domingo, 4 de julho de 2021

O que é a vida senão um eterno recordar!

 



1

 

Tem feito uns frios (exagero – dias e noites frias, mas no popular era assim que transitava) de renguear cusco.

E olha, uns frios, logo depois de grossas chuvas.

Em cima de terra molhada.

Ainda hoje – quatro ou cinco dias depois 

das chuvas -, ainda hoje se afunda o pé na terra 

que se finge de firme.

Quanto tu vê, tóóófffff, e lá se foi o tênis no barro.

Mas – esses dias entremeados de chuva e frio -, 

me transportam para minha infância.

Eu sei que o mundo caminha pra frente, que é 

pra frente que temos que olhar – mas quem, quem 

se pudesse, não voltaria no tempo para viver de novo 

o que viveu ou mudar o que viveu, claro, 

se pudesse levar junto a cabeça que tem hoje.

O frio - hoje por exemplo, 5 graus, com sensação 

de 3. Na semana de, 3, 4, 2, zero, um grau...

 

2

 

Certa feita o “eterno” Paulo Santana perguntou

em tom de afirmação: 

“O que é a vida senão um eterno recordar!?”.

Ainda hoje está sendo sepultado o Clerí, 

 competente, impecável garçom do Realce Bar, 

do Clube do Comércio

 e do Atlântico. (Faleceu sábado (3) de enfarte). 

Quantas recordações meu amigo – Santo Deus !

 

3

 

Quando a Baixada Rubra era o fim da cidade com 

recato que deixou saudades,

pois, além só havia em destaque

a Legião com suas 200 a 300 casinhas, sua miséria 

e gente trabalhadora e digna,

o presídio e algumas "casas de luz vermelha" 

nas redondezas,

aquele estádio era um templo sagrado.

 

4

 

Lá,

as tardes de domingo daqueles fins de invernos 

e vésperas de primavera,

resgatados para hoje caberiam num quadro.

 5

 Uma tarde daquelas disposta em bela moldura 

– seria peça de magia, beleza e encanto.

 6

 Ainda de manhã havia rezado na São Pedro, 

de joelhos e com os dedos das mãos entrelaçados, 

a cabeça vergada - para que o Atlântico,

o meu Atlântico,

para o Atlântico do meu pai – o ‘seu’ Alberto,

para que... se não ganhasse,

que pelo menos que não perdesse à tarde.

 

7

 

Depois ia direto para o bazar do ‘seu Aldinho’ 

ver a capa dos Roy Rogers, dos Zorro, do Tarzan, 

do 

Kid Colt e 

do Fantasma. Passos apressados me levavam com 

as calças curtas fazendo plaf, plaf, plaf, plaf 

contra o vento até o centro para ver os cartazes 

do Ideal e do Luz.

 

8

 

No de cima – o Ideal - 007 Contra o Satânico 

Dr. No!’. No debaixo, o Luz, ‘A primeira Noite 

de um Homem’. Na banca da Salete homens

 altos deixavam engraxar os sapatos enquanto 

acendiam Belmontes e Hollywwods, um atrás do outro. 

Agora já eram 11 horas. Sim, e... não, não haveria de chover.

 

9

 

Se chovesse, Santo Deus, como o Índio acertaria 

o gol?

E se o Noronha, sempre tão prudente, sempre 

tão cauteloso, sempre tão pisando em, em... ovos, 

sem quebrar a bola, haveria de empurrar o balão 

de couro com segurança, driblando a poça d’água?!

 

10

 

Se chovesse e o Paulinho patinasse sobre a linha, 

e resvalasse e a, a, a maldita atravessasse 

– sem nenhuma licença a linha do meu Atlântico, 

e aí, assim, sem mais nem menos, gol... e, e, e... 

aí sim, fim?

Não... aquelas grossas e negras nuvens

eram puro frio, só podia ser frio, e assim ficaria à tarde.

 

11

 

Ao meio dia os portões da Baixada se fechavam.

Entrar de graça? – só pulando a cerca por detrás 

da Legião, ou, ou... se eu buscasse com o Pedrinho, 

o uniforme do Galo

lá na dona Rosina (obrigado Toninho); ali perto 

do Dal Prá.

