domingo, 19 de abril de 2020

Bergamotas da Baixada Rubra



 I

Se viver de passado é ser museu...
sou peça,
mas, única, não sou.

Se recordar é viver,
estou vivo
e vivo a vida.
“deixa a vida me levar...!”.

II

Quando a Baixada Rubra era o fim da cidade,
pois, além só havia em destaque
a Legião com suas 300 casinhas, o presídio
e a zona do meretrício;
aquele estádio era um templo sagrado.

Lá,
as tardes de domingo das vésperas
de primavera,
hoje caberiam num quadro.
Uma tarde assim em bela moldura
– seria peça de magia, beleza e encanto.
E hoje é domingo.

III

De manhã havia rezado na São Pedro,
de joelhos e a cabeça vergada
- para que o meu Atlântico,
o Atlântico do meu pai – o “seu Alberto”,
que... se não ganhasse,
ao menos não perdesse à tarde.

Depois ia direto para o bazar do
“seu Aldinho” ou Aldino - ver a capa
dos Roy Rogers e do Zorro.
Calças curtas plaf, plaf, plaf, plaf
contra o vento lá ia eu ver os cartazes
do Ideal e do Luz.

No de cima – o Ideal – “007 Contra
o Satânico Dr. No!”.
No debaixo, o Luz, “A primeira Noite de Homem”.
Na banca da Salete homens altos
deixavam engraxar os sapatos
enquanto acendiam Belmontes
e Hollywwods.
Agora já eram 11 horas.
Não, não haveria de chover.

IV
Mas, e se chovesse,
Santo Deus, como o Índio
acertaria o tiro?
E se o Noronha sempre tão prudente,
tão cauteloso, sempre pisando em, em...
ovos, sem quebrar a bola,
como ele haveria de empurrar o balão
de couro com segurança,
driblando a poça d’água?!

E se o Paulinho patinasse sobre a linha,
e resvalasse e a, a,
a maldita atravessasse – sem nenhuma licença a linha, e aí, sem mais nem menos, gol...
e, e... fim?
Não... aquelas grossas e negras nuvens
eram puro frio,
só podia e assim ficaria à tarde.

V

Ao meio dia os portões da Baixada
se fechavam.
Entrar de graça?
– só pulando a cerca ou...
se eu buscasse com o Pedrinho,
o uniforme do Galo
lá na dona Rosina, ali perto do Dal Prá.
Que ironia: a lavadeira da história
do Atlântico vista pelas suas camisas,
pelos seus calções, pelas suas meias
e sungas – era vizinha do pai do Toninho,
uma espécie de pai do Ypiranga.
Os calções do Atlântico, brancos,
branquinhos, engomados e aquele barral
- se de fato viesse chuva.
Que pecado botar esses calções,
lamentava de dó!

À noite, aqueles calções alvos como
penas dos anjinhos que enfeitam
as romarias de Fátima estariam
vergados, murchos, abatidos,
surrados, desfigurados
- açoitados pela lama.

Mas, mas... se fosse ao menos
pelo 1 a 0 ou pelo 2 a 1 pra nós!?
– que a dona Malvina lavasse
os calções com a alegria de sempre
durante a semana.

VI

Meio dia e meia e os vendedores
de tudo – comparado a hoje, nada -,
já passavam em frente de casa
em frente ao Mantovani.

Às duas - Jeepes, Simcas, Rurais,
Baratas Ford,  Gordinis,
Alfa Romeos, Fucas
e Decavês iam se encostando um
ao lado do outro, um atrás do outro
na Jerônimo Teixeira e na Nelson Ehlers.
Estranho?! – não havia flanelinhas,
nem guardas.
E nem roubos!
Bem antes de tudo – até na área onde viria
o Mantovani os carros descansavam.
E cá pra bem da verdade: nada comparado
a hoje.

VII

Na frente do portão do Atlântico,
meu tio Leonardo
com seu defeito de nascença em
uma das mãos que a deixava
em forma de gancho oferecia laranjas,
e as mais encorpadas,
vistosas, carnudas e doces bergamotas
do “mundo – altouruguaianense” ao menos.

