domingo, 26 de abril de 2020

O Atlântico e o Tuta do 14!



* Para aliviar tempos de pandemia do Covid 19 e pandemônio político. E porque hoje é domingo, sem futebol de novo.

1
Corriam os anos 1960, devia ser 1961; e meu pai e eu agarrado à sua mão, entramos num ônibus de torcedores do Atlântico, graças a Deus, ali em frente da antiga Baixada Rubra – hoje, o parque poli-esportivo e coisa e tal.
Era um domingo de sol forte. Na transbrasiliana a poeira levantava alta e densa porque o comboio de ônibus atlantistas passava de dez. Os panos encarnados se enfiavam pelas frestas das janelinhas enferrujadas dos ônibus e tremulavam ao vento.
‘Avante/Vamos para a luta/Salve o nosso pavilhão/Na vitória ou na derrota/Honremos nossa tradição/Atlântico, tu és poderoso...’ cantava-se dentro dos ônibus e sei lá eu em mais quantos carros particulares que podavam os coletivos assim como o Catarino Andreatta podava seus concorrentes nas corridas de rua em Porto Alegre. Quando chegamos em Getúlio Vargas, parecia que tínhamos feito uma viagem.
2
Das portas dos ônibus, despencavam torcedores e nos portões a aglomeração era de surpresa. Mais surpresa, recolhi, guardei e nunca mais esqueci, foi ver que em mesmo número, no mínimo, ônibus e ônibus com placas de Passo Fundo, despejavam no largo do estádio Plácido Scussel, gente que nunca tinha visto nesta vida. Eram pessoas estranhas, mas igualmente enrolados em panos e bandeiras vermelhas – do 14 de Julho. A confiança deles era igual a nossa. No mínimo!
Atlântico e 14 de Julho jogariam naquela tarde de não sei mais quando nos anos 1960, o título da zona norte. Nos dois jogos anteriores, a igualdade se impusera, rigorosa. Uma vitória para cada bando – como se dizia à época.
O timaço do Atlântico, cuja base era de Paulinho; Tiassa, Garcia, Noronha e Fossati; Zé Carlos e Assis; Tomasi, Índio, Cardoso e Carioca, afora o grande Maneco e o Moacyr  – era a mais tranquila das convicções que, em campo neutro, não havia por que se temer o 14, mesmo que este também tivesse um grande time, com destaque para o meio-campista Santarém, o armador Meca, Armando Rebechi e o outro...
Aquele que vou falar depois. Que nunca mais esqueceria.
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O outro - que deixava nós atlantistas, com aquele friozinho na barriga, era um baixinho que jogava na ponta direita e andava pelo campo todo. Era difícil de ser achado, gostava e sabia fazer gols e, ainda por cima, jogava pelo setor do sereno e bom lateral esquerdo Fossatti, mas que às vezes... não tinha lá muita sorte.
O zero a zero já insistia em permanecer e levar tudo para a loteria dos pênaltis numa flagrante injustiça porque afinal, o Atlântico tinha time de sobra para ser campeão, quando, eis que uma bola metida do meio para a ponta direita em busca do baixinho de pernas tortas – o único que nos botava medo...
No atalho, surgiu o Fossatti, que num lance de absoluta indecisão e rapidez incalculável – entre deixar a bola bater na altura da sua barriga onde a sunga branca se dobrava por sobre o calção, ou então, deixá-la sair pela linha de fundo, retirando o corpo, instintivamente, talvez, querendo se proteger e na certeza que ninguém sequer notaria – amaciou a bola de couro cru com a mão. Parece que bateu, parece que não. Parece e parece... e alguém apitou.
Nossa Senhora de Fátima. Não é que o juiz viu!  Todo o estádio viu. Ou acha que viu. O certo é que depois do apito - todo mundo foi atrás da explosão da torcida do 14. O lateral ainda tentou tirar a mão assim como quem tentando arrancar um grão de uva em parreiral alheio e, flagrado, deixa instintiva e quase como se fosse uma brincadeirinha, o grão cair – mas, então; alguém já percebeu e aí  a gente fica vermelho, ameaça assobiar e não encontra nenhum lugar no mundo inteiro onde botar as mãos, brancas, trêmulas e molhadas de puro gelo. O famoso "deu um branco". Ou tudo foi apenas aparência?
Aquele juiz correndo em direção à marca branca de cal do pênalti, como alguém que tenta pegar um cachorrinho onde os cabelos e os pelos de ambos se deitam num desafio velocista contra o vento, foi como levar um tiro. Não. Não. Não é possível que ele tenha visto. O Fossatti nem queria botar a mão na bola. A gente via que quando ele tocou na bola ele já estava tirando a mão e pedindo desculpas. Fora um descuido. Será que aquele juiz não entende que o Fossatti só estava brincando?! O Fossatti achava que era treino! Para que deixar a bola sair pela linha de fundo – e depois ter de buscá-la? Não havia perigo de gol, risco nenhum ninguém ia pegar aquela bola. Ou, por um ajuste de contas – que não se sabe qual -, os deuses do futebol levaram ao encontro da mão do nosso lateral, pegando-o de surpresa!?
Todo o time do 14 de Julho, até os reservas, correram para abraçar e sufocar o baixinho de pernas tortas entendendo que ele provocara o nervosismo do lateral atlantista, induzindo-o a cometer o lance fatal.
