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Tem feito uns frios (exagero
– dias e noites frias, mas no popular era assim que transitava) de renguear
cusco.
E olha, uns frios, logo
depois de grossas chuvas.
Em cima de terra molhada.
Ainda hoje – três ou quatro dias depois
das chuvas -, ainda hoje o pé se afunda na terra
que se finge de firme.
Quanto tu vê é tóóófffff, e lá
se foi o tênis no barro.
Mas – esses dias entremeados de chuva e frio -,
me transportam para minha infância.
Eu sei que o mundo caminha para frente, que é
para frente que temos que olhar – mas quem, quem
se pudesse, não voltaria no tempo para viver de novo
o que viveu, ou mudar o que viveu, e claro, de lambuja
se pudesse levar junto - a cabeça que tem hoje.
O frio - hoje por exemplo, 5 graus, com sensação
de 3. Na semana de 3, 4, 2, zero, um grau...
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Certa feita o “eterno” Paulo Santana perguntou
em tom de afirmação:
“O que é a vida senão um eterno recordar!?”.
Ainda hoje está sendo sepultado o Clerí,
o competente, o impecável garçon do Realce Bar,
do Clube do Comércio
e do Atlântico. (Faleceu em julho de 21 de enfarte).
Quantas recordações meu amigo – Santo Deus !
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Quando a Baixada Rubra era o fim da cidade com
recato que deixou saudades,
pois, além só havia em
destaque
a Legião com suas 200 a 300 casinhas, sua miséria
e gente trabalhadora e digna,
o presídio e algumas 'casas de luz vermelha ou roxa'
nas redondezas,
aquele estádio era um templo
sagrado.
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Lá,
as tardes de domingo daqueles fins de invernos
e vésperas de primavera,
resgatados para hoje caberiam
num quadro.
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– seria, seria uma peça de magia, de beleza e de encanto.
Num daqueles domingos,
ainda de manhã havia rezado na São Pedro,
de joelhos e com os dedos das mãos entrelaçados,
a cabeça vergada
- para que o Atlântico,
o meu Atlântico,
para o Atlântico do meu pai –
o ‘seu’ Alberto,
para que... se não ganhasse,
que pelo menos não
perdesse à tarde.
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Depois da missa ia direto para o bazar
do ‘seu Aldinho ou seria Aldino'
ver a capa dos Roy Rogers, dos Zorro, dos Tarzan,
dos
Kid Colt e
do Fantasma.
Passos apressados me levavam com
as calças de tergal pelas canelas
fazendo plaf, plaf, plaf, plaf
contra o vento até o centro para ver os cartazes
do Ideal e do Luz.
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No de cima – o Ideal - 007 Contra o Satânico
Dr. No!’.
No debaixo, o Luz, ‘A primeira Noite
de um Homem’.
Na banca da Salete, homens
altos deixavam engraxar os sapatos enquanto
acendiam Belmontes e Hollywoods, um atrás do outro.
Agora já eram 11 horas.
Sim, e...
não, não haveria de chover.
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Se chovesse, Santo Deus, como o Índio faria
gol - o gol que ele sempre fazia!?
E se o Noronha, sempre tão prudente, sempre
tão cauteloso, sempre tão... pisando em, em... ovos,
sem quebrar a bola, haveria de empurrar o balão
de couro com segurança,
driblando a poça
d’água e sair jogando?!
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Se chovesse e o Paulinho patinasse sobre a linha,
e resvalasse e a, a, a maldita atravessasse
– sem nenhuma licença a linha do meu Atlântico,
e aí, assim, sem mais nem menos, gol... e, e, e...
aí sim, fim?
Não... aquelas grossas e
negras nuvens
eram puro frio, só podia ser
frio e assim ficaria à tarde.
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Ao meio dia os portões da
Baixada se fechavam.
Entrar de graça? – só pulando a cerca por detrás
da Legião (onde hoje é o Colégio Mantovani)
ou, ou... se eu buscasse com o Pedrinho,
o
uniforme do Galo
lá na dona Rosina (obrigado Toninho); ali perto
dos Dal Prá.