Vindas da costa do Uruguai tinham
o ar, a pose, a presença, a atração,
o deboche da imponência que só
as mais lindas top-models têm,
quando desfilam hoje pelas passarelas
da globalização.

Para desespero do tio Leonardo,
as bergamotas tinham
defeito: eram amarelas,
amarelinhas, como a camisa do histórico rival,
o Ypiranga.
Não bastando lindamente amarelinhas,
vinham enganchadas e balançando
num galhinho com folhas verdinhas...
Na frente do portão da Baixada verde-rubra,
as bergamotonas do tio – amarelinhas
com decoração esverdeada
- já ali, um Atlanga?!

VIII

Os torcedores chegavam.
Se precipitavam.
Brotavam e se juntavam.
Rádios Saturnos sob o braço,
e almofada vermelha na mão.

Primeiro a fila do ingresso.
Depois, em volta do caminhãozinho do tio
e logo os bolsos compridos das calças
frisadas de tergal
se enchiam de bergamotas até os joelhos.

A carroceria da caminhoneta pendia
com a carga e parecia ser só questão
de minutos, virar.
As cascas amarelas pintavam o chão úmido
e barrento da chuva da noite passada.
Casconas boiavam sobre uma que outra
lâmina de poça.

Era shélp, shélp, shélp, shélp...
afundando os Vulcabrás no barro,
e junto, afundando cascas e mais cascas,
e por ironia, a história que hoje me vêm
neste alvorecer de outono.

IX

O ar da Baixada se embriagava
daquele cheiro ácido e doce
das bergamotas quando as unhas compridas
e meio sujas da labuta da semana,
rasgavam a casca que saía quase inteira.

Lacrimejavam olhos quando o ácido
escapava à fúria das unhas, subindo ao ar
com seu cheiro eterno.
Os gomos salientes e firmes, exuberantes
e apetitosos eram como seios juvenis
em peitos adolescentes ávidos de vida por dar
o passo, desfazer a curiosidade
e matar a sede da ânsia incontida.   

X

Homens, mulheres e guris
agora despencavam de todos os lados
até a Baixada.
Num vap-vup, as filas do ingresso
e das bergamotas,
tinham se ido para o pavilhão verde-rubro.

Sumiam os atlantistas por entre
as duas colunas de coqueiros que levavam
ao pavilhão.
Onde foram parar os coqueiros plantados
a planejamento no hall da Baixada?
Pecado. Ah, quantos pecados!

Havia quem preferisse as longas
e envergadas arquibancadas de tábuas
atrás da goleira,
sob a sombra dos pés de Uva-Japão.

XI

Ao redor do alambrado,
O “seu Graví”
 - com a cestinha de amendoim
atraía a gurizada
e declamava: “os amarelo que hoje
se cuide/por que a cobra vai fumá/
é trêis a zero pro Atrântico...
eeeeeeeeeee.... não tem nada não/
vai sê um beeeem de saída
do Tomasi/
e dois golo do Pinhão!”.

Eeeeeeeaaaaaaaaaahhhhhhhh
– respondia a galera no entorno do “seu Graví”,
atlantino velho, velho atlantino,
que se lambuzava com o próprio cuspe
da sua risada que lhe brotava da boca
quase sem dentes
com os versinhos improvisados e
de puro amor por seu time do coração.

XII

Quando a bola rolava,
lá pelas 3 e meia e o Chiochetta
de tanto esfregar as mãos,
era como se a vida tivesse parado
lá fora: o hall da Baixada era um deserto
só apesar do dia cinzento,
enlameado, meio frio e com cheiro
de bergamota inundando o ar.
...e “Avante,
vamos para a luta...”.

Que frio era aquele que lambia minhas tripas
e as orelhas nos segundos tempos,
quando o sol já não tinha mais forças
para varar os galhos úmidos e
as folhas amareladas dos incontáveis
pés de Uva-Japão,
atrás da goleira “de cima’”que dava
para as bochas do Alemão Preto?

