver no que dava – Cleo Joaquim Ortigara representaria Frederico Westphalen no “Grupo Tarefa” - agulha e fio que costuraram por anos aquilo que daria origem à Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI). Mara Regina Rösler representaria Santo Ângelo e Glênio Renal Cabral foi o indicado por Erechim para o imenso e desafiador trabalho de tentar colocar estas cidades (depois vieram Santiago, São Luiz Gonzaga e Cerro Largo) tudo sob um único guarda-chuva educacional de ensino superior. E o modelo também seria inovador. Não haveria dono e, ao mesmo tempo, de todos seria. Optaram por um modelo que se espalhava – o comunitário. Passou a trocar Osvaldo Cruz e Taquaraçu por Porto Alegre, São Paulo, Brasília, a contribuir na reestruturação da Unicastelo, então sofrível acadêmica e financeiramente. Aquele adolescente de FW, e confins, também estaria, mais adiante na vida, na capacitação de avaliadores do MEC. Com a esposa Juracy (dona Jura), e malas agora não mais de madeira, conheceria a América Latina, Portugal, França, Áustria, Suíça, Alemanha, Polônia, Rússia, China, Tailândia, Macau, Hong Kong... O casal desenvolvera em casa, aos domingos, sessões de música. Só clássicos. Dos eruditos à sertaneja, da bossa nova à Jovem Guarda, afora os encontros cativos de família sempre com a presença aplaudida da inconfundível maionese da dona Jura. Pois este é grande segredo deste nó de pinho dos “Ortigara”, poder-se-ia admitir, em se alongando, a partir da família de Cleo e dona Jura com seus irmãos, filhos e demais descendentes. E finaliza o autor sua autobiografia: “Durante toda esta caminhada, não esqueci meu papel como primogênito... O que significa mesmo é o sentimento que nutrimos um pelo outro, estendido sempre a todos os filhos, netos, sobrinhos, cunhados, enfim, aos mais de oitenta da árvore do seu Bortolo e da Dona Vitória...”.

5

Como foi gratificante ter desfrutado da oportunidade de poder trabalhar e conviver com alguém, que nem mesmo a aposentadoria foi capaz de lhe retirar ou sequer tolher, a vontade de continuar produzindo e, por que não, sempre inovando – ou a crônica diária é uma obra acabada? Longe disso – é algo sempre em construção, diferente de ontem e amanhã, que em tempos de pandemia ganhou asas e serviu de “desculpas” para o agora autor de livro, resolver fazer das suas, ou seja – não se entregar ao vídeo ou sossegar. Quem não leu – devia. Se até a televisão (pela editoria de cultura interessou-se pela obra), por que não também nós, que conhecemos uma parte da vida deste homem que Erechim devia ter aproveitado melhor. Muito melhor.

Mas faltou-nos este discernimento ou sobrou-nos um certo sentimento, que já sobreviveu por estas bandas, agarrado às nossas teias mais escondidas, e que só agora começa a se desfazer daquele certo ar de preconceito para com quem vinha de fora. E até creio – na maioria dos casos, não por mal, mas por vício (equivocado) de preservação do que é genuinamente daqui.

6

Já passou da hora de que Campo Pequeno não é uma espécie de umbigo do mundo e que nós, por nosso berço ou sobrenome, somos imunes a crises. Se por anos convivemos com a catequese de sermos a terra onde corria leite e mel, nos penitenciemos. O perdão existe para isso. É hora, são tempos de um outro tipo de olhar, a dos simples e sábios, onde todos seremos vítimas ou ungidos como salvos. Se de todos os desastres que vieram com a pandemia do Novo Covid-19 não aprendermos isto, que somos todos, rigorosamente todos, iguais – porquanto passageiros; que Deus tenha compaixão e feche um olho para com Campo Pequeno, não nos castigando com outro mal, até que nos dobremos junto com o mundo inteiro.

7


Italianos, alemães, poloneses, judeus e afrodescendentes sempre estiveram aqui ou – também eles – vieram de outras plagas!? Aproveitemos, pois, a determinação e as inteligências que vem se somar a nós. Olhemos o que Santa Catarina faz com um chegado lá – como é o caso deste líder - Cleo Joaquim Ortigara. Não sei se esta última observação neste último parágrafo, para alguns, em público - refutável; mas em conversas reservadas e no íntimo de muitos, é exatamente assim, pois, como disse - não sei se pegará mal ou auxiliará para um “mea culpa”. Eu venho fazendo a minha há anos. De outra sorte; peço licença ao autor para fechar este texto aproveitando-me do título da sua obra, porquanto se ‘isto aqui’ - “ainda não foi dito – foi escrito”. Aqui e agora! Com o devido respeito a todos os livres das amarras da falta de compreensão, tolerância e inteligência. O livro do “professor” Cleo encontra-se em livrarias de Balneário Camboriú.