sábado, 20 de março de 2021

C’est ma Ville!

 

Guilherme Barp/Arquivo de Família


 

1

Devia ser 1964.

Ano de inauguração do Colégio Mantovani.

Eu estava na 1ª série do ginásio.

Ou – talvez fosse 1965.

Mas já tínhamos francês.

O professor – Guilherme Barp.

Um homem de estatura baixa, mas

 já dava pra ver que era rígido.

Ensinava e cobrava mesmo.

E para nós, uma turma de “fedelhos”

recém saídos da Admissão na 5ª série

do JB - éramos só ouvidos. Ai de quem...

2

Pois naquele ano tínhamos um livro

da capa amarela nas aulas de francês.

Era um livro com inúmeros textos e

uma das tarefas era ler os ditos textos.

Óbvio que havia os mais difíceis, etc.

Mas o texto número 30 ou da página 30

(não sei por que, mas é esse número

que está na minha memória 

- talvez não seja, mas 

apostaria que sim),

era tido por todos como o mais fácil.

E, uma certa data, o professor Barp

anunciou que nos preparássemos

pois ele tomaria a leitura de aluno

por aluno daqueles textos. O modo

de escolha seria por sorteio. Todos

queriam pegar o texto 30 ou da página 30.

3

Minha classe ficava na frente da mesa

do professor. Chegando à sala,

pediu-me que tirasse uma folha

do caderno e rasgasse em

papeizinhos colocando a numeração

de 01 até o último texto.

Confesso hoje, passados assim,

por alto 57 anos, senti uma coceira

de fazer uma marquinha no papelzinho

de número 30. Mas 

– o meu medo era maior.

A única vez que tentei enganar

um professor foi colar em física,

com o grande Generali.

Eu tremia tanto que minha mão

deve ter chamado a atenção do professor.

Mas, aparentemente, fez de conta

não ter visto nada.

Hoje eu sei: estava esperando

pra me prender em flagrante.

Quando puxei o papel por baixo da classe,

uma mão enorme me arrancou a cola

das mãos, tirou a prova, amassou-a,

e me mandou pra fora da sala.

Que fosse pastar.

Isso com o Generali.

Então – eu tinha esse medo de berço

na própria pele. Os outros faziam chover

– mas eu tinha certeza que seria apanhado.

E sempre era. Ou – a vez que tentei

- me pegaram.

4

Vai que enumerando os textos

na aula de francês, se fiz ou não

fiz uma marquinha no texto 30

– não lembro, mas apostaria que não

-, e quando tudo estava pronto,

o professor Barp, pela lista de chamada,

convocou um por um para tirar um papelzinho.

O número que estava no papel era o texto

que devia ler. E o 30 era o que todos

sabiam, o mais fácil e o mais curto.

O cobiçado. Não sei como foi,

mas na minha vez e já tinham

tirado a metade dos papeizinhos

(e ninguém vibrara!),

peguei um é... eureka: o 30.

O 30 na minha mão.

O texto se intitulava “C’est ma Ville!”.

“É minha cidade” – ou algo parecido.

Todos sabiam ler aquele

- em francês. Até eu.

5

O tempo passou, cada um foi para seu lado

e, lá pelos idos da segunda metade da

década de 1960, Guilherme Barp

liderou um grupo de professores e religiosos

da época, Grupo Vaticano, buscando

a UPF estender cursos superiores

para Erechim.

Segundo a professora Doutora

Helena Confortin, o grupo tinha

o professor Franzon, Valdomiro Betoni,

Irmã Nazaré, Girônimo Zanandréa,

Demétrio Valentini e

o grande mestre de História

– Adroaldo Lise.

6

Coube ao professor Guilherme Barp

liderar essa turma e tornar-se

o primeiro diretor do

Centro Universitário Erechim

– Extensão de Passo Fundo.

Foi instalado em 7 de setembro de 1968.

Os cursos eram – Estudos Sociais e Letras.

Em 15 de outubro de 1968 foi trocado

seu nome passando a chamar-se

Centro Universitário Alto Uruguai

– CEUAU. Depois disso todo mundo

sabe a história, mas para constar,

na raiz dela, estava Guilherme Barp.

7

Ainda viajando com o tempo,

na companhia de Guilherme Barp,

elegeu-se vereador para a gestão

1983 a 1988. Tornou-se presidente

do Poder Legislativo de 6 de janeiro de

1987 a 31 de dezembro der 1988.

Seu partido? – o PDT.

Era, sobretudo, um trabalhista,

um brizolista. 

Digamos – um socialista,

ou, quase, quase.

Um trabalhista com absoluta certeza.

De 21 de janeiro de 1988 a 25 de janeiro

do mesmo ano, assumiu a prefeitura

como prefeito em exercício.

No governo do Dr. Alceu Collares,

foi Delegado de Educação

(denominação usada à época)

na 15ª CRE.

De 1991 a 1994. 

Foi o 16º Delegado

de Educação na nossa região.

Na sua gestão

foi inaugurada a Escola Estadual de

Ensino Médio Dr. João Caruso lá

nas Três Vendas com Dr. Collares e

dona Neusa presentes.

Antonio Dexheimer era o prefeito.

PDT & MDB no comando.  

