domingo, 23 de junho de 2024

Um mestre das relações humanas

Professor Nédio Piran e sua neta Luma. Foto: Arquivo de família

confessei várias vezes: quando entrei na primeira turma de Administração no Centro de Ensino Superior de Erechim (Cese/1972), não tinha a menor noção de onde estava me metendo. Começa que nem queria fazer vestibular. Fui porque os colegas frentistas do Posto Atlantic insistiram e até me levaram para a inscrição. Não sabia nada de contabilidade, de administração, de matemática. Fiz – passei. E logo vi que era um peixe fora d’água num mar de colegas já feitos na vida – gerentes, proprietários de empresas, administradores, funcionários do BB e por aí vai. Até que um dia, Jayme Lago, quase ordenou a Gílson Edy Carraro (ambos colegas daquela turma), que me levasse para A Voz da Serra. “Esse guri não é da área administrativa. Escreve bem – leva pro jornal”, disse. Na mesma semana estava no periódico.

Pois mesmo assim não deixou de ser uma experiência. Conheci pessoas novas com grande influência na cidade e professores universitários. Entre eles, um magrinho, mas extremamente conhecedor do que ministrava. Se não me engano era sobre Estudos de Problemas Brasileiros - algo a ver com geografia, economia, sociedade – geopolítica. Aquela era uma disciplina que eu gostava.

Depois de um ano e meio no Cese em 1972 eu desisti e me fui pelos caminhos do jornalismo em Porto Alegre onde fiz faculdade e lá trabalhei na empresa onde todos da área sonhavam: Companhia Jornalística Caldas Júnior, a grande CJCJ, proprietária do Correio do Povo (standart), Folha da Manhã, Folha da Tarde, Rádio Guaíba e depois – TV Guaíba. Foi uma senhora “faculdade na prática”. Antes passara pela redação da Rádio Difusora e Assembleia Legislativa.

Um dia, lá por 1981, voltei para Erechim.

E aqui, sempre na área jornalística cobrindo todas os editoriais, logo despertei meu gosto pela política.

E foi nesse novo normal de minha vida profissional que reencontrei aquele professor magrinho e de grandes conhecimentos na sua disciplina. Ele liderava então um pequeno grupo que tinha uma visão completamente diferente da que vigorava em Erechim na esfera política, na esfera da tomada de decisões sobre os rumos da cidade, na esfera da administração pública em especial – onde, então, uma boa parte dos seus ex-alunos e meus colegas lá de 1972 já “davam as cartas”.

Nédio Piran devia ter uns 33 a 34 anos é era quem liderava a organização e fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) em Erechim. Não preciso nem dizer que eram vistos como estranhos no ninho de Campo Pequeno e até certo ponto, ignorados, pelos partidos políticos já estruturados há muito mais tempo como Arena/PDS, MDB/PMDB e PDT.

Observe-se que no combo político da fundação do PT em Erechim, o Nédio seguia sim a orientação petista vinda de São Paulo, mas por conhecer muito bem a realidade rural e social – sob sua liderança ao lado de outros nomes -, estavam também as preocupações com o homem da roça e todas suas circunstâncias, a criação e fundação de sindicatos de trabalhadores urbanos. Nesse período, cidade respirava novos ares com a implantação de um modelo que priorizava um olhar industrial.  

Nas eleições de 1982 o PT local resolveu que devia ter um candidato. E o nome lançado foi o de Nédio Piran que aceitou ser imolado eleitoralmente, mas que por outro lado, teve o mérito de estourar os grilhões político/eleitorais para seu partido. Conseguiu apenas 624 votos o que representava 2.09% dos votos válidos. O total de votantes foi de 27.990.

Não obstante, já também atuando cada vez mais presencialmente e gozando de respeito entre os seus politicamente afins, teve atuação na formação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Erechim, atuou nas origens da Comissão Regional de Atingidos por Barragens (Crab), hoje MAB – entidade que desde seus primórdios contou sempre com Luiz Dalla Costa entre outros. Fomentou a fundação de inúmeros sindicatos das mais diferentes áreas do trabalho – sem jamais tirar os olhos do homem da roça. Participou também das ações do 15º Núcleo do Cpers ao lado da grande Helena Bonorino. 