Lá nas gerais do estádio do Tabajara Guaíba o vermelho e branco do 14 de Julho queria desabar as arquibancadas de madeira. No pavilhão e nas laterais da tela, verde-rubros não acreditavam no que viam: o time superior dentro do gramado, provavelmente por interferência divina não conseguira até então seu tento... e agora ali, todos há centímetros do desfecho inesperado, impensado, inimaginado, surreal, apavorante, aterrorizante porquanto podia ser visto, ali. Era verdadeiro o que estava acontecendo? Sim – era. Num jogo de dois iguais, um pênalti.... bem...
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Mais de uma dúzia de mulheres de cabelos ajeitados, unhas compridas pintadas de vermelho, cheias de pulseiras nos braços, quase todas afeitas ao vício do cigarro (ou seria só por nervosismo), agarradas à tela, gritavam palavras que eu não sabia o que significavam – mas que tempinhos depois fui descobrir que eram palavrões. Corria na torcida que eram da zona. Zona? Que zona! O que é isso!?
Deus do Céu, pensei eu... como este mundo é injusto? Meu pai, o velho e bom Alberto Mathias, que trabalhara a semana inteira na sua alfaiataria e que durante todos aqueles dias anteriores à decisão fizera na sua cabeça o seu próprio jogo e os gols atlantinos – parecia engolir o cigarro. Os fios da barba pareciam ter crescido ali no campo do Taguá. No rosto – o suor do último medo corria.
Depois de uns minutos quando o lateral verde-rubro já tinha se recobrado do seu ato, talvez irreversível dentro daquele jogo inesquecível – o juiz mandou o goleiro do meu Atlântico se postar sobre a linha final, e que dali, não se mexesse antes que o tiro fosse desferido.
O balão de couro foi parar então nas mãos do baixinho de pernas tortas, aquele que desde a semana inteira todos vinham se prevenindo como se fosse um pó dentro de uma carta: “Cuidado, que pode ser Antraz!”.
O baixinho tinha fama de rir. Mascava um chiclete com a bola debaixo do braço. Ele ria um... “agora vocês vão ver!” – era o que me parecia, aquele endiabrado vestido de vermelho. 
Acho que rezei duas, três Ave-Marias para Nossa Senhora de Fátima, mas devem ter sido pela metade ou aos pedaços, invertendo as frases, porque quando o baixinho de pernas minúsculas e engolidas pelo imenso calção branco correu para o balão de couro eu fechei os olhos. Eu pensei: Adeus tia Chica.
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Antes que seu pé direito esbofeteasse a bola assim como quem bate na cara do rival  mostrando quem realmente manda na prostituta, eu fechei e abri os olhos mais de dez vezes.
Só ouvia o trote do ponteirinho em direção ao balão de couro, seu imenso calção branco parecia que não tinha pernas, se ouvia a respiração do nosso Paulinho debaixo da goleira, na fronteira de Erechim, e lá de longe, vinha o barulho das águas do Abaúna. No céu azul, até o sol se deixou encobrir quase todo, provavelmente atlantista – não queria nem ver aquela cena. Ficara só com uma frestinha, expiando, porque aquele pênalti nem ele, podia perder.
Ainda num ato derradeiro e pessoal acho que botei o Paulinho ao lado de Deus, ou seria o contrário, como que querendo sob todos os impedimentos imaginários e possíveis – não permitir que aquele esférico de couro já lascado, passasse pelo Paulinho, furasse nossa fronteira, beijasse aquelas redes esbranquiçadas e se alinhasse no nosso último reduto.
Eu vi dezenas, centenas, milhares de pênaltis – não, milhares e nem centenas, menos, menos -, mas já vi sim, dezenas de pênaltis serem batidos para fora, ou no poste, ou nas nuvens. Quantas vezes vi o Paulinho, que até no Internacional jogou - defender pênaltis nos treinos do Atlântico. Em todas as marcas de pênalti, de todos os campos naquele tempo, havia um buraco. A bola quase nem se via – Santo Deus. Quantas e quantas vezes chutaram o chão e o gol não saiu!? Por que naquele dia, ali, aquele baixinho, haveria de pegar bem na bola e por que não poderia tentar colocar fraco? No canto do Paulinho? Ou a desgraçada bater na trave e sair? Por que não poderia aquele debochado ser castigado e desferir um balaço para fora, metendo a bola lá nas corredeiras do Abaúna e com as águas raivosas se escafedesse até nunca mais ser encontrada? Na lateral, o lateral do lance impensado porquanto quase infantil, se não engano - chorava.
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Mas quando as pernas tortas chegaram e o pé direito do Tuta agrediu a bola foi um “tuuummm” só;  seco. E não se ouvia mais o barulho das águas do Abaúna, o sol escondeu-se num milésimo de segundo atrás de uma nuvem como que – quem diz, não vi o que vi. Nem ele acreditava. Passarinhos e dezenas de outras aves se assustaram com a explosão da torcida do 14 - e levantaram voo dos arredores do campo do Taguá para não se sabe aonde. O foguetório foi tanto que uma fumaça parou a retomada da partida no velho Plácido Scussel – até ele assustado com o tamanho do evento.