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Que ironia: a lavadeira da história do Atlântico,
visto pelas suas camisas, pelos seus calções, pelas
suas meias e sungas – era vizinha do pai do
Toninho Dal Prá, uma espécie de pai do
Ypiranga.
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Nossa! – os calções do Atlântico, brancos,
branquinhos, engomados e aquele barral no campo.
Que pecado
botar aqueles calções, lamentava de dó!
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À noite, aqueles calções alvos como plumas
e penas dos anjinhos que enfeitam as romarias
de Fátima estariam vergados, murchos,
abatidos, surrados, irreconhecíveis
- desfigurados açoitados pela
lama.
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Mas, mas, mas... se fosse ao
menos pelo
ou pelo
os calções com a alegria de sempre durante
a semana, puxa vida! E não era assim!?
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Meio dia e trinta e os vendedores de tudo, sim,
de tudo – comparado a hoje, nada -, já passavam
em
frente de casa; em frente ao Mantovani.
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Às duas meia, Jeepes, Simcas, Rurais, Baratas,
Gordinis, caminhões Alfa Romeos e Mercedes Benz
Fucas e Dekavês já iam se encostando, um ao lado
do outro, um atrás do outro, pela Jerônimo Teixeira
na Nelson Ehlers. Fora os que estavam na Aires Pires.
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Estranho?!
– não havia flanelinhas, nem guardas.
E nem roubos.
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Na frente do portão do
Atlântico,
meu tio Leonardo,
com seu problema de nascença em uma das mãos,
que a deixava meio em forma de quase gancho,
já oferecia lindas laranjas,
e as mais encorpadas, vistosas, carnudas,
doces e apetitosas bergamotas de Erechim.
Não, de Erechim era pouco. Da região.
Não, do Alto Uruguai também era pouco.
Eram as mais bonitas, as mais, mais encorpadas,
mais vistosas e mais apetitosas, as mais atraentes,
as mais doces bergamotas do, do... mundo.
Do meu mundo.
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Vindas da costa do Uruguai – ali por detrás
dos morros de Três Arroios, Mariano Moro,
Severiano
e Aratiba, tinham o ar, a pose, a presença,
a atração,
o deboche da imponência que só as mais lindas
top-models têm, quando desfilam pelas
passarelas da globalização.
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Para desespero do tio
Leonardo,
porém,
as bergamotas tinham um
defeito: eram amarelas,
amarelinhas, como a camisa do
histórico rival,
o Ypiranga.
E ainda – não bastando serem lindamente
amarelinhas; vinham enganchadas e se balançando
num galhinho com
folhas verdinhas.
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Na frente do portão da Baixada verde-rubra,
as bergamotonas do tio – amarelinhas com
decoração
esverdeada! Já ali - um Atlanga?!
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Os torcedores chegavam.
Os torcedores se precipitavam.
Os torcedores brotavam e se juntavam
e acumulavam.
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Rádios Saturnos sob o braço, e almofada
vermelha na mão.
Primeiro a fila do ingresso e depois,
o ajuntamento
em volta do caminhãozinho do tio.
E logo
os bolsos compridos das calças de tergal
se enchiam de bergamotas até os joelhos.
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A carroceria do caminhãozinho pendia com
a carga e parecia ser só questão de minutos
para virar.
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As cascas amarelas, amarelonas já pintavam
o chão úmido, meio barrento pela chuva do sábado
à noite.
Casconas amarelas boiavam sobre a lâmina
de poças.
Era shélp, shélp, shélp, shélp...
e afundando todos
os Vulcabrás no barro, na lama e junto,
afundando cascas e mais cascas,
afundando ou ressuscitando
- a história que hoje me vem neste inverno.
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O ar da Baixada se embriagava daquele cheiro,
doce sabor das bergamotas amarelas,
quando as unhas compridas e meio
sujas da labuta da semana,
rasgavam a sua casca que saía
quase inteira.