 

12

 

Que ironia: a lavadeira da história do Atlântico, 

vista pelas suas camisas, pelos seus calções, pelas 

suas meias e sungas – era vizinha do pai do 

Toninho Dal Prá, uma espécie de pai do Ypiranga.

 

13

 

Nossa! – os calções do Atlântico, brancos, 

branquinhos, engomados e aquele barral no campo. 

Que pecado botar aqueles calções, lamentava de dó!

 

14

 

À noite, aqueles calções alvos como plumas 

e penas dos anjinhos que enfeitam as romarias 

de Fátima estariam vergados, murchos, 

abatidos, surrados, desfigurados - açoitados pela lama.

 

15

 

Mas, mas, mas... se fosse ao menos pelo 1 a

ou pelo 2 a 1 pra nós! – que a dona Rosina lavasse 

os calções com a alegria de sempre durante 

a semana, puxa vida! E não era assim!?

 

16

 

Meio dia e trinta e os vendedores de tudo, sim, 

de tudo – comparado a hoje, nada -, já passavam 

em frente de casa em frente ao Mantovani.

 

17

 

Às duas meia, Jeepes, Simcas, Rurais, Baratas, 

Gordinis, caminhões Alfa Romeo e Mercedez, 

Fucas e Dekavês já iam se encostando, um ao lado 

do outro, um atrás do outro, pela Jerônimo Teixeira 

e na Nelson Ehlers.

 

18

Estranho?! – não havia flanelinhas, nem guardas.

E nem roubos!

 

19

 

Na frente do portão do Atlântico,

meu tio Leonardo,

com seu defeito de nascença em uma das mãos 

que a deixava em forma de quase gancho;

já oferecia lindas laranjas,

e as mais encorpadas, vistosas, carnudas, 

doces e apetitosas bergamotas de Erechim. 

Não, de Erechim era pouco. Da região. 

Não, do Alto Uruguai também era pouco. 

Eram as mais bonitas, as mais, mais encorpadas, 

mais vistosas, mas, mais apetitosas, as mais atraentes, 

as mais doces bergamotas do, do, do... mundo.

Do meu mundo.

 

20

 

Vindas da costa do Uruguai – ali por detrás 

dos morros de Três Arroios, Mariano, Severiano 

e Aratiba, tinham elas o ar, a pose, a presença, 

a atração, 

o deboche da imponência que só as mais lindas 

top-models tem, quando desfilam hoje pelas 

passarelas da globalização.

 

21

 

Para desespero do tio Leonardo,

porém,

as bergamotas tinham um defeito: eram amarelas,

amarelinhas, como a camisa do histórico rival,

o Ypiranga.

E ainda – não bastando serem lindamente 

amarelinhas; vinham enganchadas e se balançando 

num galhinho com folhas verdinhas...

 

22

 

Na frente do portão da Baixada verde-rubra, 

as bergamotonas do tio – amarelinhas com 

decoração esverdeada! Já ali, um Atlanga?!

 

23

 

Os torcedores chegavam.

Os torcedores se precipitavam.

Os torcedores brotavam e se juntavam 

e acumulavam.

 

24

 

Rádios Saturnos sob o braço, e almofada 

vermelhana mão.

Primeiro a fila do ingresso e depois, 

o ajuntamento 

em volta do caminhãozinho do tio. E logo 

os bolsos compridos das calças de tergal 

se enchiam de bergamotas até os joelhos.

 

25

 

A carroceria da caminhãozinho pendia com 

a carga e parecia ser só questão de minutos

 para virar.

 

26

 

As cascas amarelas, amarelonas já pintavam 

o chão úmido, meio barrento pela chuva do sábado 

à noite. Casconas amarelas boiavam sobre a lâmina 

de poças.

Era shélp, shélp, shélp, shélp... afundando todos 

os Vulcabrás no barro, na lama e junto,

afundando cascas e mais cascas, e por ironia, 

a história que hoje me vêm neste inverno.

 

27

 

O ar da Baixada se embriagava daquele cheiro ácido

 e doce sabor das bergamotas amarelas e 

carnudas quando as unhas compridas e meio 

sujas da labuta da semana,

rasgavam a sua casca que saía quase inteira.