Ademais equilibrava-se entre mestrado e doutorado em São Paulo e dar aulas no embrião, 20 anos antes; da futura URI e depois na URI onde permaneceu até 2017. Entrementes, produzia obras que lhe exigiam muita pesquisa e destreza, inserindo a realidade política/econômica e social (rural e citadina) do Alto Uruguai no estado, como elemento essencial à mais ampla e melhor compreensão do complexo contexto da geopolítica, digamos, doméstico/regional.

Perdi as contas de quantas vezes fui no Diretório do PT. Como sempre me considerei alguém comprometido com os princípios da minha profissão, não fazia distinção entre os grandes e os pequenos e, isto, incluía partidos políticos. A sede do PT ficava numa casa de alvenaria, muito simples, na esquina da Argentina (ou seria Portugal) com a Aratiba. O que mais se via lá eram pôsteres colados nas paredes, de um cara barbudo, discursando em frente a grandes montadoras de veículos no ABC paulista. Seu nome - Lula. E o recém novo partido criado também em Erechim, reunia pessoas com ideias que eram a cara do líder barbudo.

Em 1988 o município contou 33.503 votos válidos para prefeito. Ele outra vez representou o PT e recebeu 4.483 votos, o que representava algo em torno de 13,5% dos votos válidos. Dentro da história do partido – um crescimento fantástico. Já estava a 1.760 votos do PDT.

Quatro anos depois, em 1992, com outro nome o PT teve uma recaída. Conseguiu 3.855 votos o que representou 10,26% dos votos válidos. Porém em 1996, conhecendo um novo normal, o PT decidiu coligar-se. Apareceu com Clodomiro Fioravante na condição de vice de Luiz Francisco Schmidt (PDT) e ajudou a somar os 15.674 votos que elegeram Schmidt prefeito. Ou seja, depois de sua primeira eleição e seus 624 votos; o PT do professor amealhava 35,44% dos votos e chegava ao poder da cidade onde nascera 14 anos antes. Depois disso todo mundo conhece a história.

Aos poucos fui sentindo o recuo presencial do Nédio daquilo que viria a ser uma espécie de  neoPT. Olhando para o panorama nacional (incluindo estado), o próprio em entrevista à jornalista Cristiane Rhoden da TV Câmara, disse que no seu entender, analisando o contexto geral do PT no país, pode ter faltado um pouco de experiência e que o partido cresceu rápido demais. Certamente, como um homem comedido, talvez forjado pelas suas pesquisas que exigem paciência, Nédio dava a entender que a base política poderia ter sido mais ampla e firme. Quem sabe, nas entrelinhas, quisesse exprimir um sentimento que nunca se deve depender cem por cento de um único nome – por mais expressivo que seja. Como disse - isto é apenas uma dedução minha. . Mas nada o fez, jamais, mudar sua visão crítica sobre a realidade local, regional e nacional e, muito menos, cogitar outro partido.

Hoje, aposentado, o professor passa o tempo todo em sua residência. Problemas de saúde têm limitado suas aparições em público, mas encontra-se muito lúcido, como sempre foi. Tem o conforto dos filhos e da família como um todo, incluindo sua ex-esposa e companheira a também grande professora Neide Piran (ex-vereadora), de seu filho Fernando e nora Melany (neta Lis Helena) e da filha Júlia e genro Mateus (neta Luma) e da filha Ana. Conforme apurei ele passa seu tempo assistindo noticiários e futebol pela |TV. Seu rádio à pilha continua permitindo seguir seu time do coração – o Ypiranga. Nédio passa um fim de semana em cada filho (a) quando a família toda se reúne. Seu estado de saúde, geral, é considerado estável. E o principal: com alguma limitação física, é um homem lúcido. 

