Se viver de passado é
ser museu...
sou peça,
mas, única, não sou.
Se recordar é viver,
estou vivo
e vivo a vida.
“deixa a vida me
levar...!”.
II
Quando a Baixada Rubra
era o fim da cidade,
pois, além só havia em
destaque
a Legião com suas 300
casinhas, o presídio
e a zona do
meretrício;
aquele estádio era um
templo sagrado.
Lá,
as tardes de domingo
das vésperas
de primavera,
hoje caberiam num
quadro.
Uma tarde assim em
bela moldura
– seria peça de magia,
beleza e encanto.
E hoje é domingo.
III
De manhã havia rezado
na São Pedro,
de joelhos e a cabeça
vergada
- para que o meu
Atlântico,
o Atlântico do meu pai
– o “seu Alberto”,
que... se não
ganhasse,
ao menos não perdesse
à tarde.
Depois ia direto para
o bazar do
“seu Aldinho” ou
Aldino - ver a capa
dos Roy Rogers e do
Zorro.
Calças curtas plaf,
plaf, plaf, plaf
contra o vento lá ia
eu ver os cartazes
do Ideal e do Luz.
No de cima – o Ideal –
“007 Contra
o Satânico Dr. No!”.
No debaixo, o Luz, “A
primeira Noite de Homem”.
Na banca da Salete
homens altos
deixavam engraxar os
sapatos
enquanto acendiam
Belmontes
e Hollywwods.
Agora já eram 11
horas.
Não, não haveria de
chover.
IV
Mas, e se chovesse,
Santo Deus, como o
Índio
acertaria o tiro?
E se o Noronha sempre
tão prudente,
tão cauteloso, sempre
pisando em, em...
ovos, sem quebrar a
bola,
como ele haveria de
empurrar o balão
de couro com
segurança,
driblando a poça
d’água?!
E se o Paulinho
patinasse sobre a linha,
e resvalasse e a, a,
a maldita atravessasse
– sem nenhuma licença a linha, e aí, sem mais nem menos, gol...
e, e... fim?
Não... aquelas grossas
e negras nuvens
eram puro frio,
só podia e assim
ficaria à tarde.
V
Ao meio dia os portões
da Baixada
se fechavam.
Entrar de graça?
– só pulando a cerca
ou...
se eu buscasse com o
Pedrinho,
o uniforme do Galo
lá na dona Rosina,
ali perto do Dal Prá.
Que ironia: a
lavadeira da história
do Atlântico vista
pelas suas camisas,
pelos seus calções,
pelas suas meias
e sungas – era vizinha
do pai do Toninho,
uma espécie de pai do
Ypiranga.
Os calções do
Atlântico, brancos,
branquinhos, engomados
e aquele barral
- se de fato viesse
chuva.
Que pecado botar esses
calções,
lamentava de dó!
À noite, aqueles
calções alvos como
penas dos anjinhos que
enfeitam
as romarias de Fátima
estariam
vergados, murchos,
abatidos,
surrados, desfigurados
- açoitados pela lama.
Mas, mas... se fosse
ao menos
pelo 1 a 0 ou pelo 2 a 1 pra nós!?
– que a dona Malvina
lavasse
os calções com a
alegria de sempre
durante a semana.
VI
Meio dia e meia e os
vendedores
de tudo – comparado a
hoje, nada -,
já passavam em frente
de casa
em frente ao
Mantovani.
Às duas - Jeepes,
Simcas, Rurais,
Baratas Ford,
Gordinis,
Alfa Romeos, Fucas
e Decavês iam se
encostando um
ao lado do outro, um atrás
do outro
na Jerônimo Teixeira e
na Nelson Ehlers.
Estranho?! – não havia
flanelinhas,
nem guardas.
E nem roubos!
Bem antes de tudo –
até na área onde viria
o Mantovani os carros descansavam.
E cá pra bem da
verdade: nada comparado
a hoje.
VII
Na frente do portão do
Atlântico,
meu tio Leonardo
com seu defeito de
nascença em
uma das mãos que a
deixava
em forma de gancho
oferecia laranjas,
e as mais encorpadas,
vistosas, carnudas e
doces bergamotas
do “mundo –
altouruguaianense” ao menos.