O nosso goleiro Paulinho estava caído no canto direito da nossa última e extremada fronteira com o calção preto - marrom de poeira e um pedaço pintado com a cal branca do risco final. O balão de couro se aninhara rasante no centro do gol com espantosa violência, assim como um daqueles aviões do Taliban, que quando parecia que ia desviar de uma das torres do WTC, de repente, se redirecionou, e se mirou bem no meio do prédio – no meio para não errar o alvo e com o máximo de velocidade e violência – explodir tudo à sua frente provocando destruição jamais vista.
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Foi, sem nenhuma dúvida, não um gol. Foi sim, claro, um legítimo atentado contra o Atlântico. Como acreditar que aquele timaço poderia ser atingido e, derrubado, por um balaço de um atacante de mais ou menos um metro e meio de altura ou sei eu lá de quanto mais? - vestido de vermelho e com a número 7 às costas? Sim – aquele baixinho de pernas tortas e que a gente sempre desconfiara - foi o "nosso" algoz e do qual a Grande Nação Verde-Rubra deveria ter se prevenido com tudo quanto pudesse;  acionando todos seus arsenais de defesa que dispusesse porque ele tinha cara, tinha jeito e sempre dera demonstrações, tinha passado, de não simpatizar com o Atlântico. Era no fundo, inimigo do Galo e um dia, se assim os tempos lhe oferecessem, seria seu algoz. Como foi. E num episódio simplesmente histórico. Como também foi. Um evento histórico. Como foi e ficou.
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Muitos de nós – choravam. As mulheres agarradas à tela e que não paravam de xingar o juiz com palavras que mais tarde do tempo, ficaria sabendo também serem palavrões – não fumavam mais. Elas comiam os Tufumas e os Belmontes. “Vamo Índio... Vamo Carioca. Juiz f.d.p. Tua mãe tá... Agora, Índio, mete, mete, bate”. A zaga do 14 prensava a bola, toda vez que o Atlântico ia puxar o gatilho, e quando caía no pé do Santarém então – tinha que começar tudo de novo. Ele jogava apenas – demais. Acelerava, cadenciava ou simplesmente parava o jogo. Para os padrões regionais – um craque. O número 10 do 14. Até tirar a bola dele, pra recomeçar atacar de novo; o ponteiro dos minutos no relógio já estava tonto de tantas voltas.
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A despeito de toda as forças e de todos os meios e de todas as tentativas intentadas dali em diante até o apito final daquela jornada, o Atlântico não conseguira se refazer, e nem mudar o placar da dor impensada, jamais imaginada. Quando parecia que o Índio ia empatar tudo, selando atentado por atentado, surgia alguém do 14 e o balão de couro se perdia por entre os enormes eucaliptos, que se dobravam devolvendo brisa para aliviar quem sofria de dor ou de ansiedade. Até a bola, parecia que estava de complô contra o meu Atlântico - porque depois do pênalti, inúmeras vezes ela subia, subia, subia e depois, caía, caía, e vinha, devagar, muito devagarinho, batendo de galho em galho, demorando para voltar e rolar, ou voar para bem longe, de novo. Aquela bola de couro cru, com certeza, era de Passo Fundo.
Havia ônibus por tudo quanto era canto. Na Irmão Gabriel Leão e na Senador Salgado Filho a gente corria para dentro dos coletivos encolhendo a cabeça, fugindo dos foguetes que estouravam perto das nossas orelhas, largados pela torcida do 14. Perdemos numa infelicidade, era o nosso consolo. Ou – seria, em verdade, perdemos porque desligamos por um piscar de olhos e por isso mesmo, a nossa cruz ficou ainda mais pesada.
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Na volta as bandeiras não tremulavam mais. Estavam no corredor do ônibus. Não sei quantos f.d.p. foram ditos por quantas bocas – lamentando o lamento eternizado daquele lance, o legítimo lance sem explicação. Deu um branco, uma indecisão na hora decisiva no nosso lateral. Nem sonhando aquilo seria possível – mas parece que era o que tinha acontecido há uma, duas horas atrás, recém. Não havia replay. E na cabeça de cada atlantista, o lance ganhava contornos diferentes. Todos trágicos.
Fui dormir naquela noite ali na Jerônimo Teixeira, ao lado da Baixada Rubra – o sono dos abandonados por Deus. Ele estava conosco a semana inteira e dizia-me sempre, sim eu ouvia o Idylio Badalotti, o Tramontini, e o Dartagnan Pereira então, Santa Mãe, eles disseram e até repetiram a semana inteira que time por time o Atlântico era superior e mais que isso, só não diziam, porque seria uma falta de respeito – mas deixavam a gente pensar e sonhar que o Atlântico era imbatível naquela final. Só... se acontecesse algo fora do comum. Só se ocorresse uma tragédia. Só se... E não é que... Era só cuidar do Santarém, do Meca, do Rebechi e principalmente, do... do... do Tuta – aquele baixinho que se mexia e se colocava rapidamente. Fiquei com a impressão que tinha mania de argentino, era o que se dizia depois do jogo principalmente, e se estivesse ganhando o jogo então – a partida não andaria mais. E, além disso – ele ria e debochava. Será verdade ou isso veio ao longo do tempo por conta da raiva que fiquei. Por que ele não bateu aquele pênalti como o Baggio!?
Sim – eu dormi ou acho até hoje que dormi - mas na verdade, aquela derrota surpreendente, considerando os analistas da época; acordou comigo na segunda-feira e até hoje está na minha cabeça e, comigo irá, para o céu ou para os quintos dos infernos quando eu fizer como o sol e, num relance - me esconder para todo o sempre atrás de uma nuvem, que não só me encobrirá como haverá de me levar embora. Para sempre. (Se a minha cabeça ainda funciona, foi mais ou menos assim que tudo aconteceu lá em... 1961).  

