* A Voz da Serra - 15/8/2020
1
Naquela noite de 30 de agosto de 2016, na Câmara de Vereadores (lotada),
quando tomamos posse na condição de membros da Academia Erechinense de Letras
(AEL), francamente, meu confrade, nem senti que tinha passado dos limites.
Falar em nome da Dra. Karina Denicol, do consagrado Gildinho dos Monarcas e, do
senhor – Dr. Paulo, com sua estatura profissional, literária e moral – foi para
mim, certa feita um guaipeca atropelado para a vida dali de perto da antiga
Legião (cerca de 200 casinhas pintadas a óleo cru, sem água e sem luz), das
cercanias da velha Baixada Rubra e de lá onde os circos e ciganos acampavam vez
por outra - e onde mais tarde se ergueria o Colégio Mantovani, (perdoe o
parágrafo irresponsável/longo), pois, naquela noite uma luz me cegou – ou teria
se acendido!?
Mas que história era aquela de eu estar falando em nome daqueles três
novos membros da AEL? Eu lembro: foram abrindo mão, transferindo e, em mais um
gesto que revela toda sua grandeza, o senhor – do alto da sua vida -, deixou o
microfone para o menor de todos. O fato é que ali abriu-se uma porta para
sucessivos encontros – longe do consultório -, para a troca de ideias e
conversas informais sobre letras, obras, autores, cotidiano e amenidades.
Refiro-me às reuniões mensais da Academia.
2
Quantas vezes nesses quatro anos de convívio fui tirado da minha atenção
ao que se dizia na reunião pela boca da presidente Dra. Helena Confortin, e mais
recentemente pela Dra. Lúcia Pagliosa, pois quantas vezes fui surpreendido pelo
silêncio ensurdecedor, quando, permita-me, o amigo ingressava na salinha ali
nos fundos da Biblioteca Municipal Dr. Gladstone Osório Mársico, em busca de
uma cadeira para sentar.
Sua saudação quase inaudível, não por saúde, mas seu jeito afável de ser
– avançava por entre as cadeiras sem ruído e, elegante, de gravata colorida,
metido em sua calça frisada, em seu paletó sempre alinhado em alinho com seus
cabelos grisalhos igualmente alinhados fio a fio, para enfim, sentar-se, cruzar
as pernas, descansar os braços sobre o peito e deitar um sorriso desapressado, quase
um a um, sem deixar de ser coletivamente democrático. Seus sapatos, invariavelmente
de couro, se não me equivoco alternando entre marrom e preto, empinavam no fim
das longas pernas, um sujeito que vinha de um tempo onde os cuidados com o
figurino, deveras, ainda eram, mais que um modismo - um contexto de pessoa.
O que dizer das suas intervenções que não eram intervencionistas, mas
colaborativas, quase sempre asseverando as deliberações. Não que fosse avesso ao
diálogo, mas “para que abrir uma nova janela de debates, sobre o que já estava
posto e em concórdia!?”. Sim – o Dr. Paulo não tinha a necessidade, muito menos
a volúpia, por se fazer notar, características que geralmente tão dentro de
muitos de nós residem, mais que inquilinos – posseiros/proprietários – de tal
azar que só nos damos conta, quando já passamos da linha da saturação e nem
ninguém mais quase presta atenção, a não ser, por comiseração que só em
ambientes sóbrios e de boa educação sobrevivem.
3
Vagou a cadeira 30 da Academia Erechinense de Letras. Uma ausência
instala-se em um apartamento da rua São Paulo. Abriu-se uma falta na vida da
esposa Ivone, dos filhos, netos e demais familiares, impossível de ser
preenchido. A quietude aquietou-se em si mesma.
Igualmente fez-se silêncio em sua sala no Centro Clínico do HC,
esvaziou-se sua cadeira de consultas, seus equipamentos da otorrinolaringologia
descansaram e, suas obras infantis, seus contos, suas novelas, sua produção
romântica, histórica, poética, seu Guri Basilisso e a Laranjeira das Almas reeditados
em 2018, esta última, certamente a nos expiar com seus frutos, acomodam-se
agora nas prateleiras da história de Erechim.
E por que quando uma empresa, seja ela do porte que for se fecha ou vai
embora, aludimos logo com razão que a cidade está mais pobre, podemos admitir
que assim também deve ser quando o patrimônio cultural é dilapidado, sem volta,
pelas circunstâncias naturais da vida porque um dia tudo se transforma mesmo
desconhecendo apelações.
4
Devemos sim, lamentar a perda de Paulo Dias Fernandes porque com a sua
despedida, não só a sua família, a medicina, as letras e a cultura estão mais
pobres, mas por que, a cidade se vê privada – como já aconteceu com outros que
se foram -, de um dos seus mais ilustres e nobres membros. Partiu o Patrono da
Primeira Feira do Livro de Erechim levada à praça em 1977.
Olhando pela fresta que nos é disposta ou pela qual nosso olhar tem
curiosidade, a verdade é que o cidadão Paulo Dias Fernandes, nos deixou
fisicamente – mas nos legou um admirável exemplo. Não, não diga nada. Apenas
expie a vida deste homem, conjugando todos os valores com suas possibilidades,
que a vida pode oferecer e aí avalie. Um gentleman na mais fiel conceituação do
termo e, proprietário de uma assustadora humildade.
5
Vai-se o homem, fica a obra - em toda sua extensão. A despedida do Dr.
Paulo Dias Fernandes, como tornou-se quase um padrão local mencioná-lo - em
nomes e sobrenome -, nos coloca diante de um paradoxo, ambos
incontestáveis: se a respiração cultural
da cidade está mais pausada e enfraquecida – sua história avolumou-se e
engrandeceu-se.
Não tenho a pretensão de falar em nome da Academia Erechinense de Letras
(AEL), mas como mencionei a instituição no início, porquanto foi ela que
permitiu nos aproximarmos e, nela, saboreamos belos momentos junto a todos os
demais confrades e confreiras que lhe reservavam e guardam grande respeito e
admiração, aceite Dr. Paulo, estas palavras como uma manifestação se não fina –
despretensiosa e verdadeira. Como nos ensinaste durante sua vida e, com seu jeito
inquietantemente discreto de ser, nos permitistes conviver os últimos quatro anos,
em afável companhia.
6
Sempre haveremos de lamentar nossas perdas familiares e citadinas, mas
quis o destino que sua despedida se desse em meio a uma espécie de “novo mal do
século”, que tantas vidas têm ceifado pelo mundo afora, abreviando até mesmo as
horas do último adeus. E, de novo, não querendo falar em nome da AEL, que bom
que seus dirigentes maiores, na pessoa da presidente Elcemina Lúcia Balvedi
Pagliosa, encontrasse tempo para a convocação e realização de uma reunião
extraordinária da Academia Erechinense de Letras, da qual, o senhor Dr. Paulo,
foi o único tema. Despedimo-nos honrados pelo convívio. Despedimo-nos
agradecidos por seu legado comportamental, social e cultural - sempre uma obra
que não pode ser avaliada em preço; apenas apreciada - porquanto única. Por
fim, uma observação pessoalíssima: “como pode um homem tão bem sucedido –
manter tão intrigante humildade e discrição!?”. Não obstante, a história nos
mostra que esta é uma faceta que geralmente, acompanha os grandes.