Vindas da costa do
Uruguai tinham
o ar, a pose, a
presença, a atração,
o deboche da
imponência que só
as mais lindas
top-models têm,
quando desfilam hoje
pelas passarelas
da globalização.
Para desespero do tio
Leonardo,
as bergamotas tinham
defeito: eram
amarelas,
amarelinhas, como a
camisa do histórico rival,
o Ypiranga.
Não bastando
lindamente amarelinhas,
vinham enganchadas e
balançando
num galhinho com folhas
verdinhas...
Na frente do portão da
Baixada verde-rubra,
as bergamotonas do tio
– amarelinhas
com decoração
esverdeada
- já ali, um Atlanga?!
VIII
Os torcedores
chegavam.
Se precipitavam.
Brotavam e se
juntavam.
Rádios Saturnos sob o
braço,
e almofada vermelha na
mão.
Primeiro a fila do
ingresso.
Depois, em volta do
caminhãozinho do tio
e logo os bolsos
compridos das calças
frisadas de tergal
se enchiam de
bergamotas até os joelhos.
A carroceria da
caminhoneta pendia
com a carga e parecia ser
só questão
de minutos, virar.
As cascas amarelas
pintavam o chão úmido
e barrento da chuva da
noite passada.
Casconas boiavam sobre
uma que outra
lâmina de poça.
Era shélp, shélp,
shélp, shélp...
afundando os Vulcabrás
no barro,
e junto, afundando
cascas e mais cascas,
e por ironia, a
história que hoje me vêm
neste alvorecer de
outono.
IX
O ar da Baixada se
embriagava
daquele cheiro ácido e
doce
das bergamotas quando
as unhas compridas
e meio sujas da labuta
da semana,
rasgavam a casca que
saía quase inteira.
Lacrimejavam olhos
quando o ácido
escapava à fúria das
unhas, subindo ao ar
com seu cheiro eterno.
Os gomos salientes e
firmes, exuberantes
e apetitosos eram como
seios juvenis
em peitos adolescentes
ávidos de vida por dar
o passo, desfazer a
curiosidade
e matar a sede da
ânsia incontida.
X
Homens, mulheres e
guris
agora despencavam de
todos os lados
até a Baixada.
Num vap-vup, as filas
do ingresso
e das bergamotas,
tinham se ido para o
pavilhão verde-rubro.
Sumiam os atlantistas
por entre
as duas colunas de
coqueiros que levavam
ao pavilhão.
Onde foram parar os
coqueiros plantados
a planejamento no hall
da Baixada?
Pecado. Ah, quantos
pecados!
Havia quem preferisse
as longas
e envergadas
arquibancadas de tábuas
atrás da goleira,
sob a sombra dos pés
de Uva-Japão.
XI
Ao redor do alambrado,
O “seu Graví”
- com a cestinha de amendoim
atraía a gurizada
e declamava: “os
amarelo que hoje
se cuide/por que a
cobra vai fumá/
é trêis a zero pro
Atrântico...
eeeeeeeeeee.... não
tem nada não/
vai sê um beeeem de
saída
do Tomasi/
e dois golo do Pinhão!”.
Eeeeeeeaaaaaaaaaahhhhhhhh
– respondia a galera
no entorno do “seu Graví”,
atlantino velho, velho
atlantino,
que se lambuzava com o
próprio cuspe
da sua risada que lhe
brotava da boca
quase sem dentes
com os versinhos
improvisados e
de puro amor por seu
time do coração.
XII
Quando a bola rolava,
lá pelas 3 e meia e o
Chiochetta
de tanto esfregar as
mãos,
era como se a vida
tivesse parado
lá fora: o hall da
Baixada era um deserto
só apesar do dia
cinzento,
enlameado, meio frio e
com cheiro
de bergamota inundando
o ar.
...e “Avante,
vamos para a luta...”.
Que frio era aquele
que lambia minhas tripas
e as orelhas nos
segundos tempos,
quando o sol já não
tinha mais forças
para varar os galhos
úmidos e
as folhas amareladas
dos incontáveis
pés de Uva-Japão,
atrás da goleira “de
cima’”que dava
para as bochas do
Alemão Preto?
XIII
E o Lau – lembram?