PSComo reza o melhor “Manual das Rivalidades”, no ano seguinte, em 1962, o Ypiranga foi buscar o algoz do rival, Atlântico. Aí veio o troco. Tuta jogou quatro Atlangas com a camisa do Ypiranga. Empatou um e perdeu três. Mas nada, nada foi pior do que aquela derrota na “negra” em Getúlio. Dos Atlangas que ele perdeu, só pesquisando, encontrei. Mas aquela derrota, nunca me saiu da cabeça. O Tuta está na história do Atlântico como seu carrasco em uma decisão com a camisa do grande 14 de Julho de Passo Fundo. Por onde andará aquele pequeno/grande jogador – ao menos naquela decisão!? O “tuuummm” ainda está comigo.

PS - Inacreditavelmente encontrei uma foto do Tuta. E, pela foto, agachado, não era tão baixinho como o texto faz crer. Mas da linha de ataque era o mais baixo. De memória, porém, me parecia um atacante de porte físico pequeno - muito rápido. 


quinta-feira, 23 de abril de 2020

Leninha e a cueca do Valdelírio



(Nomes fictícios)
1
- Leninha! Ô - Leninha! Tu não viu a minha cueca listrada, a largona, gritou do quarto, o Valdelírio.
- Não só vi como não aguentava mais o chero. Tá no tanque pra vê se desencarde... ou, que ao menos, saía aquele fedor.
- Cadela! – vociferou, baixinho, Valdelírio. E prosseguiu: “Tu não sabe que essa é a única que não me aperta? A sem bodega me gruda toda.
Valdelírio se vestiu e ao passar pela cozinha onde Leninha mexia o feijão numa panela de uma alça só, avançou mais: “será que tu não sabe que a listrada, nem que teja suja, é a cueca que eu mais gosto? Tu tem que arrumá alguma coisa pra me dexá lôco. Ô - seca!”.
Mas pra quê! Quando o “caiu” saltou da boca suja do Valdelírio, logo contra a Leninha – uma ainda quase adolescente; Leninha não se conteve e entre gritos e choros - atirou a panela de feijão contra o marido. Valdelírio se esquivou como Ali fez com Foreman na luta do século, no então Zaire em 1974; bateu a porta da casinha de 33 metros quadrados comprada em um projeto social da prefeitura e saiu gritando: “cadela, infeliz, e se foi.
Leninha deixou-se cair sentada no sofá rasgado e chorava mais que recém curado milagrosamente n’algumas igrejas da TV. Os feijões escorriam da parede e a chama na boca do fogão fazia flap, flap, flaaap, flap, denunciando que o gás estava no fim.
Valdelírio que nem levou a marmita, ficou na obra onde puxava tijolo e concreto num carrinho de mão. Leninha perdeu a fome e fez uma espécie de retiro espiritual naquele dia.
Na verdade, ambos, órfãos de uma vida sem perspectivas formavam uma dupla que se completava em termos econômicos, sociais e culturais e de - carências. Como ninguém os quis deram-se um ao outro, ou, pegaram-se um ao outro. Nenhum deles tinha o antigo 1º grau, e encontraram-se na vida contornando as esquinas das suas dificuldades e urgências de todas as sortes e azares, numa noite quando sapiavam no Passarella sem um tostão no bolso.
No dia seguinte quando se reencontraram ao som do Vuco-Vuco plagiado por uma banda de segunda no salão da comunidade, saíram já pensando em aliança e como uma linda e pobre família – acalentar o sonho da felicidade mesmo que divorciada das mínimas condições para arquitetar com alguma chance de êxito um projeto desta envergadura.
Conseguiram a casainha num sorteio da prefeitura no 25, a R$ 99 por mês, juntaram suas misérias e foram morar juntos. No começo, como todos os começos, independente do cheiro do feijão ou da cor da cueca; foram de fato, felizes. Mas como sempre acontece ao fim de cada dia desses enlaces pouco pensados, “altamente emocionais” como diria o visionário Jaci De Lazzari, menos de um ano depois veio a noite. A noite da rotina! E assim passaram da monotonia a ignorar um ao outro. Nesta fase, qualquer coisa fora do lugar, qualquer olhada sem aviso, qualquer palavra mal dita – mesmo quando por uma cueca que Valdelírio queria botar, mas Leninha a tinha ensaboada no tanque -, era motivo para ofensas tão inomináveis que são impublicáveis neste espaço, isso, sem contar as tentativas de agressões físicas que eram cada vez mais frequentes. Não tivessem liberado a construção civil por esses dias, nestes tempos de coronavírus, provavelmente hoje, não haveria um dos dois.
Mas – Leninha não tinha quem desse um tostão furado por ela, enquanto que Valdelírio tirou a sorte grande ao encontrar uma adolescente que lhe desse sem pagar - tantos prazeres, principalmente na cama, lhe cozinhasse um feijão tão bem temperado com orelha de porco e espinhacinho, e, ainda por cima, lhe lavasse suas duas cuecas.
