domingo, 20 de dezembro de 2020

Quando eu fugia das vacinas no Mantovani

 

Foto /Beto Hachamnn/Divulgação
1

Eu contando assim não tem graça.

Sim porque ninguém acredita.

E nem tenho a pretensão de convencer.

Agora – quem quiser continuar lendo, que leia.

Pela singela razão que é a mais pura verdade.

2

Houve um tempo,

onde as noticias chegavam aqui dois

– três dias depois.

Às vezes uma semana depois.

O que aqui acontecia aqui - seguia por carta.

Isso mesmo – por carta.

Para o Correio do Povo por exemplo.

Eu vivi isso. Não me contaram.

As fotos sobre notícias iam por carta.

O Delcy Maloz mandava.

3

Também não é menos verdade,

que as noticias da 2ª Guerra,

por exemlo,

chegam à Voz da Serra por pela AFP e UPI,

via telex.

Só que o jornal saía um ou dois dias depois.

4

Acho que estou nos anos 1960 ou 1970 agora.

Tu acredita que as pessoas passeavam na

Maurício Cardoso – assim, de mãos dadas!

As mulheres se enganchavam umas nas outras,

e os homens ficava um ao lado do outro

encostados sob as marquises.

Era uma fumanceira só: todo mundo

fumando e... tossindo.

E que nada – puxavam o lenço do bolso,

às vezes já molhado – credo!

E passavam no nariz e vá de novo

no bolso detrás da calça.

Tu saía da matiné e se fosse brincar

de filme de mocinho,

a primeira coisa que o bandido tinha que fazer,

pra ser identificado,

era....

botar uma máscara.

E, se possível com cabelo meio comprido,

desalinhado e, claro, a barba por fazer.

Assim, assim – com cara de meio sujo.

Não havia gente boa de máscara.

Mascarado – era, atenção! – cuidado.

5

No Café Grazziottin não cabia mais ninguém.

Todo mundo junto, como se diria um dia

no  futuro - aglomerado.

Naquele tempo não era esse o termo.

Era juntos, unidos, conversando...

E vá cigarro e cerveja.

E vá tosse,

nariz escorrendo,

gente espirrando e o garçon,

em cima,

quase babando

– “vai mais uma!?”.

Contava o dinheiro passando

nota por nota

depois de molhar o dedo na língua,

lógico.

6

E o berro D’Água então!

Mais lotado que o Santuário de Fátima

em dia de romaria.

E lá também: uma fumaceira só.

Era de vela, de cigarro, da churrasqueira...

Assim também no Caixeiral –

“um em cima do outro” querendo entrar.

Quando um tossia ou espirrava

logo ajudavam: “cuidado que pode

virar numa  gripe”.

E o mesmo vale para o Atlântico,

Comércio,

para o Esperança

e Círculo Operário.

Gente, gente, gente e mais gente

bebendo e se abraçando.

As mulheres então

– era aquela troca de afagos e beijos.

Os homens – um mais suado que o outro,

só faltavam também se beijar -,

principalmente depois da meia noite,

e de uma meia dúzia de cervejas

ou dois litros de uísque.

Que tempos!

7

Nos carnavais,

ao tempo dos QGs,

era churrasco, fandango, trago e mulher.

O único álcool que rolava era da bebida.

Nos velhos tempos quando a fantasia

ainda era “chic” –

aparecer de máscara,

tapar o rosto,

era quase uma ofensa.

Como saberiam quem era aquela ou aquele!?

A não ser a mulher com uma...

Musseline a encobrir-lhe o rosto,

enfeitando-a de leveza e elegância

- assim, com um toque de sedução.

8

Aos sábados e domingos

as igrejas se viam pequenas pra tanta gente.

E “bom dia pra cá”,

“até domingo que vem” pra lá,

e tudo, claro, depois de um caloroso abraço.

E ai dos filhos e netos se não aparecessem

com a prole toda para o almoço.

