quinta-feira, 23 de abril de 2020

Leninha e a cueca do Valdelírio



(Nomes fictícios)
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- Leninha! Ô - Leninha! Tu não viu a minha cueca listrada, a largona, gritou do quarto, o Valdelírio.
- Não só vi como não aguentava mais o chero. Tá no tanque pra vê se desencarde... ou, que ao menos, saía aquele fedor.
- Cadela! – vociferou, baixinho, Valdelírio. E prosseguiu: “Tu não sabe que essa é a única que não me aperta? A sem bodega me gruda toda.
Valdelírio se vestiu e ao passar pela cozinha onde Leninha mexia o feijão numa panela de uma alça só, avançou mais: “será que tu não sabe que a listrada, nem que teja suja, é a cueca que eu mais gosto? Tu tem que arrumá alguma coisa pra me dexá lôco. Ô - seca!”.
Mas pra quê! Quando o “caiu” saltou da boca suja do Valdelírio, logo contra a Leninha – uma ainda quase adolescente; Leninha não se conteve e entre gritos e choros - atirou a panela de feijão contra o marido. Valdelírio se esquivou como Ali fez com Foreman na luta do século, no então Zaire em 1974; bateu a porta da casinha de 33 metros quadrados comprada em um projeto social da prefeitura e saiu gritando: “cadela, infeliz, e se foi.
Leninha deixou-se cair sentada no sofá rasgado e chorava mais que recém curado milagrosamente n’algumas igrejas da TV. Os feijões escorriam da parede e a chama na boca do fogão fazia flap, flap, flaaap, flap, denunciando que o gás estava no fim.
Valdelírio que nem levou a marmita, ficou na obra onde puxava tijolo e concreto num carrinho de mão. Leninha perdeu a fome e fez uma espécie de retiro espiritual naquele dia.
Na verdade, ambos, órfãos de uma vida sem perspectivas formavam uma dupla que se completava em termos econômicos, sociais e culturais e de - carências. Como ninguém os quis deram-se um ao outro, ou, pegaram-se um ao outro. Nenhum deles tinha o antigo 1º grau, e encontraram-se na vida contornando as esquinas das suas dificuldades e urgências de todas as sortes e azares, numa noite quando sapiavam no Passarella sem um tostão no bolso.
No dia seguinte quando se reencontraram ao som do Vuco-Vuco plagiado por uma banda de segunda no salão da comunidade, saíram já pensando em aliança e como uma linda e pobre família – acalentar o sonho da felicidade mesmo que divorciada das mínimas condições para arquitetar com alguma chance de êxito um projeto desta envergadura.
Conseguiram a casainha num sorteio da prefeitura no 25, a R$ 99 por mês, juntaram suas misérias e foram morar juntos. No começo, como todos os começos, independente do cheiro do feijão ou da cor da cueca; foram de fato, felizes. Mas como sempre acontece ao fim de cada dia desses enlaces pouco pensados, “altamente emocionais” como diria o visionário Jaci De Lazzari, menos de um ano depois veio a noite. A noite da rotina! E assim passaram da monotonia a ignorar um ao outro. Nesta fase, qualquer coisa fora do lugar, qualquer olhada sem aviso, qualquer palavra mal dita – mesmo quando por uma cueca que Valdelírio queria botar, mas Leninha a tinha ensaboada no tanque -, era motivo para ofensas tão inomináveis que são impublicáveis neste espaço, isso, sem contar as tentativas de agressões físicas que eram cada vez mais frequentes. Não tivessem liberado a construção civil por esses dias, nestes tempos de coronavírus, provavelmente hoje, não haveria um dos dois.
Mas – Leninha não tinha quem desse um tostão furado por ela, enquanto que Valdelírio tirou a sorte grande ao encontrar uma adolescente que lhe desse sem pagar - tantos prazeres, principalmente na cama, lhe cozinhasse um feijão tão bem temperado com orelha de porco e espinhacinho, e, ainda por cima, lhe lavasse suas duas cuecas.