4
E foi assim, que naquela tarde, distanciados; ambos foram se acalmando e percebendo que sozinhos não eram nada. No meio tarde, Leninha, sem almoço, largou a xícara de alça quebra onde fazia o chimarrão, foi tomar um banho e se arrumou como poucas vezes na vida o fizera, para receber Valdelírio na porta da casinha. Chegou até a vasculhar se ainda tinha aquela garrafa de vinho do Slongo – mas o Valdelírio tinha tomado tudo. Até o garrafão estava vazio e empoeirado. Correu aentão até o barzinho da esquina e comprou duas garrafas de “Lágrimas do Uruguai” que ninguém levava há anos.
De outra sorte, Valdelírio, se dava socos na cabeça, arrependido pelas ofensas à sua amada. E como nenhum deles tinha melhor lugar para ir do que para a casinha do projeto social; às 4 da tarde, ambos já sentiam a falta um do outro, remorso; e olhavam as horas no celular de cartão à espera do ônibus da empresa Gaurama. Ardiam de arrependimento em lados opostos da cidade, de tanta vontade, de urgência de se verem, se encontrarem, se abraçarem, se...
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Naquela noite sem gás e sem feijão, o bico de 40 velas da luz do quartinho, foi visto aceso e vermelho, enquanto que a cueca apertada do Valdelírio dormiu no sofá-cama xadrez da sala que o casal tinha comprado numa loja de móveis usados em 18 vezes de R$ 8,99. A vizinhança que fizera de contas que nada tinha visto, agora cacarejava à voz baixa, provavelmente tentando diminuir a felicidade que abraçava o sono do casal. A inveja saltou de uma janela de onde se ouviu: “por Deus - se eles de novo se ameaçá matá – aí vô eu mesma buscá a Brigada!”.
6
No outro dia nenhum dos dois disse uma palavra – só uma verdade muda descansava: “nada como uma boa briga entre um casal sem perspectivas ou com, para fazer ressuscitar em estilo de ouro, incenso, mirra e pimenta do reino; a faísca que os mantém inseparáveis”, mesmo quando uma cueca listrada e suja incorpore o estopim que pode fazer explodir o paiol das melhores famílias. Nisso eram sábios. Valdelírio colocou pão e salame na sacolinha, beijou Leninha, fechou o portãozinho e acendeu um cigarro paraguaio até a parada do ônibus. Lá encontrou o Paulão, seu parceiro da obra no Redenção: “Hein Valde,, agora só farta abri os bar”, ajuntou o parceiro.
Na casinha, Leninha faxinava como só uma boa dona de casa, feliz, sabe faxinar, ainda mais quando os motivos a afagam e se acendem sob os lençóis na madrugada. O rádio portátil trazia ora o Erico Martins, ora o Edilon Flores; com as novidades da polícia. Às 9h30min decidiu pedir à vizinha se podia cozinhar o feijão do dia no fogão dela, uma vez que o “seu” Valdelírio, como prometera no alto do amor da noite anterior, sábado, assim que recebesse o vale da semana, compraria sim um botijão de gás para a “sua” Leninha.
7
Às vezes, quase sempre todas às vezes, nada como uma boa briga, quanto pior – melhor, para reascender, para reanimar os próprios anfitriões de todos os começos. Sem dúvida que a rotina cansa, enjoa e até satura. Mas feliz de quem sai a caminhar, sem apelar aos extremos, em todos os tempos; especialmente hoje em dia com essa pandemia de “encarceramento” de Leninhas e Valdelírios. 
Quem passar por esse tempo e, ao descortino da “nova normalidade”, como tem se tornado moda falar -, pois quem chegar a esse ponto, sem ter de se esquivar de um palavrão ou sem ter de limpar o feijão da parede, pode se considerar um felizardo. É como se fosse um assintomático ao Covid 19.
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Mas, à bem da verdade, e os números de aumento de casos de violência doméstica mostram isso em todo o país; quando não matam, quase sempre, as pauladas mais fortes, as desavenças mais perigosas, as reações mais insuperáveis, como disse – quando não matam -, podem se transformar como o veneno de serpentes, no soro, na fé e na luz que devolve a vida para a vida, renovando sonhos. Para tanto, não obstante, é preciso que dentro de cada um, repouse ainda que aquietado, ao menos um fio de querer de um pelo outro. O caso que rondou a perigosa faixa da tragédia, da Leninha com a cueca listrada, larga e suja do Valdelírio, não me deixa mentir.