O Lau que caminhava de
um lado
para o outro atrás da
goleira do Miguel,
do Paulinho, do Poppy,
do Valdir...
de quem estivesse na
guarda do gol
do Atlântico!
Queria ele ajudar a
defender.
Tenho certeza que sim.
“Salve
o nosso pavilhão...”.
XIV
E quando ao final dos
90 e tantos
com o sol já caindo
por detrás
do pavilhão e a
segunda-feira
já acenando na
despedida da domingueira,
mil, dois mil, três
mil
se levantavam na
Baixada,
e,
eufóricos ou
resignados
se iam pisando as
cascas amarelas
e barrentas,
das mais belas
bergamotas
daqueles fins de outono
e invernos dos anos 60.
Seria só o fim de uma
tarde de fim
de inverno – ou apenas
mais
um capítulo de uma
história,
que como a história,
não vai embora
e fica!?
Eu olhava: quanto
tempo
o Dartagnan levaria
para recolher
aqueles quilômetros de
fios
agora molhados e
embarrados!?
XV
“Na vitória
ou na derrota/
honremos nossa
tradição...”
Almofadas esquecidas,
jornais voando ao
vento,
ficavam
como testemunhas a
conferir
as razões do desastre
da derrota,
ou para rever de onde
mesmo,
de onde foi,
afinal,
que o Pinhão empurrara
para o fundo
das redes,
aos 43 do 2º tempo,
o tento da vitória,
bem como o “seu Graví”
prenunciara
em versos.
XVII
“Atlântico,
tu és poderoso/
conquistando vitórias
com ardor
teu símbolo é
belo grandioso
inspira confiança e
amor”.
XVIII
E quando o domingo se
fechava
de vez,
todos os Gordinis,
Baratas, Rurais
e Decavês já tinham
ido embora.
Uns para os bares da
redondeza,
outros para o
aconchego do lar,
outros mais deslizavam
uma quadra
para festejar a vitória
ali na zona
do meretrício; que
assim, aos ouvidos
de hoje, soa como
velho
santuário de mulheres
que compreendiam os
homens
e lhes ajudavam a ser
mais felizes.
E tudo, sem
explorações descabidas.
Meia dúzia de
Serramaltes bastavam
para a volta olímpica
no quartinho
onde a bacia da
higiene dormia
quieta num cantinho,
sob luz encarnada,
enquanto o Vicente
Celestino cantava
na vitrolinha: “Tornei-me
um ébrio e na bebida busco esquecer
/Aquela ingrata que eu
amava e que me abandonou
/Apedrejado pelas ruas
vivo a sofrer
/Não tenho lar e nem
parentes, tudo terminou...”.
XIX
Hoje em dia não tem
mais Baixada Rubra.
A Legião foi expulsa
para fundar
a Florestinha e fez
nascer
o embrião do Progresso
– o Cachorro Sentado.
Jogadores, dirigentes
e torcedores
se disperçaram.
Foram embora.
Morreram ou se
extraviaram pelo mundo.
Pela vida!
Os carros daqueles
tempos morreram.
Aquele Atlântico
morreu.
Até as bergamotas
trocaram de cor.
Agora elas são doces,
porém,
não são mais, na sua
maioria,
amarelas.
Agora elas vêm mais
cedo
– muitas delas o ano
todo
pintadas de verde,
mas ainda guardam um
corpo esbelto
com casca de presença.
XX
Só ficaram lá onde era
o campo do Atlântico,
num olhar de memória,
a escuridão,
o ar gelado,
alguns eucaliptos,
as bochas – também
esquecidas
esquecidas,
e talvez os fantasmas
do “seu Graví”,
do meu tio Leonardo,
do Índio e do Lau.
Lá ficou o jeito e a
cara da segunda
batendo no fim do
domingo,
e o cheiro ácido e
doce das bergamotas
de junho, de julho, de
agosto e de setembro
e que hoje dão as
caras mais cedo
- bem mais cedo, como
agora em abril.
Toda vez passo por lá,
Sinto o cheiro eterno
das bergamotas da
Baixada Rubra.
Tudo o mais – morreu
ou, foi escondido sob
o cobertor pesado
do tempo que não se
deixa levantar.
Quem quiser reviver,
que feche os olhos e
relembre.
É tudo que restou.