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Lacrimejavam olhos quando o ácido escapava
à fúria das unhas, subindo ao ar com seu aroma
eterno. Os gomos salientes e firmes, exuberantes
e apetitosos eram como, como - digamos;
seios juvenis
em peitos adolescentes cheios de vida
- por dar o passo seguinte e
desfazer a curiosidade e matar
a sede da ânsia incontida.
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Homens, mulheres e guris agora despencavam
de todos os lados até a Baixada.
Num vap-vup, as filas do ingresso e das bergamotas,
agora se iam para o pavilhão
verde-rubro.
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Sumiam os atlantistas de calças frisadas por entre
as duas colunas de coqueiros que levavam até
o pavilhão. Onde foram parar os coqueiros
plantados a planejamento no 'hall' da Baixada?
Pecado.
Ah, quantos pecados, Santo Deus!
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Havia quem preferisse as longas, as altas,
as inesquecíveis arquibancadas de madeira
atrás da goleira sob a sombra
– no inverno sombra fria - dos pés de Uva-Japão.
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Ao redor do alambrado,
o ‘seu Graví’ - com a cestinha de amendoim
atraía a gurizada e declamava: ‘os amarelo que
hoje se
cuide/
por que a cobra vai fumá/
é trêis a zero pro
Atrântico...
eeeeeeeeeee.... não tem nada
não/
vai sê um beeeem de saída do
Tomasi/
e dois golo do Pinhão!’.
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Eeeeeeeaaaaaaaaaahhhhhhhh
– respondia a
galera no entorno do ‘seu Graví’,
atlantino velho,
velho atlantino,
que se lambuzava com a própria saliva da sua
risada
que lhe brotava da boca quase
sem dentes,
depois
dos versinhos improvisados.
Era um poeta.
Um simples que se fez ídolo dos atlantistas.
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Até hoje, suspeito que a cestinha de amendoim
que o ‘seu Graví’ carregava, era um despiste,
um enfeite,
um adereço, um faz de conta, só para andar
onde
bem quisesse dentro do estádio, porque,
à minha memória não me lembro
do ‘seu Graví’ vendendo
um copo de amendoim sequer – mas do seu
‘atlantinismo’ e dos seus versinhos modestos,
carregados de sentimento pelo clube do coração,
disso jamais me esqueço,
como nunca
me esquecerei.
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Quando a bola rolava,
lá pelas 3 e meia e o Chiochetta parecia pegar fogo
num vermelhão mais vermelho que a camisa
do Atlântico – após esfregar as mãos fazendo
'pegar fogo o pavilhão'
era como se a vida tivesse parado lá fora: o 'hall'
da Baixada - a entrada entre-coqueiros -
era um deserto só, apesar do
dia cinzento, enlameado, frio e com cheiro
de bergamota
inundando o ar.
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As bergamotas sobradas descansavam sobre a
carroceria do caminhãozinho do tio Leonardo.
Pergunto-me ..... anos depois: quem cuidava
das sobras, se o tio e eu
também estávamos no alambrado?
Ou, será que de vez em quando
se olhava se a carga ainda estava intocável
– e
sempre estava -, e... !?
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...e ‘Avante/
vamos para a luta...’.
Que frio era aquele que lambia minhas tripas
e as minhas orelhas nos segundos tempos,
quando o sol já não tinha mais forças para
varar os galhos úmidos e a folhas amareladas
dos incontáveis
pés de Uva-Japão,
lá atrás da goleira ‘de cima’ que dava
para as bochas?
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E o Lau!?
O Lau que caminhava de um lado para o outro atrás
da goleira do Miguel, do Paulinho,
do Poppy, do
Valdir...
de quem quer que estivesse na guarda do gol
do Atlântico, caminhava sem parar entre os dois
apitos,
o inicial
e o final!
Por anos a fio.