domingo, 19 de abril de 2020

Bergamotas da Baixada Rubra



 I

Se viver de passado é ser museu...
sou peça,
mas, única, não sou.

Se recordar é viver,
estou vivo
e vivo a vida.
“deixa a vida me levar...!”.

II

Quando a Baixada Rubra era o fim da cidade,
pois, além só havia em destaque
a Legião com suas 300 casinhas, o presídio
e a zona do meretrício;
aquele estádio era um templo sagrado.

Lá,
as tardes de domingo das vésperas
de primavera,
hoje caberiam num quadro.
Uma tarde assim em bela moldura
– seria peça de magia, beleza e encanto.
E hoje é domingo.

III

De manhã havia rezado na São Pedro,
de joelhos e a cabeça vergada
- para que o meu Atlântico,
o Atlântico do meu pai – o “seu Alberto”,
que... se não ganhasse,
ao menos não perdesse à tarde.

Depois ia direto para o bazar do
“seu Aldinho” ou Aldino - ver a capa
dos Roy Rogers e do Zorro.
Calças curtas plaf, plaf, plaf, plaf
contra o vento lá ia eu ver os cartazes
do Ideal e do Luz.

No de cima – o Ideal – “007 Contra
o Satânico Dr. No!”.
No debaixo, o Luz, “A primeira Noite de Homem”.
Na banca da Salete homens altos
deixavam engraxar os sapatos
enquanto acendiam Belmontes
e Hollywwods.
Agora já eram 11 horas.
Não, não haveria de chover.

IV
Mas, e se chovesse,
Santo Deus, como o Índio
acertaria o tiro?
E se o Noronha sempre tão prudente,
tão cauteloso, sempre pisando em, em...
ovos, sem quebrar a bola,
como ele haveria de empurrar o balão
de couro com segurança,
driblando a poça d’água?!

E se o Paulinho patinasse sobre a linha,
e resvalasse e a, a,
a maldita atravessasse – sem nenhuma licença a linha, e aí, sem mais nem menos, gol...
e, e... fim?
Não... aquelas grossas e negras nuvens
eram puro frio,
só podia e assim ficaria à tarde.

V

Ao meio dia os portões da Baixada
se fechavam.
Entrar de graça?
– só pulando a cerca ou...
se eu buscasse com o Pedrinho,
o uniforme do Galo
lá na dona Rosina, ali perto do Dal Prá.
Que ironia: a lavadeira da história
do Atlântico vista pelas suas camisas,
pelos seus calções, pelas suas meias
e sungas – era vizinha do pai do Toninho,
uma espécie de pai do Ypiranga.
Os calções do Atlântico, brancos,
branquinhos, engomados e aquele barral
- se de fato viesse chuva.
Que pecado botar esses calções,
lamentava de dó!