Quanto mais ranhenta a gurizada

– mais o vô parecia que gostava:  ele

Se divertida. É saúde fio, saúde!

Vem aqui. Vamo passá um pano... guurrggrrrrr, cof, cof, sccchlépppp!

“Oh Véio, não me pega o pano da loça

Pra enxugá o nariz do Júnio!”,

ajuntava a avó enquanto descascava

as batatas para a maionese e,

de vez em quando,

escapando uma tossida sobre o que iria

para a mesa ao meio dia.

9

Eu sei que contando assim,

parece mentira,

mas já houve um tempo onde os jogos de

futebol tinham público.

Verdade!

Não acredita?

O pessoal ia, se juntava

– não, juntava é muito velho,

se aglomerava,

como dir-se-ia décadas depois,

perto da copa

e nos banheiros como um enxame de abelhas.

E era xixi fora do lugar,

mãos mal lavadas ou nem isso,

e logo o antebraço ou o dorso da mão,

enxugando os beiços.

Copos de plástico derramando cerveja

pelas beiradas,

e aquela babação toda: “tu viu o que

o nosso tanque aprontou?

Só não entrou com bola e tudo

porque não quis”, ahahahahah...

E no 2º tempo vem mais

– ajuntava um terceiro babando

e se cuspindo todo no meio do bolinho

de torcedores.

Sim, torcedores de carne e osso e...

saliva.

E bota saliva naquilo.

Que nada – todos estavam torcendo pro

mesmo lado.

Era uma família daquelas unidas: no suor,

nos abraços, nos sem camisa,

no xixi no chão, no pastel dividido,

no amendoim, na pipoca,

no copo de plástico com cerveja

compartilhado, no pito, na tosse,

no acesso de tosse de quase afogar,

uuuurrrrrggggrrrrrrfffffggggg.... na saliva, na babação, no empréstimo

de lenço...

Que anos. Que anos!

10

Na segunda-feira desde cedo era agitação.

Eu já saindo cedo pro serviço e as crianças

pro colégio.

Ninguém com papel, ninguém com lencinho

e, o quê? – tá querendo levar álcool?

- mas tu não larga mesmo, né!

11

Álcool gel? – mas, mas o que é isso?

O quê?

Voltar do mercado e passar álcool nas

sacolinhas?

Na sola do sapatênis?

Passar álcool nas mãos ou dar um banho

com sabão nas mãos cada vez que vinha de fora?

Tá ficando louco ou só caduco mesmo.

Olha, contando a gente não acredita mesmo!

12

Todo mundo saía de casa.

As crianças iam brincar,

os adultos trabalhar e tudo misturado

– enquanto os mais idosos tinham ordem

expressa dos filhos: “não me não fica em casa.

Vai na vizinha ou num bar jogar cartas

– mas saia da frente da TV.

Passa a tarde fora de casa!

Quer acabar entravado numa cama!?

Vamos – se mexer.

E cuidado – não dá bola pra ninguém.

Se aparecer alguém com a cara tapada

– dobra a esquina, chama a Brigada ou corre

num vizinho.

13

Numa Frinape houve um show

com uma banda “Cover” dos Beatles.

Parece que eram argentinos.

Tu acredita que não tinha nem,

nem duas mil pessoas?

Estavam meio apertadas – mas só duas mil?

Um fiasco! – E olha, que banda.

Parecia os Beatles de verdade!

Só Campo Pequeno mesmo pra não juntar,

com boa vontade, vá lá - de duas

a três mil pessoas. Eu juro,

como os Beatles!

14

Nas romarias de Fátima teve ano

que não deu 20 mil pessoas.

Uma vergonha!

Teve desfile de 7 de setembro

até com menos 10 a 15 mil na avenida.

Outra vergonha.

Quando havia, ih, nem me lembro mais,

mas quando havia Acampamento Farroupilha,

teve noites com menos de 3 mil pessoas.

