quarta-feira, 15 de abril de 2020

O Sansão, o Acejá e os candidatos



(Nomes e enredo fictícios – aparentemente!).
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Não havia nada na vida que o Sansão mais amasse, do que suas seis filhas e esposa/mãe/amante/companheira, a Saletona. Ela era uma mulher de 84 quilos, surrada pelas luzes que deu e amamentações a que foi submetida em menos de dez anos de casamento com o homem da sua vida, o Sansão. E tudo que o Sansão fazia era pela Saletona e as seis filhas.

Carregou tábuas numa madeireira semiabandonada da cidade, descarregou caminhões de tijolos, foi maqueiro do Santa Terezinha, esparramou asfalto numa empresa terceirizada da prefeitura, abateu bois na Cotrel, descarregou caminhões de adubos,  puxou toras mato afora, foi borracheiro de beira de estrada, passou por fábrica de molas de caminhão, trabalhou de tarefeiro nos ervais dos Tormem, tirava cascudos debaixo de Lages em véspera de Semana Santa, foi lavador ônibus, passou pela oficina da prefeitura, carregou tábuas no antigo Madalozzo, foi leão de chácara da Casa Branca, carregou pedras e enfiou-se em tocas para instalar explosivos na construção de Machadinho e Itá.

Nas romarias de Fátima era sempre o primeiro a chegar para carregar a imagem da Santa até o seminário. Orgulhava-se, e apesar do seu plexo, tinha os olhos marejados quando ouvia a voz do padre Antoninho anunciar que ‘olhem só a imagem de Nossa Senhora já aponta lá na entrada do santuário’, e Ela vinha nos ombros do Sansão. ‘Louvando Maria/O povo fiel/A voz repetia/... Ave/Ave/Ave Mariiiiiiiia/Ave/Ave...
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Uma das maiores mágoas de Sansão, foi não ter sido aprovado num concurso da Brigada, mas tinha orgulho de dizer que concluíra o Supletivo depois e ter aulas de redação no EJA do antigo Campos Salles com um conhecido jornalista da cidade.

Antes disso, o Sansão, como todo guri brasileiro e em especial, da periferia, porque, criou-se na antiga Legião Brasileira ali onde hoje é a Cohab do Mantovani, quando criança, passava os dias com o pé na bola nos fundos da antiga Baixada Rubra. Há quase 50 anos, uma quadra depois, na frente de onde hoje é o 13º BPM, ficava a zona do meretrício. Quantos táxis Sansão testemunhou despejando afamadas personalidades da alta sociedade por aquelas bandas!

Um dia o Acejá (tradicional time amador de Erechim) o descobriu. O velho Rato, patrão que ditava o tom das chegadas e divididas na grande área do Acejá, andava precisando de um bom parceiro depois que o Bateria se aposentara. Um olheiro indicou com o dedo: “é aquele ali, ó!”, para o Sansão que vinha sendo observado num campinho e nos pontos de praças que se formavam para descarregar caminhões de cimento.
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Não havia ninguém mais parecido com o Rato e o Bateria para limpar a área do Acejá, que o Sansão. É verdade que o único par de chuteiras 44 que o Acejá tinha, lhe causava certo desconforto porque “me aperta os calo”, reclamava, especialmente quando furava em bola, mas emendava: “Má não tem poblema. Eu se sinto bem!”.