À noite, aqueles calções alvos como
penas dos anjinhos que enfeitam
as romarias de Fátima estariam
vergados, murchos, abatidos,
surrados, desfigurados
- açoitados pela lama.

Mas, mas... se fosse ao menos
pelo 1 a 0 ou pelo 2 a 1 pra nós!?
– que a dona Malvina lavasse
os calções com a alegria de sempre
durante a semana.

VI

Meio dia e meia e os vendedores
de tudo – comparado a hoje, nada -,
já passavam em frente de casa
em frente ao Mantovani.

Às duas - Jeepes, Simcas, Rurais,
Baratas Ford,  Gordinis,
Alfa Romeos, Fucas
e Decavês iam se encostando um
ao lado do outro, um atrás do outro
na Jerônimo Teixeira e na Nelson Ehlers.
Estranho?! – não havia flanelinhas,
nem guardas.
E nem roubos!
Bem antes de tudo – até na área onde viria
o Mantovani os carros descansavam.
E cá pra bem da verdade: nada comparado
a hoje.

VII

Na frente do portão do Atlântico,
meu tio Leonardo
com seu defeito de nascença em
uma das mãos que a deixava
em forma de gancho oferecia laranjas,
e as mais encorpadas,
vistosas, carnudas e doces bergamotas
do “mundo – altouruguaianense” ao menos.

Vindas da costa do Uruguai tinham
o ar, a pose, a presença, a atração,
o deboche da imponência que só
as mais lindas top-models têm,
quando desfilam hoje pelas passarelas
da globalização.

Para desespero do tio Leonardo,
as bergamotas tinham
defeito: eram amarelas,
amarelinhas, como a camisa do histórico rival,
o Ypiranga.
Não bastando lindamente amarelinhas,
vinham enganchadas e balançando
num galhinho com folhas verdinhas...
Na frente do portão da Baixada verde-rubra,
as bergamotonas do tio – amarelinhas
com decoração esverdeada
- já ali, um Atlanga?!

VIII

Os torcedores chegavam.
Se precipitavam.
Brotavam e se juntavam.
Rádios Saturnos sob o braço,
e almofada vermelha na mão.

Primeiro a fila do ingresso.
Depois, em volta do caminhãozinho do tio
e logo os bolsos compridos das calças
frisadas de tergal
se enchiam de bergamotas até os joelhos.

A carroceria da caminhoneta pendia
com a carga e parecia ser só questão
de minutos, virar.
As cascas amarelas pintavam o chão úmido
e barrento da chuva da noite passada.
Casconas boiavam sobre uma que outra
lâmina de poça.

Era shélp, shélp, shélp, shélp...
afundando os Vulcabrás no barro,
e junto, afundando cascas e mais cascas,
e por ironia, a história que hoje me vêm
neste alvorecer de outono.

IX

O ar da Baixada se embriagava
daquele cheiro ácido e doce
das bergamotas quando as unhas compridas
e meio sujas da labuta da semana,
rasgavam a casca que saía quase inteira.

Lacrimejavam olhos quando o ácido
escapava à fúria das unhas, subindo ao ar
com seu cheiro eterno.
Os gomos salientes e firmes, exuberantes
e apetitosos eram como seios juvenis
em peitos adolescentes ávidos de vida por dar
o passo, desfazer a curiosidade
e matar a sede da ânsia incontida.   

X

Homens, mulheres e guris
agora despencavam de todos os lados
até a Baixada.
Num vap-vup, as filas do ingresso
e das bergamotas,
tinham se ido para o pavilhão verde-rubro.

Sumiam os atlantistas por entre
as duas colunas de coqueiros que levavam
ao pavilhão.
Onde foram parar os coqueiros plantados
a planejamento no hall da Baixada?
Pecado. Ah, quantos pecados!

Havia quem preferisse as longas
e envergadas arquibancadas de tábuas
atrás da goleira,
sob a sombra dos pés de Uva-Japão.

XI

Ao redor do alambrado,
O “seu Graví”
 - com a cestinha de amendoim
atraía a gurizada
e declamava: “os amarelo que hoje
se cuide/por que a cobra vai fumá/
é trêis a zero pro Atrântico...
eeeeeeeeeee.... não tem nada não/
vai sê um beeeem de saída
do Tomasi/
e dois golo do Pinhão!”.

Eeeeeeeaaaaaaaaaahhhhhhhh
– respondia a galera no entorno do “seu Graví”,
atlantino velho, velho atlantino,
que se lambuzava com o próprio cuspe
da sua risada que lhe brotava da boca
quase sem dentes
com os versinhos improvisados e
de puro amor por seu time do coração.