 

28

 

Lacrimejavam olhos quando o ácido escapava 

à fúria das unhas, subindo ao ar com seu cheiro 

eterno. Os gomos salientes e firmes, exuberantes 

e apetitosos eram como seios juvenis 

em peitos adolescentes cheios de vida por dar o passo 

seguinte e desfazer a curiosidade e matar 

a sede da ânsia incontida.   

 

29

 

Homens, mulheres e guris agora despencavam 

de todos os lados até a Baixada.

Num vap-vup, as filas do ingresso e das bergamotas,

agora se iam para o pavilhão verde-rubro.

 

30

 

Sumiam os atlantistas de calças frisadas por entre as duas colunas de coqueiros que levavam até 

o pavilhão. Onde foram parar os coqueiros 

plantados a planejamento no "hall" da Baixada? 

Pecado. Ah, quantos pecados!

 

31

 

Havia quem preferisse as longas, as altas, 

as inesquecíveis arquibancadas de madeira 

atrás da goleira sob a sombra 

– no inverno sombra fria - dos pés de Uva-Japão.

 

32

 

Ao redor do alambrado,

O ‘seu Graví’ - com a cestinha de amendoim 

atraía a gurizada e declamava: ‘os amarelo que 

hoje se cuide/

por que a cobra vai fumá/

é trêis a zero pro Atrântico...

eeeeeeeeeee.... não tem nada não/

vai sê um beeeem de saída do Tomasi/

e dois golo do Pinhão!’.

 

33

 

Eeeeeeeaaaaaaaaaahhhhhhhh – respondia a 

galera no entorno do ‘seu Graví’,

atlantino velho,

velho atlantino,

que se lambuzava com o próprio cuspe da sua 

risada

que lhe brotava da boca quase sem dentes

depois,

dos versinhos improvisados.

Era um ídolo dos atlantistas.

 

24

 

Até hoje, suspeito que a cestinha de amendoim 

que o ‘seu Graví’ carregava, era um despiste, 

um enfeite, 

um adereço, um faz de conta, só para andar 

onde 

bem quisesse dentro do estádio, porque,

à minha memória não me lembro do ‘seu Graví’ vendendo 

um copo de amendoim sequer – mas do seu 

‘atlantinismo’ e dos seus versinhos modestos, 

carregados de sentimento pelo clube 

do coração, disso jamais me esqueço, 

como nunca 

me esquecerei.

 

35

 

Quando a bola rolava,

lá pelas 3 e meia e o Chiochetta parecia pegar fogo

num vermelhão mais vermelho que a camisa 

do Atlântico – após esfregar as mãos fazendo 

“pegar fogo o pavilhão”,

era como se a vida tivesse parado lá fora: o "hall"

da Baixada - a entrada entre-coqueiros - 

era um deserto só – apesar do 

dia cinzento, enlameado, frio e com cheiro 

de bergamota 

inundando o ar.

 

36

 

As bergamotas sobradas descansavam sobre a 

carroceria da caminhãozinho do tio Leonardo.

Pergunto-me ..... anos depois: quem cuidava 

das sobras, se o tio e eu 

também estávamos no alambrado? 

Ou, será que de vez em quando 

se olhava se a carga ainda estava intocável 

– e sempre estava -, e... !?

 

37

 

...e ‘Avante/

vamos para a luta...’.

Que frio era aquele que lambia minhas tripas 

e as minhas orelhas nos segundos tempos,

quando o sol já não tinha mais forças para 

varar os galhos úmidos e a folhas amareladas 

dos incontáveis pés de Uva-Japão,

lá atrás da goleira ‘de cima’ que dava 

para as bochas?

 

38

 

E o Lau – lembram?

O Lau que caminhava de um lado para o outro atrás 

da goleira do Miguel, do Paulinho, 

do Poppy, do Valdir...

de quem quer que estivesse na guarda do gol 

do Atlântico, caminhava sem parar entre os dois 

apitos, 

o inicial e o final!