Imagina!

Bom mesmo era quando o “acampamento”

saía no seminário,

aí dava mais de 10 mil pra fora.

Todo mundo meio na cachaça,

lambuzado de churrasco,

e claro,

passando galpão por galpão

– mesmo com febre, espirro

e “nariz escorrendo” -,

mas tinha que fazer porque se não

ia passar vergonha.

E o diabo do respeito!? -

aonde fica. Então que se honrasse

a recepção e se visitasse um por um,

passando todo mundo – meio, uuurggggffff, schlép, schéééppp, atchiiimmmmm!

Eia – tosse desgraçada.

Em casa depois,

tinha gaúcho que ia pra cama

de bombacha e tudo.

Barbaridade: acho que se tomava

chimarrão em mais de 30 cuias!

 – e um melhor que o outro.

15

É, meu amigo.

Contando assim a gente nem acredita

que um dia tivemos tempos dessa rotina.

Naquele tempo

– comemorar um aniversário –

era coisa para estar junto, abraçado.

Nada de mensagenzinha e coisa e tal

– boa parte delas até meio duvidosas

quanto à veracidade dos desejos desejados,

mas naqueles tempos era churrasco,

salgadinho, torta, refri, cerveja

– e vá abraço e abraço.

O “parabéns a você” era cantado

com tanta vontade que o ar saído dos pulmões,

e a saliva que voava,

fazia o fogo da velinha sobre o bolo - dançar.

Se o nariz de uma ou outra criança

começasse a escorrer

– se apanhava um guardanapo e limpava

e... seguia a festa.

E tudo ali em cima da mesa: palito,

guardanapo, resto de salgado, torta pela

metade.

Será que esse palito não foi usado?

Azar... se era de alguém.

Quem se pegava sem colherinha,

Apanhava, assim... a primeira que aparecia.

Alguém já usou?

Mas – que pergunta mais

sem vergonha é essa?

16

Quando um familiar, parente

Ou só amigo ficava doente

e internava no hospital,

a gente ia visitá-lo.

Era o mínimo.

Importante era mostrar consideração.

Entrava e saía

– e ainda levava alguma coisa pra

mudar um pouco o cardápio do doente.

Ninguém dizia nada.

Ninguém fiscalizava nada.

Ninguém de incomodava

e até agradeciam pelas bananas e maçãs

que levávamos ao hospitalizado.

Na hora da visita então,

Havia quarto com oito ou 10 visitantes.

Todo mundo ao redor da cama do acamado.

Era uma felicidade geral,

ainda mais quando o doente dana sinais de

melhora.

Que alegria!

Ouvi dizer que viria um tempo

em que se você tiver alguma coisa,

e achar que precisará ir ver logo um socorro,

que nada,

seria rechaçado: “não apareça no hospital

porque é lá que mora o perigo”.

Viria uma tal de internet

- nem sei que bicho é esse ou isso,

mas que a gente poderia se falar...

e uns dizendo que seria pra ir correndo

pro Pronto Socorro

e outros que seria pra

correndo.... fugir.

17

Tu acredita que a gente conhecia

quem vinha vindo lá a uns 10 ou 20 metros.

Ou até a 50!

No mercado,

Recém inaugurado;

a gente fazia rodinha

pra falar de futebol, de política, do prefeito,

de mulher ou dos preços

– e quando um tossia sobre as frutas,

queijos e salames -,

a observação era para se que tomasse

uma cangibrina com mel e limão

ou então, em último caso,

um óleo de rícino

porque podia virar numa pneumonia.

Que tempo. Que tempo Santo Deus!

18

“Porto Alegre é longe...

Tô pegando o ônibus pra te encontrar”...

mas eu acendia meu cigarrinho e ia.

Em Vila Assis - fumava mais um três.

Uma balinha de menta pra disfarçar o cheiro.

E lá se ia o ônibus da Unesul

descendo a serra, numa fumaceira

entremeada com acessos de tosse

– e ninguém, ninguém tinha medo de nada.