Sinto fala daquele professor magrinho e que tanto conhecimento transmitia à uma espécie de “nata” econômica e da consciência sobre a cidade. Não foram poucos os embates entre alunos e professor sobre a realidade política brasileira – mas nunca presenciei nenhuma falta de respeito de parte a parte. Nem em sala de aula, nem nos embates políticos. Com Nédio Piran, até onde sei as diferenças jamais pularam a cerca nos campos das ideias conflitantes. Nunca abriu mãos das suas convicções políticas e sociais e nunca o vi proferindo impropérios a quem pensava diferente. Sem dúvida – um democrata. Dizia e ouvia. Ouvia e contrapunha. Diálogo, era um termo que, além de exercê-lo, usava-o em suas intervenções. Quantas vezes ouvi a palavra "diálogo" saindo da boca do Nédio em conversas sobre assuntos distintos.  

Sinto falta ao passar pelos corredores da URI e me deparar com o professor, hoje, ex-fumante contumaz, nos períodos de folga e seu sempre fidalgo cumprimento. Com o combate crescente ao fumo, era visível que às vezes o Nédio até se afastava de seus interlocutores – mesmo trocando falas, conversando, dialogando,

Sinto falta dele nas cadeiras do Colosso da Lagoa com seu rádio Phillips (acredito) colado ao ouvido. Torcedor fiel do Ypiranga. Gostava de vê-lo, no intervalo das partidas, acender seu Carlton e caminhar até uma área lateral, sem torcedores, na cadeiras do estádio.

Sinto falta de seu sorriso introspectivo, aquele de sábio, quando ouvia uma manifestação de ignorância fora de contexto despencando de uma boca qualquer – como se dali brotasse um profundo conhecimento, quando na verdade beirava uma aberração para alguém com os conhecimentos do professor. 

Evidente que o ensino superior de Erechim tem em Nédio Piran um dos nomes de grande conhecimento.

Evidente que os movimentos sociais rurais e urbanos de Erechim, e do Alto Urugai, tem em Nédio Piran um dos nomes da prateleira mais visível.

Evidente que o PT de Erechim tem em Nédio Piran um farol e um testemunho de seu próprio nascimento na cidade.

E é evidente, para quem observa a política com isenção, que no mundo político erechinense, ele ocupa um lugar de destaque entre os seus mais importantes nomes em 100 anos – independentemente de ideologia e convicções político/partidárias.

Nas minhas andanças, com seus tempos e contratempos que a vida do jornalista de princípios encontra em sua vida, sinto-me à vontade para externar que sempre tive neste homem o reconhecimento que jornalista também é uma profissão como tantas outras. 

E assim, eventualmente mesmo diante de perguntas e escritos que não lhe eram os mais desejados em determinado momento, jamais deixou de me tratar com respeito e dignidade, porquanto calmo, bom ouvinte, tranquilo e de contra-pontos serenos e inteligentes. Dignos de alguém com visão periférica permitindo a fluidez da conversação mesmo com interlocutores com pontos de vista antagônicos. 

Sem nenhuma dúvida - no meu entender um mestre das relações humanas sob quaisquer circunstâncias. Que ele possa continuar servindo como uma fonte de sabedoria e uma luz para quem deseja não só ver - mas enxergar e compreender as complexidades contemporâneas. 

Ademais observo, quase esquecendo, uma outra faceta da vida de quem, sem reivindicar, discutir ou pedir para quem quer se seja - se fez líder por suas próprias competências. E dentro deste contexto, contrariando a maioria dos que nesta posição conheci na cidade, cultivou até mesmo no seu auge, uma certa timidez em aparecer, em posar para fotografias. Só ia aos holofotes - quando rigorosa necessidade. Seu conceito de liderança não depende da luz externa - mas da sua própria iluminação. 


Nédio Piran, professor, pesquisador, escritor e político - mestre das relações humanas - não é só um professor de excelência, um visionário quanto à ocupação de espaços políticos e sociais na cidade onde nasceu no meio rural. É mais que isso. No conjunto de seu obra, aos 77 anos, é um patrimônio vivo desta cidade.