XII

Quando a bola rolava,
lá pelas 3 e meia e o Chiochetta
de tanto esfregar as mãos,
era como se a vida tivesse parado
lá fora: o hall da Baixada era um deserto
só apesar do dia cinzento,
enlameado, meio frio e com cheiro
de bergamota inundando o ar.
...e “Avante,
vamos para a luta...”.

Que frio era aquele que lambia minhas tripas
e as orelhas nos segundos tempos,
quando o sol já não tinha mais forças
para varar os galhos úmidos e
as folhas amareladas dos incontáveis
pés de Uva-Japão,
atrás da goleira “de cima’”que dava
para as bochas do Alemão Preto?

XIII

E o Lau – lembram?
O Lau que caminhava de um lado
para o outro atrás da goleira do Miguel,
do Paulinho, do Poppy, do Valdir...
de quem estivesse na guarda do gol
do Atlântico!
Queria ele ajudar a defender.
Tenho certeza que sim.
“Salve
o nosso pavilhão...”.

XIV

E quando ao final dos 90 e tantos
com o sol já caindo por detrás
do pavilhão e a segunda-feira
já acenando na despedida da domingueira,
mil, dois mil, três mil
se levantavam na Baixada,
e,
eufóricos ou resignados
se iam pisando as cascas amarelas
e barrentas,
das mais belas bergamotas
daqueles fins de outono e invernos dos anos 60.

Seria só o fim de uma tarde de fim
de inverno – ou apenas mais
um capítulo de uma história,
que como a história, não vai embora
e fica!?

Eu olhava: quanto tempo
o Dartagnan levaria para recolher
aqueles quilômetros de fios
agora molhados e embarrados!?

XV

“Na vitória
ou na derrota/
honremos nossa tradição...”
Almofadas esquecidas,
jornais voando ao vento,
ficavam
como testemunhas a conferir
as razões do desastre da derrota,
ou para rever de onde mesmo,
de onde foi,
afinal,
que o Pinhão empurrara para o fundo
das redes,
aos 43 do 2º tempo,
o tento da vitória,
bem como o “seu Graví” prenunciara
em versos.

XVII

“Atlântico,
tu és poderoso/
conquistando vitórias com ardor
teu símbolo é belo  grandioso
inspira confiança e amor”.

XVIII

E quando o domingo se fechava
de vez,
todos os Gordinis, Baratas, Rurais
e Decavês já tinham ido embora.
Uns para os bares da redondeza,
outros para o aconchego do lar,
outros mais deslizavam uma quadra
para festejar a vitória ali na zona
do meretrício; que assim, aos ouvidos
de hoje, soa como velho
santuário de mulheres
que compreendiam os homens
e lhes ajudavam a ser mais felizes.
E tudo, sem explorações descabidas.
Meia dúzia de Serramaltes bastavam
para a volta olímpica no quartinho
onde a bacia da higiene dormia
quieta num cantinho,
sob luz encarnada,
enquanto o Vicente Celestino cantava
na vitrolinha: “Tornei-me um ébrio e na bebida busco esquecer
/Aquela ingrata que eu amava e que me abandonou
/Apedrejado pelas ruas vivo a sofrer
/Não tenho lar e nem parentes, tudo terminou...”.

XIX

Hoje em dia não tem mais Baixada Rubra.
A Legião foi expulsa para fundar
a Florestinha e fez nascer
o embrião do Progresso
– o Cachorro Sentado.
Jogadores, dirigentes e torcedores
se disperçaram.
Foram embora.
Morreram ou se extraviaram pelo mundo.
Pela vida!
Os carros daqueles tempos morreram.
Aquele Atlântico morreu.
Até as bergamotas trocaram de cor.
Agora elas são doces, porém,
não são mais, na sua maioria,
amarelas.
Agora elas vêm mais cedo
– muitas delas o ano todo
pintadas de verde,
mas ainda guardam um corpo esbelto
com casca de presença.

XX

Só ficaram lá onde era o campo do Atlântico,
num olhar de memória,
a escuridão,
o ar gelado,
alguns eucaliptos,
as bochas – também esquecidas
esquecidas,
e talvez os fantasmas do “seu Graví”,
do meu tio Leonardo, do Índio e do Lau.
Lá ficou o jeito e a cara da segunda
batendo no fim do domingo,
e o cheiro ácido e doce das bergamotas
de junho, de julho, de agosto e de setembro
e que hoje dão as caras mais cedo
- bem mais cedo, como agora em abril.
Toda vez passo por lá,
Sinto o cheiro eterno
das bergamotas da Baixada  Rubra.
Tudo o mais – morreu
ou, foi escondido sob o cobertor pesado
do tempo que não se deixa levantar.
Quem quiser reviver, que feche os olhos e
relembre.
É tudo que restou.