 

39

 

E quando ao final dos 90 e tantos

com o sol já caindo por detrás do pavilhão das 

bochas e de bolão,

e a segunda-feira já acenando na domingueira 

em despedida,

mil, ou dois mil, ou três mil se levantavam 

na Baixada,

e, eufóricos ou resignados se iam,

amassando as cascas amarelas e barrentas,

das mais belas bergamotas daqueles invernos 

dos anos 1960.

 

 40

 

Seria só o fim de uma tarde de fim de inverno 

– ou apenas mais um capítulo de uma história, 

que como a história, não vai embora e fica.

Quanto tempo o Dartagnan e o Ceni levariam 

para recolher aqueles quilômetros de fios, 

agora molhados e embarrados!?

‘Na vitória

ou na derrota/

honremos nossa tradição...’

 

41

 

Almofadas esquecidas ficavam como testemunhas 

ao relento

como que a conferir as razões do desastre 

da derrota,

ou para rever de onde mesmo,

de onde foi,

afinal de contas

- que o Pinhão empurrara para o fundo das redes,

aos 43 do 2º tempo,

o tento da vitória,

bem como o ‘seu Graví’ prenunciara!

 

42

 

‘Atlântico,

tu és poderoso/

conquistando vitórias com ardor

teu símbolo é belo

e grandioso

inspira confiança e amor’

 

43

 

E quando o domingo se fechava de vez,

todos os Gordinis, Dekavês, Rurais, 

Baratas e caminhões já se tinham ido embora.

 

44

 

Uns para os bares da redondeza, outros para 

o aconhego dos lares, outros mais – deslizavam 

uma quadra para festejar a vitória, ali

pelas redondezas em algumas 

"casas de luz vermelha"; 

que assim, aos ouvidos de hoje, 

soa como velho santuário de mulheres que 

compreendiam as necessidades dos homens, 

e lhes ajudavam a ser mais felizes. E tudo, 

sem grandes explorações – umas Serramaltes 

bastavam para a volta olímpica num quartinho 

onde a bacia da higiene, dormia quieta num 

cantinho, sob luz vermelha (tinha que ser vermelha) 

e o Vicente Celestino a rodar: “Tornei-me um ébrio 

e na bebida busco esquecer/

Aquela ingrata que eu amava e

que me abandonou/Apedrejado pelas 

ruas vivo a sofrer

/Não tenho lar e nem parentes, tudo terminou...”.

 

45

 

Hoje em dia não tem mais Baixada Rubra.

A Legião emigrou para a Florestinha e fez nascer 

o embrião do Progresso – o Cachorro Sentado.

Jogadores, dirigentes e torcedores 

se dispersaram. Foram embora. Morreram 

ou se extraviaram pelo mundo. Pela vida!

Ainda outro dia, deparei-me com a sepultura do 

Ceni lá no Jardim da Saudade.

 

46

 

Os carros daqueles tempos morreram.

O Atlântico morreu.

Até as bergamotas trocaram de cor.

Agora elas são doces, porém, não são mais 

todas, amarelas. Variam. Agora elas vêm mais 

cedo – e muitas delas ficam o ano todo – agora, 

pintadas de verde – embora, ainda guardem 

um corpo esbelto, com casca de presença.

47

Só ficaram lá onde era o campo do Atlântico,

num olhar de memória,

a escuridão,

o ar gelado,

algumas árvoes,

as bochas – meio esquecidas,

e talvez os fantasmas do ‘seu Graví’, do meu 

tio Leonardo, do Índio e do Lau;

lá ficou o jeito e a cara da segunda batendo no fim 

do domingo,

e o cheiro ácido

com sabor doce,

das eternas bergamotas de julho.

Pra parede não ficar nua – colocaram

um quadro de um parque poliesportivo

que atende às exigências de hoje 

- tudo bem diferente.

48

A vida passa.

E cada um vive a sua no seu tempo.

E, sejamos honestos, dentro das suas circunstâncias 

que viram lembranças.

E esta que aqui deito – é uma delas.

Se os que hoje nadam, jogam tênis ou futsal

naquele templo;

de minha sorte me aqueço com a recordação

viva e quente daqueles dias chuvosos e gelados.

As bergamotas do tio Leonardo na Baixada Rubra 

– me confortam quando a ameaça pelo tempo que 

se foi me persegue e até me castiga.

“O que a vida senão um eterno recordar!?”.