Chegávamos em Porto Alegre,

com os olhos vermelhos de sono e fumaça,

mas que nada. Uuuggghrrrffffff, cof, cof,

schléééépppp.

Que maravilha

– aquela poluição inundando nossos narizes

e aquele mundaréu de gente

todo mundo dando a cara à tapa,

sabendo-se de longe quem era.

19

Olha – acredite se quiser,

mas foi um tempo que eu acho,

que não volta mais. Nunca mais.

A gente se benzia na igreja com água benta

– mas já se falava que viria um tempo

onde o benzimento seria com álcool,

um tal de álcool gel.

Mas - seria bento mesmo!?

20

Já houve um tempo onde quase

não tinha televisão.

Então – os cinemas eram o ponto

de encontro e lazer.

E olha – pra tu pegar uma poltrona vazia

no ideal ou no Luz -,

tinha que ir mais cedo.

Atrasado - tinha que ir pedindo licença

pra quem já estava sentado

e ir passando, passando,

licença, licença...

meio que se babando,

se cutucando, roçando

e quase caindo por cima de quem

já estava sentado,

até chegar na poltrona que ainda

estava dando sopa.

Se alguém espirrava,

ninguém pedia para o cara sair.

Só se ouvia um chiiiuuu.

Quando a sessão terminava,

todo mundo se acotovelava pra sair

um antes que o outro.

Depois se juntavam Três Xirús

ou no Bar Artur

e vá torrada, cerveja e general.

Que tempos aqueles!

21

Mas falar assim como falo

daqueles tempos,

é quase como alguém contar

sobre como viviam na Grécia

ou na Roma antiga.

Claro que era muito diferente.

Viver – viviam, mas há 50, 30 ou dez anos...

Assim como um dia,

lá pelo ano 2020

ou sabe-se lá quando...

não será como foi naqueles “séculos”

que ficaram para trás,

“séculos encurtados” que não fazem

Nem, nem...nem dez meses.

22

Olha, sei que posso estar exagerando,

mas contando assim ninguém acredita.

Imagina só: já houve um tempo

onde as crianças e adolescentes

se reuniam todos num mesmo lugar.

E pra quê? Pra estudar!

Isso mesmo.

Eram prédios, sim prédios,

de concreto com dezenas de salas de aulas.

Iam todos no mesmo dia,

na mesma hora e, até faziam fila

para entrar.

Crianças e adolescentes.

Um atrás do outro e, até

depois, mais tarde acabaram com as filas

porque era “careta”... careta – mas

o que isso? Esquece. Esquece.

E sem fila entravam todos juntos.

Havia até uma sineta ou campainha

que anunciava a hora de entrar e sair.

Quem chegava atrasado, e quase sempre

meio sozinho, esse...

eles nem deixavam entrar.

“Tá pensando o quê? – por que

não veio junto com todos os outros?

Cada sala,

pensa só,

tinha no mínimo, no mínimo uns trinta.

Na sala dos professores

- professores de todas as idades e de todas

As tosses, resfriados e... quetais.

Uns fumavam, até que chegou um dia que

baixaram um lei que mandava fumar

lá fora. “Estão pensando o quê!”.

Atchhimmm.

E na hora do recreio então?

Largavam todos juntos

– e uns iam pro refeitório

e o resto correndo e suando pelo

pátio da escola.

A gente, contando assim hoje em dia,

ninguém acredita – mas creia,

é a mais pura verdade.

23

Quando me lembro das romarias de

Caravaggio, da Madianeira, de Fátima...

o pessoal lotava trem e ônibus pra ir

pra Marcelino na romaria da Salete.

Almoçavam nesses eventos

- assim, esparramados pelos gramados,

todo mundo junto e,

quanto mais junto melhor até.

E de tarde nos jogos das argolas,

nas bochas, no sinquilio, nas roletas e

na venda de rifas – aquele mundaréu de gente.