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E foi assim, que naquela tarde, distanciados; ambos foram se acalmando e percebendo que sozinhos não eram nada. No meio tarde, Leninha, sem almoço, largou a xícara de alça quebra onde fazia o chimarrão, foi tomar um banho e se arrumou como poucas vezes na vida o fizera, para receber Valdelírio na porta da casinha. Chegou até a vasculhar se ainda tinha aquela garrafa de vinho do Slongo – mas o Valdelírio tinha tomado tudo. Até o garrafão estava vazio e empoeirado. Correu aentão até o barzinho da esquina e comprou duas garrafas de “Lágrimas do Uruguai” que ninguém levava há anos.
De outra sorte, Valdelírio, se dava socos na cabeça, arrependido pelas ofensas à sua amada. E como nenhum deles tinha melhor lugar para ir do que para a casinha do projeto social; às 4 da tarde, ambos já sentiam a falta um do outro, remorso; e olhavam as horas no celular de cartão à espera do ônibus da empresa Gaurama. Ardiam de arrependimento em lados opostos da cidade, de tanta vontade, de urgência de se verem, se encontrarem, se abraçarem, se...
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Naquela noite sem gás e sem feijão, o bico de 40 velas da luz do quartinho, foi visto aceso e vermelho, enquanto que a cueca apertada do Valdelírio dormiu no sofá-cama xadrez da sala que o casal tinha comprado numa loja de móveis usados em 18 vezes de R$ 8,99. A vizinhança que fizera de contas que nada tinha visto, agora cacarejava à voz baixa, provavelmente tentando diminuir a felicidade que abraçava o sono do casal. A inveja saltou de uma janela de onde se ouviu: “por Deus - se eles de novo se ameaçá matá – aí vô eu mesma buscá a Brigada!”.
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No outro dia nenhum dos dois disse uma palavra – só uma verdade muda descansava: “nada como uma boa briga entre um casal sem perspectivas ou com, para fazer ressuscitar em estilo de ouro, incenso, mirra e pimenta do reino; a faísca que os mantém inseparáveis”, mesmo quando uma cueca listrada e suja incorpore o estopim que pode fazer explodir o paiol das melhores famílias. Nisso eram sábios. Valdelírio colocou pão e salame na sacolinha, beijou Leninha, fechou o portãozinho e acendeu um cigarro paraguaio até a parada do ônibus. Lá encontrou o Paulão, seu parceiro da obra no Redenção: “Hein Valde,, agora só farta abri os bar”, ajuntou o parceiro.
Na casinha, Leninha faxinava como só uma boa dona de casa, feliz, sabe faxinar, ainda mais quando os motivos a afagam e se acendem sob os lençóis na madrugada. O rádio portátil trazia ora o Erico Martins, ora o Edilon Flores; com as novidades da polícia. Às 9h30min decidiu pedir à vizinha se podia cozinhar o feijão do dia no fogão dela, uma vez que o “seu” Valdelírio, como prometera no alto do amor da noite anterior, sábado, assim que recebesse o vale da semana, compraria sim um botijão de gás para a “sua” Leninha.
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Às vezes, quase sempre todas às vezes, nada como uma boa briga, quanto pior – melhor, para reascender, para reanimar os próprios anfitriões de todos os começos. Sem dúvida que a rotina cansa, enjoa e até satura. Mas feliz de quem sai a caminhar, sem apelar aos extremos, em todos os tempos; especialmente hoje em dia com essa pandemia de “encarceramento” de Leninhas e Valdelírios. 
Quem passar por esse tempo e, ao descortino da “nova normalidade”, como tem se tornado moda falar -, pois quem chegar a esse ponto, sem ter de se esquivar de um palavrão ou sem ter de limpar o feijão da parede, pode se considerar um felizardo. É como se fosse um assintomático ao Covid 19.
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Mas, à bem da verdade, e os números de aumento de casos de violência doméstica mostram isso em todo o país; quando não matam, quase sempre, as pauladas mais fortes, as desavenças mais perigosas, as reações mais insuperáveis, como disse – quando não matam -, podem se transformar como o veneno de serpentes, no soro, na fé e na luz que devolve a vida para a vida, renovando sonhos. Para tanto, não obstante, é preciso que dentro de cada um, repouse ainda que aquietado, ao menos um fio de querer de um pelo outro. O caso que rondou a perigosa faixa da tragédia, da Leninha com a cueca listrada, larga e suja do Valdelírio, não me deixa mentir.