O 1,93 metro, o tamanho do pé, 94 quilos de puro músculo - a grossura da coxa que lhe rasgava os calções nas laterais, uma redinha para lhe segurar a cabeleira mal cortada (era mera coincidência com o personagem bíblico), o tórax de capô de fusca e as orelhas de abandono como as de um cachaço que meu tio Guido tinha nos confins de Sede Dourado, na Linha Poço Grande; eram 90% da certeza de que a área do Acejá seria como um pátio de um convento. Fechado por muro de três metros, limpinho e com dois pitbuls soltos na espreita de alguém tentando saltar o muro. A dupla de zaga, digo, os pitbuls, se lambiam.
Contam-se dezenas de versões sobre a longa cicatriz que Sansão trazia do alto da testa, e lhe descia costurando a fechar-lhe o olho esquerdo, seguindo depois até o queixo. A oficial é que ele teria perdido o controle de uma perfuratriz de pedras em Itá em fins dos anos 1980, só não morrendo na hora porque, afinal, o Sansão era mesmo mais duro que a rocha. Ademais, a empresa tinha um socorro imediato de plantão sempre pronto para os infortúnios que a obra podia provocar.
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Mas a tese mais comentada e, aceita – porquanto parece mesmo ser a oficial; é que entre 18 e 19 anos, na noite em que conhecera a Saletona num baile em Balisa, quatro ou cinco marmanjos, bundinhas vindos de Erechim num ômega, teriam insinuado que a Saletona tinha por apelido “Saletinha Batalhão”. Na refrega onde garrafas, copos, mesas e cadeiras ganharam asas; e que acabou com o baile e deu início oficial ao seu amor pela Saletona, o Sansão mandou dois para HPS do HC, que era o mais próximo. Um teve menos sorte e depois de 15 dias na UTI e mais 40 num quarto do hospital, quando recebeu alta – estava inválido. O quarto teve sorte: foi visto saltando por uma janela do clube, e conseguiu chegar ao Ômega. Nunca mais foi visto por Balisa nem por Erechim. Contam, sem comprovação, até hoje, rengo. Mesmo assim, o Sansão recebeu socos, pontapés, cadeiradas, garrafadas e, por fim, não se sabe de onde partiu, com Sansão já caído e tonto - alguém o atingiu com um faconaço de alto abaixo na cabeça. Quem viu, disse que sangrava mais que porco morto a facada no pescoço na colônia. Mesmo assim ele se levantou e bufava como um touro com a lança encrava no cangote, enquanto o trio que restara era retirado do interior do clube. Todos os seguranças seguravam Sansão que só não saiu pra fora atrás de seus algozes, porque a Salentona sem um sapato, com os beiços avermelhados pelo batom que lhe escorria da boca e ainda, com um dos peitos querendo salta pra fora do vestido que estava rasgado, juntamente com um grupo de primas e amigas, pediam pelo amor de Deus que o Sansão parasse. Chorando ela implorava que alguém levasse seu amor ao hospital mais próximo. Dos dois PMs destacados para a segurança do baile - um tinha um enorme corte na cabeça e o outro com a calça rasgada, arrastava a perna. Colocaram o Sansão no corsinha da BM. O presidente do clube pegou sua F-1000 e seguiu atrás levando a Saletona, suas primas e amigas. Vazio, o clube era o cenário de um terremoto, onde apenas um bico de luz de 40 velas ainda resistia piscando.
Daquela noite em diante, o Sansão jurou que casaria, viveria e morreria pela Saletona, com quem haveria de constituir uma verdadeira família batizada com o orgulho que só os humildes conscientes da vida que levam – tem. Grande na prole e - pobre. Mas feliz.
Menos de dez anos depois daquela noite, ao lado da cama de lastro de mola que comprara de um cunhado, o Sansão tinha sobre o bidê do lado, uma foto com a Saletona e as cinco filhas. Tiraram-na num churrasco de ano novo lá na Cascata.  Na parede da casinha de tábuas largas, com algumas frestas, pôsters dos irmãos Pontes do Gaúcho de Passo Fundo (uma zaga que não deixava nada passar e muito menos levava desaforo para casa), do Caçapava, do Mário Carazinho, do Francisco Carlos e do Paulo Ferro – enfim, todos, leais, mas Santa Mãe de Deus, se jogassem no nosso time, melhor, muito melhor. Eram os ídolos do Sansão. Lutavam como gladiadores contra os leões nas arenas pela camisa que vestiam.
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Sansão também era assim, exatamente assim, com a vantagem de ir às últimas instâncias pelas filhas e a Saletona. E foi por isso que o Acejá o levou. Para cumprir as ordens, acontecesse o que acontecesse, na zaga do time grená. 
No campo do Acejá enquanto o Sansão esteve de patrão da área, não foi só na goleira que não nascia grama. A asa média da intermediária, como se dizia nos tempos áureos do velho e bom futebol, mais à direita das duas metades do campo; ali havia sinais claros de que a grama tinha dificuldades de vingar. E era ali que o Sansão passava a maior parte dos 90 minutos de cada jogo.
Um dia, na decisão do municipal o Sansão pegou pela frente o Lambretinha, que tinha fama de ser o maior driblador da cidade. O Lambretinha não tinha um metro e meio, como se tornou praxe falar sobre os atacantes baixinhos. Não, ele, na verdade, media 1,48 – com chuteiras. A partida com mais de 250 torcedores ao redor do alambrado, era decisiva e valia, para o Sansão, a taça, o campeonato, o título, a faixa, um bicho extra sem igual na história do Acejá, e, claro, a honra da sua história, da sua família, das filhas que não podiam ser gozadas na segunda-feira no Campos Sales, e, claro, ainda, e por primeiro, valia pela Saletona.
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O jogo estava empatado em zero a zero (o empate dava o título ao Acejá) e o Lambretinha era um terror para o lado esquerdo da zaga. Cada ataque era meio gol. O inferno estava lambendo com suas labaredas aquele lado da defesa do time grená. O Sansão corria e suava como um matungo depois de um dia puxando carroça morro acima em dia de sol a pino. Contam que o “Vermêio” (eterno massagista), aplicou uma “gluco” no intervalo para o Sansão não se entregar. Na volta do intervalo ele bufava e urrava mandando o lateral esquerdo Chimbica, colar no Lambretinha. O Sansão sabia, sim, ele sabia, que se alguma coisa não fosse feita, e logo; o gol era uma questão de tempo. A essa altura ele já estava só com uma meia levantada. A outra descera e quase lhe encobria a chuteira. Mas o Sansão nem ligava.  