XIII

E o Lau – lembram?
O Lau que caminhava de um lado
para o outro atrás da goleira do Miguel,
do Paulinho, do Poppy, do Valdir...
de quem estivesse na guarda do gol
do Atlântico!
Queria ele ajudar a defender.
Tenho certeza que sim.
“Salve
o nosso pavilhão...”.

XIV

E quando ao final dos 90 e tantos
com o sol já caindo por detrás
do pavilhão e a segunda-feira
já acenando na despedida da domingueira,
mil, dois mil, três mil
se levantavam na Baixada,
e,
eufóricos ou resignados
se iam pisando as cascas amarelas
e barrentas,
das mais belas bergamotas
daqueles fins de outono e invernos dos anos 60.

Seria só o fim de uma tarde de fim
de inverno – ou apenas mais
um capítulo de uma história,
que como a história, não vai embora
e fica!?

Eu olhava: quanto tempo
o Dartagnan levaria para recolher
aqueles quilômetros de fios
agora molhados e embarrados!?

XV

“Na vitória
ou na derrota/
honremos nossa tradição...”
Almofadas esquecidas,
jornais voando ao vento,
ficavam
como testemunhas a conferir
as razões do desastre da derrota,
ou para rever de onde mesmo,
de onde foi,
afinal,
que o Pinhão empurrara para o fundo
das redes,
aos 43 do 2º tempo,
o tento da vitória,
bem como o “seu Graví” prenunciara
em versos.

XVII

“Atlântico,
tu és poderoso/
conquistando vitórias com ardor
teu símbolo é belo  grandioso
inspira confiança e amor”.

XVIII

E quando o domingo se fechava
de vez,
todos os Gordinis, Baratas, Rurais
e Decavês já tinham ido embora.
Uns para os bares da redondeza,
outros para o aconchego do lar,
outros mais deslizavam uma quadra
para festejar a vitória ali na zona
do meretrício; que assim, aos ouvidos
de hoje, soa como velho
santuário de mulheres
que compreendiam os homens
e lhes ajudavam a ser mais felizes.
E tudo, sem explorações descabidas.
Meia dúzia de Serramaltes bastavam
para a volta olímpica no quartinho
onde a bacia da higiene dormia
quieta num cantinho,
sob luz encarnada,
enquanto o Vicente Celestino cantava
na vitrolinha: “Tornei-me um ébrio e na bebida busco esquecer
/Aquela ingrata que eu amava e que me abandonou
/Apedrejado pelas ruas vivo a sofrer
/Não tenho lar e nem parentes, tudo terminou...”.

XIX

Hoje em dia não tem mais Baixada Rubra.
A Legião foi expulsa para fundar
a Florestinha e fez nascer
o embrião do Progresso
– o Cachorro Sentado.
Jogadores, dirigentes e torcedores
se disperçaram.
Foram embora.
Morreram ou se extraviaram pelo mundo.
Pela vida!
Os carros daqueles tempos morreram.
Aquele Atlântico morreu.
Até as bergamotas trocaram de cor.
Agora elas são doces, porém,
não são mais, na sua maioria,
amarelas.
Agora elas vêm mais cedo
– muitas delas o ano todo
pintadas de verde,
mas ainda guardam um corpo esbelto
com casca de presença.

XX

Só ficaram lá onde era o campo do Atlântico,
num olhar de memória,
a escuridão,
o ar gelado,
alguns eucaliptos,
as bochas – também esquecidas
esquecidas,
e talvez os fantasmas do “seu Graví”,
do meu tio Leonardo, do Índio e do Lau.
Lá ficou o jeito e a cara da segunda
batendo no fim do domingo,
e o cheiro ácido e doce das bergamotas
de junho, de julho, de agosto e de setembro
e que hoje dão as caras mais cedo
- bem mais cedo, como agora em abril.
Toda vez passo por lá,
Sinto o cheiro eterno
das bergamotas da Baixada  Rubra.
Tudo o mais – morreu
ou, foi escondido sob o cobertor pesado
do tempo que não se deixa levantar.
Quem quiser reviver, que feche os olhos e
relembre.
É tudo que restou.