E o que dizer

- quando da benção da saúde,

isso mesmo,

da saúde,

e aí mesmo é que era a hora

do ajuntamento geral.

O pessoal que vinha do interior,

só voltava pra casa depois da benção,

veja só,

da benção da saúde – com todo mundo

grudado, suado, ajuntado,

se acotovelando mas – com saúde.

Que tempos. Que tempos!

Condomínio Erechim/1958
Foto/Reprodução A Voz da Serra


24

Eram tempos, veja você,

onde quando se falava em... China,

meu Pai – nem quero pensar...

era, era, era....

Que mapa que nada.

Que comunista que nada.

Era pegar o táxi do Zanon

e se mandar lá pros lados antigos,

muito antigos –

do “campo da aviação”.

Ou, se mais antigos ainda,

lá perto de onde sairia o prédio da Brigada.

O termo seria um dia,

ou já estava,

incorporado ao vocabulário gauchesco.

E era – aquela confraternização generalizada.

Mas já naquele tempo com álcool.

Pelo menos os 5% da ceva.

Dois, três dias depois

- havia farmácia onde

a benzetacil esgotava.

Quanto Paulinho da Viola, Martinho da Vila

Demônios da Garoa, Adoniran Barbosa,

Agepê... no Bar do Alcemo nas madrugadas

que o tempo engoliu,

deixando no máximo um ou outro

resfriado.

Que tempos.

Que tempos!

25

Não quero nem entrar nas discussões

sobre vacina.

Só me lembro que naqueles “séculos”,

naqueles tempos dos anos

1960/70 e...

até quase os tempo de ontem;

em dia de vacina no Mantovani,

sempre me dava uma dor de barriga

insuportável só pra não ir.

Fincar uma agulha no braço?

– que nada.

Sim, porque nos meus tempos emburrecidos,

Eu... não tinha nada!

Na época? - eu fora.

Mas, no final das tentativas,

sempre “fracassava”.

O chinelo cantava e lá estava eu,

com o braço fora da manga da camisa branca,

sempre para ser salvo de um mal futuro,

que a “burrice” não me deixava ver nem

aceitar.

Desconfio que se tivesse

entrado na política naqueles tempos

- e considerando minhas credenciais

de conhecimento e aceitação sobre ciência,

corria sério risco de até virar presidente de uma republiqueta.  

26

Eita que saudade do centro.

Sim – do centro da cidade.

Nos sábados à noite as praças estavam cheias.

Crianças correndo, mães enganchadas nas

vizinhas, e homens fumando um atrás do

outro.

Nos cafés jogo de bilhar.

nos clubes como no Atlântico,

bolão e bocha até a madrugada.

Mondongo com vinho às 7 da manhã,

era prato de malandro.

Quase ninguém tinha carro.

Carro mesmo, “à baloque”,

só os de praça.

Aos domingos as missas das 6 e das 8 ferviam

De fiéis.

Todo mundo grudado.

Nas matinés – quase sempre faltava lugar.

Todo mundo grudado.

E à noite, aos domingos,

aquele “ajuntamento” – não se conhecia,

termos que virão (ou viriam)

só lá em 2020 segundo os astros,

tais como aglomeração.

27

Em tempos de eleição então...

Se entrava em todas as casas.

Erguia-se criançinhas.

Beijava-se mulheres sem dente, o nono, a nona, a vizinha, os sobrinhos, com compadres

e, dividia-se chimarrão feito em xícara branca

de alça quebra.

Chupava-se picolé feito na casa do eleitor.

E era aquele uuughhhhrrrrrrrrr – depois de um

baforada do nono no seu palheira. Mas que

nada. Esse é um voto garantido, né nono.

Os pés ardiam de tanto andar por

ruas, praças e potreiros.

Sempre rodeado de uma infinidade de

cabos eleitorais.

Era sangue, suor e lágrimas pelo voto.