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E quando ao final dos 90 e
tantos,
com o sol já caindo por detrás do pavilhão das
bochas e de bolão,
e a segunda-feira já acenando na domingueira
em despedida,
mil, ou dois mil, ou três mil se levantavam
na Baixada,
e, eufóricos ou resignados se
iam,
amassando mais ainda
- as cascas amarelas
e barrentas,
das mais belas bergamotas daqueles invernos
dos anos 1960.
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Seria só o fim de uma tarde de fim de inverno
– ou apenas mais um capítulo de uma história,
que como a
história, não vai embora e fica.
Quanto tempo o Dartagnan e o Ceni levariam
para recolher aqueles 'quilômetros' de fios de rádio,
agora molhados e
embarrados!?
‘Na vitória
ou na derrota/
honremos nossa tradição...’
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Almofadas esquecidas ficavam como testemunhas
ao relento
como que a conferir as razões do desastre
da derrota,
ou para rever de onde mesmo,
de onde foi,
afinal de contas
- que o Pinhão empurrara para
o fundo das redes,
aos 43 do 2º tempo,
o tento da vitória,
bem como o ‘seu Graví’
prenunciara!
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‘Atlântico,
tu és poderoso/
conquistando vitórias com
ardor
teu símbolo é belo
e grandioso
inspira confiança e amor’
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E quando o domingo se fechava
de vez,
todos os Gordinis, Dekavês, Rurais,
Baratas e caminhões já tinham ido embora.
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Uns para os bares da redondeza, outros para
o aconhego dos lares, outros mais – deslizavam
uma quadra para festejar a vitória, ali
em algumas
'casas de luz vermelha ou roxa';
que assim, aos ouvidos de hoje,
soa como velho santuário de mulheres que
compreendiam as necessidades dos homens,
e lhes ajudavam a ser mais felizes.
E tudo,
sem grandes explorações – umas Serramaltes
bastavam para a volta olímpica num quartinho
onde a bacia da higiene, dormia quieta num
cantinho, sob luz vermelha (tinha que ser vermelha)
e o Vicente Celestino a rodar: “Tornei-me um ébrio
e na bebida busco esquecer/
Aquela ingrata que eu amava e
que me abandonou/Apedrejado pelas
ruas vivo a sofrer
/Não tenho lar e nem
parentes, tudo terminou...”.
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Hoje em dia não tem mais
Baixada Rubra.
A Legião emigrou para a Florestinha,
para o Cachorro Sentado e dali para o Progresso.
Jogadores, dirigentes e torcedores
se dispersaram.
Foram embora.
Morreram
ou se extraviaram pelo mundo.
Pela vida!
Ainda outro dia, deparei-me com a sepultura do
Ceni lá no Jardim da Saudade. O
Os carros daqueles tempos morreram.
O Atlântico da bola de couro número 5,
também morreu.
Até as bergamotas andam trocando de cor,
mas ainda guardam
um corpo
esbelto, com casca de presença.
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Só ficaram lá onde era o campo do Atlântico,
num olhar de memória,
a escuridão,
o ar gelado,
algumas árvores,
bem poucas árvores,
e talvez, os fantasmas do ‘seu Graví’,
do meu tio Leonardo, do Índio e do Lau.
Lá ficou o jeito e a cara das segundas-feiras
batendo no fim do domingo,
e o cheiro ácido
com sabor doce,
das eternas bergamotas de julho.
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A vida passa.
E cada um vive a sua no seu
tempo.
E, sejamos honestos, dentro das suas circunstâncias
que viraram lembranças.
E esta que aqui deito – é uma
delas.
Se os que hoje nadam, jogam
tênis ou futsal
naquele templo;
de minha sorte
me aqueço com
a recordação
viva e quente daqueles dias
chuvosos e gelados.
As bergamotas do tio Leonardo
na Baixada Rubra
– me confortam quando a ameaça
pelo tempo que se foi
me
persegue e até me castiga.
“O que é a vida senão um eterno
recordar!?”.