8

Mas – Guilherme Barp

-, professor, incentivador

de instituições italianas,

empreendedor educacional ao liderar

a vinda do ensino superior a Erechim, 

advogado, militante político,

delegado de educação, vereador,

prefeito em exercício, pesquisador,

colaborador com periódicos locais,

ativista urbano por causas sociais, 

foi, sobretudo, um homem de 

posições.

(Deixo o termo 'posições' 

em linha isolado,

porque esta define o Barp, 

no meu entender.

E uma das causas que abraçou

e defendeu durante toda sua vida foi 

a grafia de Erechim com “xis” e,

mais do que isso, um defensor do uso

da língua portuguesa para denominações

que levavam como escrita outros idiomas.

9

Porém, este é um capítulo que não merece

nesta modesta homenagem 

a este “erexinense” como diria ele 

– ser reaberto

aqui e agora. O fato objetivo é

que Guilherme Barp, com tudo

que encarnou, partiu como mais uma

vítima da Covid 19 aos 92 anos,

no dia 12 de março. Deixa esposa,

dois filhos, cinco netos e três bisnetos.

Sua obra com concordâncias

ou discordâncias está escrita

e incólume nos anais desta cidade.

Tanto isso é verdade que o prefeito

Paulo Polis chegou a decretar luto

de três dias ao tomar conhecimento

do passamento deste homem.

10

Morador da mesma quadra

do Mantovani, Guilherme Barp

pode ainda orgulhar-se de ter sido

um homem de prioridades claras:

família, fé/religião, convicções que

por vezes atraíam e fomentavam

debates no campo das ideias, 

trabalho,

educação e política 

– afora seu ofício

de advogado. 

Não obstante,

houve um período onde ao lado

de Neivo Zago, Antonio Andriolli

e da militante e atuante Ondina Piaia

(também já falecida),

formou o grupo “A voz do povo”

que se reunia na esquina democrática

da cidade para defender causas

aparentemente comuns a todas

as pessoas de bem, tanto em nível

local, estadual ou nacional. Uma delas

pedindo a redução de todos os custos

da Câmara de Vereadores recebeu

quase 5 mil assinaturas. Mas

– nada foi atendido pelos edis da

época lá por 2016,

nem nunca. Afora isso,

havia outro grupo que mais

recentemente reunia-se geralmente

às sextas-feiras no “Felicità”

da Tiradentes para cafés

e mais debates e embates.

11

Afora uma ou outra discussão

sobre jornalismo e fonte, cada

qual respeitando a fronteira do outro,

prefiro guardar como lembranças

aquela do católico fervoroso

que não perdia missa

de fim de semana na São Pedro,

do político e defensor de convicções

e pontos de vista sobre diferentes

temáticas

e, donde reconheço que sobremaneira, 

Guilherme Barp foi acima de tudo em

todos seus papéis assumidos

e desempenhados na cidade, um sujeito,

como disse, de posições. Não é sempre

que nos deparamos com alguém

que assume posições e as sustenta,

indiferente do que pensam delas e dele.

Ser reconhecido por suas posições soa

como um elogio – um ato de respeito

para quem assim é. A concordância

ou não – fortalece uma e revela

o caráter democrático para com

a outra -, discordante. Ambos s

avalizam como “rivais necessários”,

configurando uma espécie de Grenal,

onde a existência de um,

está ligada diretamente à existência

do outro.

12

Por isso mesmo fico com o

Guilherme Barp varrendo

a fronteira externa da sua residência,

ali na Nelson Ehlers, para deixar

tudo em pratos limpos àquela área

– sempre protegido do sol usando

seu chapéu firme, aparentemente

confeccionado em palha ou tipo vime,

quer na cabeça ou nas abadas, mas

um equipamento útil e confiável.

Os ademais que correm de boca

em boca – muita vez sem informações

mais acreditadas - são filigranas

que diante da grandiosidade da vida

não passam de momentos que de uma

ou outra sorte nos marcam para sempre

no contexto histórico – de quem

tem história.

13

Uma demonstração da sua determinação,

e por que não dizer, ousadia quando

colocava uma coisa na cabeça,

foi o fato de ter redigido uma carta

em 30 de maio de 1983, em francês,

desejando um ótimo governo

ao nada mais, nada menos,

presidente da França – Francois Miterrand.

Foi o governante mais longevo

da França, governando o país de 1981 a 1995.

E um dos únicos oriundos

do Partido Socialista.

Sempre na língua francesa,

Guilherme Barp recebeu a resposta

em 29 de junho de 1983

– do próprio Presidente Miterrand.

Dir-se-ia ou dir-se-á hoje: coisa de Barp!


14

Por fim, a pendenga que ganhou

fama na cidade e até fora dela,

sobre a escrita correta de sua denominação,

se com “x” ou “ch” - credito-a

a uma questão de estudo, 

de convicção e de posição, 

pois afinal

quem poderia suspeitar que ao

insistir com sua insistência

sobre o assunto, Guilherme Barp,

não estaria apenas nos cutucando,

porquanto, por via das dúvidas,

esta também 'é minha cidade’.

                                      

                                            15

“José Ódy, é a sua vez. 

Texto 30.

Pode começar!”.

Pois não, professor:

“C’est ma Ville!”.