Eram churrascadas sem fim.

Noitadas pós-comícios igualmente a perder

de vista.

Quem acusasse alguma “doença” até era

tratado como “traíra” n’alguns casos.

Ninguém, mas ninguém queria saber da

falta de saúde do outro.

O importante era todo mundo estar unido.

Quando o Brizola discursou num dia de semana

na esquina democrática – mais de 15 mil

tomaram a Maurício, a Nelson Ehlers e a Itália.

E era aquela felicidade

- mesmo entre cof, cof e egrrrrrfffffff,

cooofff, bleffff, atchim, atchim, eaaaagrrrrffffff.

Ninguém estava nem aí.

Que tempos – minha gente. Que tempos!

28

Ir a um médico era indicativo de,

ai que perigo – só pode ser, ai que perigo;

só pode ser a “penicite” (apendicite),

que sempre parecia ameaçar querer estourar,

quando a dor na barriga enfeiava.

Eu que o diga!

Jogando bola num domingo

perdido no tempo,

lá em Sede Dourado,

de repente me deu uma dor no lado direito

da barriga.

Rolava de dor.

Logo alguém gritou: “estourou a penicite!”.

Tiverem que me trazer direto pro Caridade.

Fizeram um raio X e me botaram num quarto.

O médico veio na segunda de manhã e

setenciou: ele agüenta até amanhã.

Amanhã cedo vamos operar.

Só me lembro que meu pai ou minha mãe

comentaram: “Ih – vai entrá pra faca. É penicite!”

Eu sabia. Sempre era a maldita!

Quando me acordei na terça à tarde

parece que tinha “morrido” por um tempo.

No segundo quarto da direita para a esquerda,

na parte frontal do velho HC

com “cara” só pra Comandante Kraemer

lá estava eu – recém operado.

Na hora da visita o quarto foi se enchendo de

parentes, vizinhos e amigos.

Uns meio resfriados,

outros tendo acessos de tosse de quando em

vez – e a cada piada que contavam,

salivavam pros quatro cantos do quarto.

E eu, ali, deitado,

com a barriga meio aberta, meio fechada

costurada

- e uma mesinha cheia de bananas, maçãs,

bolachas, bolo...

As enfermeiras entravam e saíam sorridentes.

“Vai ficar bom, logo, logo”.

Meu maior lamento viria dois meses depois:

ainda com um dos pontos querendo abrir;

no grande corte que sofri na barriga

pra retirada do apêndice

- não pude jogar na preliminar de Ypiranga

e Inter na Montanha.

Como eu lamentei aquilo.

Jamais me esqueço.

O Inter podia ter me levado.

29

Quando o futuro finalmente chegou,

e a humanidade evoluiu como jamais se

sonhara

- acordo aqui,

trancado, rodeado de bisnagas de álcool,

proibido de ver o outro de perto.

Apartados de tudo e de todos.

Tudo pela preservação da vida.

Estou confuso.

Não sei mais se saúdo

Que tempos, que tempos! - eram aqueles;

ou se ergo a voz e grito

hoje, já no futuro:

que vida,

que vida... meu Deus!


Obs: esta tentativa de crônica, quilométrica, contrapondo hábitos temporais, não diminui em nada a dor, o lamento e a solidariedade desta coluna para com as vítimas e familiares de vítimas deste novo “mal do século”, o Covid – 19 que tanta tristeza já espalhou pelo mundo afora. E observe-se, ninguém está livre de ainda ser contaminado. Que a vacina seja maior que as pendengas ideológicas e políticas e chegue para todos. Que a ciência prevaleça. É que a gente já viveu tempos tão inesquecíveis – que quase nunca nos lembramos de agradecer. Por isso - agradeço aqui aos velhos tempos. E lembrar, que eu tentava fugir das vacinas do colégio no Mantovani. Santa ignorância. Talvez por ingênua e pura – fosse realmente santa.