Pressentindo o pior, ele então correu até a lateral do campo e com os beiços e a cicatriz lhe latejando lustrada de suor, avisou o técnico Danielão, que trocaria de posição com o Chimbica, o lateral. “Vai pra zaga Chimbica - e dexa comigo esse baxinho!”, ordenou o Sansão, ao mesmo tempo em que pisou num buraco do campo e torceu o pé.
O creeeeeeeeeeeeccccc foi ouvido até na copa. Alguém levantou o som do rádio para saber o que havia acontecido. O Sansão saiu que nem um Saci numa perna só. E foi bem na hora, não deu 40 segundos, quando o Lambretinha vinha de novo driblando todo mundo pela ponta direita. O Sansão nem cuidou da bola que vinha pererecando no meio dos buracos, dos desalinhos do campo, das touceiras, formigueiros e rosetas.
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Daquela vez o Lambretinha ia parar dentro do gol do Acejá. O Sansão, então, olhou dentro dos olhos do Lambretinha e reviveu o baile em Balisa, vestiu-se de trem descarrilado e tuuuuuuuuuummmmm. Na copa, ma garrafa de cerveja que estava meio na quina – caiu com dois copos. Um “meu Deus” -  misturado com “Nossa Senhora!”, saiu de várias bocas ao mesmo tempo.
O Lambretinha caiu – aparentemente desmaiado. Desfalecido. A bola escafedeu-se num buraco do alambrado, com um lado mais retorcido para dentro e, meia murcha, foi picando e descendo um barranco confrontando pedras e eucaliptos até não mais ser vista. Provavelmente ganhou uma sanga que corria no pé do barranco e fugiu. Enquanto isso,  o Sansão, num pé só, mais molhado que um guaipeca quando para - depois de despistar quem lhe queria o couro, feito um Saci ordenou que o Chimbica voltasse para a lateral.
Antes disso ainda teve tempo de desaforar o Lambretinha: “o quê? Levanta ô fingido!”, resmungou abaixado e enchendo o ponteirinho de nomes impublicáveis – como se o pequenino atacante estivesse encenando.
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“O que é que esse salva-vida de aquário tá pensando!”, teria, ainda, deixado escapar, ao se arrastar de volta à sua posição na grande área. O juiz, que já vinha lotado com o cartão vermelho na mão, ao ver as veias saltadas nos braços e no pescoço de Sansão com sua cicatriz na cara vertendo suor; num repente, lembrou-se da noite em que o Sansão conhecera a Saletona naquele baile de Balisa. Instintiva e providencialmente, guardou o vermelho e trocou pelo amarelo: a um metro de Sansão estaqueou e gritou para todo mundo ouvir que tinha o “controle da partida”. Pegou seu caderninho e correu às costas do zagueirão, para ver o número da camisa. Era um 4, adesivado, que já lhe desgrudava e despencava nas costas. “Essa foi a última. Da próxima, mais uma dessas e  – rua! Tu tá avisado, tu ta avisado”, gritou de novo o árbitro e saiu gesticulando, autorizando a maca entrar no gramado.
Nunca na vida o Sansão tinha sido substituído numa partida, mas naquele dia, naquela hora, ele entregou os pontos e concordou em sair. Não podia nem mais parar em pé, no único pé que lhe sobrara. Saiu escorado pelo “Vermêio”, o massagista, enquanto que o Lambretinha era retirado de maca e lhe abanavam com uma toalha entre um e outro éter que lhe davam para cheirar. Pediram entre os torcedores se alguém era médico. Já tinham até ligado para os bombeiros. Estava com falta de ar – e depois de uns minutos muito branco começava a ficar meio roxo. Os bombeiros chegaram, acudiram o atacante e o levaram para o Pronto Socorro. Dias depois correu a conversa que o Lambretinha tinha sido submetido a vários exames, havia internado pelo SUS e tivera alta, com indicação de retornar a cada 15 dias. Mas, futebol nunca mais. Ao saber da notícia – Sansão penalizou-se e pensou na família do Lambretinha. Sempre que carrega Nossa Senhora de Fátima nas romarias – reza pelo Lambretinha.
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Entrevistado pelo Natalino – o Sansão, já sem a chuteira 44, e com o pé do tamanho de uma bola de pinhão, disse que pelo Acejá, mas principalmente por suas filhas e pela Saletona, fazia qualquer coisa. Não queria aleijar ninguém, pois sempre se orgulhava de jogar duro, de ser viril - mas sempre, segundo ele, sempre, sempre na bola. Mas – às vezes, talvez como naquele dia, se não fizesse o que tinha feito, o Lambretinha era bem capaz de lhe tirar a faixa, o bicho, a honra de ser mais uma vez campeão municipal. Já tinham até combinado que o bicho seria uma janta com pizza à vontade para toda a família no Sobrado, e um rancho de R$ 80 no mercadinho da esquina da Brigada.
O Sansão era, assim, uma referência.
Uma segurança.
Um segurança.
Um pavilhão.
Um símbolo.
Uma certeza.
Uma garantia definitiva de que na zaga do Acejá, se furo havia, era muito mais embaixo, e um risco maior, tentar entrar nele.
Um sujeito simples, limitado, porém, honestíssimo, dedicado ao extremo, fiel à família, ao Acejá e aos dois cultos semanais da igreja evangélica aos quais nunca havia até então faltado. Não sabia explicar, talvez pela Saletona, ia a cultos evangélicos, mas jamais abrira dera seu lugar bem à frente para levar a imagem de Fátima da catedral até o Santuário.
Era, enfim, um homem do bem.
Sabia o que queria e o que podia na vida ter.
Sabia – principalmente -, o que jamais teria.
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Seria bom que os candidatos à prefeitura de Erechim, este ano, apresentassem também algumas das credenciais do velho e bom Sansão. Começa que ele não era de falatório. Pedia o que era para fazer e fazia.  

Que não se privilegie.
Que não privilegie.
Que não se omita.
Que não prometa o que não pode ser atendido.
Que não se enrole e nem deixe se enrolar.
Que não pense em si
– mas em quem tudo paga e tudo sustenta.
Olhem o que o Sansão fez pelo Acejá,
e pensem em Erechim como sendo o seu time
do coração, a sua família.
Respeitem-na enquanto coletividade e não individualidades. 
Façam como Sansão.
Não importa quanto
– desde que seja tudo.
No fim, até o Lambretinha, que depois daquele “choque” ficou cego de um olho para sempre e teria sido visto pegando sol ao redor de casa, com auxílio de um andador, passou a admirá-lo. Por quê? Por que o Sansão fez o que tinha de ser feito.
Dizem que ele até tem uma foto do Sansão, abraçado pelo Galina, na cabeceira da sua cama lá no Polígono. Teria comentado: “ele foi duro, quase me matô; má feiz o que tinha que sê feito – se não eu Pará dentro do gol.”
Candidatos – incorporem o espírito do Sansão. Olhem pro Acejá, pro time – digo, pra cidade - e, chega de fazer média com os apaniguados de sempre. A administração da cidade não é uma sociedade de amigos. Ou será que mais uma vez iremos para um pleito sem um Sansão na zaga, alguém com peninha deste ou daquele, com compromisso com este ou aquele, alguém sem conhecer, de verdade, o seu ofício – ou para que de fato, foi escalado!
Dos pré que tem aparecido – a maioria está mais pra Lambretinha. Eu conheço pelo menos três ou quatro com jeito de Sansão(quanto à prática – mas com bem mais inteligência) mas parece que não querem.
Melhor mesmo seria um Braga Netto.


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